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Entrevista: 
Áquilas Mendes

'É, mais uma vez, uma jogada conjuntural e imediatista do governo federal'

Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição do Orçamento Impositivo (PEC 358/13), que, se aprovada, como avalia diversos movimentos ligados à saúde, será um retrocesso para o financiamento deste setor. A PEC determina que o financiamento da saúde seja por meio da receita líquida, já o Movimento Saúde +10, que recolheu mais de 2,2 milhões de assinaturas, por meio de seu projeto de lei de iniciativa popular defende a aplicação de 10% da receita corrente bruta. Nesta entrevista, o professor doutor livre-docente de economia da saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política e do Departamento de Economia da PUC-SP, Áquilas Mendes, explica a diferença das duas propostas e analisa a situação de financiamento da saúde pública atualmente. Confira.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 11/06/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como é a realidade do financiamento da saúde hoje? Este é o principal problema da saúde pública atualmente?

Ao longo das últimas três décadas, o financiamento da saúde foi um dos temas mais debatidos e problemáticos na agenda de implementação da política de saúde no âmbito de países com sistemas universais de saúde. A problemática do financiamento da saúde foi explicitada por meio de montantes insuficientes, indefinidos e de modificações significativas na sistemática de repasses financeiros do governo federal para os estados e municípios. Iniciamos a década de 2010 sem resolver esses grandes conflitos, a medida que a Lei 141/2012 (regulamentação da EC-29) não assegurou novos recursos financeiros para a saúde universal, especialmente por parte da União e, ainda, nada foi realizado em relação ao estabelecimento de uma política de renúncia fiscal para o setor privado, sem prejuízo dos recursos do Estado, especialmente direcionados às políticas de direitos sociais, como a saúde.

Com a vinculação de recursos para a saúde pública, a partir da EC-29, permitiu-se que o gasto SUS aumentasse de 2,89% do PIB, em 2000, para 3,9% do PIB, em 2012 (sendo 1,8% da União, 1,1% dos Municípios e 1,0% dos Estados) ainda insuficiente para ser universal e garantir o atendimento integral. No entanto, o gasto público brasileiro é baixo em relação ao dos demais países que têm um sistema público universal. Para que o Brasil atingisse o nível desses países, precisaria dobrar a participação do SUS em relação ao PIB, a fim de equiparar à média dos países europeus (Reino Unido, Canadá, França e Espanha), isto é, 8,3%.

Se o artigo 55 das Disposições Constitucionais Transitórias fosse aplicado, 30% dos recursos da Seguridade Social deveriam ser destinados à Saúde, mas isso nunca foi feito. Em 2012, o Orçamento da Seguridade Social foi de R$ 590,5 bilhões de reais, sendo que se destinados 30% à saúde, considerando os gastos do governo federal, corresponderiam a R$ 177,2 bilhões de reais, mas a dotação é a metade disso. Isso mostra claramente o subfinanciamento.

É possível chegar a essa realidade?

Certamente, para que o Brasil atingisse o nível de aplicação dos países com sistemas universais de saúde, precisaria dobrar a participação do SUS em relação ao PIB (hoje 3,9%). Precisaríamos atingir a média de aplicação desses países: 8,3%.

A PEC 358 alterou o valor mínimo anual a ser aplicado nos serviços de saúde e destina o valor mínimo de 15% das receitas líquidas da União para o setor. Por que este financiamento está sendo visto por alguns movimentos sociais como um retrocesso ao financiamento da saúde?

Em primeiro lugar é importante esclarecer que essa PEC contraria a luta dos movimentos sociais e das entidades vinculadas ao Movimento da Reforma Sanitária, conhecido como Saúde +10, que há tempos defendem a aplicação do governo federal no SUS em 10% da Receita Corrente Bruta. Mas, desde que foi defendida pela primeira vez essa proposta, o governo não aceitou que a base de cálculo fosse a receita bruta. O Relatório da Comissão de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados, alterou a proposta de receita corrente bruta para receita corrente liquida, fazendo uma equiparação de 10% da RCB para 18,7% da líquida, sendo que esse último percentual seria atingido somente em 2018. A rigor, o SUS contaria com uma aplicação de 15% em 2014, sendo escalonada essa aplicação ao longo de 2015, 2016 e 2017. Após isso, o governo federal apoiou a PEC 358, conhecida como a PEC do Orçamento Impositivo (emendas parlamentares). Porém, a forma de aplicação mudou bastante, isto é para um pior financiamento. Isso porque, começa 13,2% da receita líquida, atingindo o 15% somente em 2018. Se essa emenda for aprovada trará dois graves problemas: em primeiro lugar, o dinheiro do petróleo do pré-sal deixará de ser um excedente para a Saúde, como estava previsto na Lei 12.858/2013, e se perderão alguns bilhões de reais; em segundo lugar, aumentaria as emendas parlamentares para um teto de 1,2% da receita líquida, sendo que 0,6% iriam para a Saúde. Se fosse um dinheiro a mais, seria razoável, porém essas emendas sairiam do orçamento da Saúde.

Assim, se essa PEC for aprovada, teremos então 13,2% da receita líquida no primeiro ano, ou seja, em 2014, o que significaria somente 5,9 bilhões de reais a mais para a Saúde. É insignificante esse montante de recursos quando comparado à proposta do Saúde +10. Certamente, o governo terá dificuldades para levar adiante as suas novas propostas e atender ao clamor dos movimentos da saúde pública universal. É, mais uma vez, uma jogada conjuntural e imediatista do governo federal.

Temos um projeto hoje, o PLP 321, que propõe 10% das receitas brutas. O que isso traz de diferente da outra proposta?

Se aprovado esse projeto de iniciativa popular, que contou com a assinatura de 2,2 milhões de brasileiros, o SUS contaria com um acréscimo para o orçamento do Ministério da Saúde de 2014 em cerca de R$ 46 bilhões, sendo 0,8% do PIB. O pleito do Projeto de Iniciativa Popular é importante para a sobrevivência do SUS, mas temos consciência de que não resolve por completo o subfinanciamento histórico da saúde pública no Brasil. Em 1995, o governo federal gastou com ações e serviços de saúde o equivalente a 1,75% do PIB; passados 17 anos (2012), essa proporção praticamente se manteve. Os gastos federais com ações e serviços públicos de saúde diminuíram em relação à Receita Corrente Bruta da União. Em 1995, representavam 9, 6% dessa receita e, em 2012, registravam apenas 7,1% da mesma base. O montante de recursos perdidos durante os anos 2000 registram aproximadamente R$ 180 bilhões quando comparados entre a indexação à receita corrente bruta e à variação do PIB nominal.

Este projeto de lei de iniciativa popular recebeu mais de 2 milhões de assinaturas, por que essa proposta não foi inserida? É uma proposta real?

Vale enfatizar que governo federal fez de tudo para que a base de cálculo de 10% da RCB não fosse aprovada já no advento da discussão da regulamentação da EC 29. Tudo em nome de que não possui uma fonte específica para isso. Agora vem com o mesmo argumento para o Movimento Saúde +10. Embora, é do conhecimento de todos que o Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) vem há anos evidenciando superávits.
Mas, grande parte é direcionada ao pagamento de juros da dívida, a fim de manter superávit primário - uma política econômica restritiva em termos de cortes dos gastos sociais. Esse direcionamento tem nome: Desvinculação das Receitas da União (DRU), em que 20% das receitas da seguridade social são dirigidas a outras finalidades. Esse mecanismo vem provocando perdas de recursos para a Seguridade Social de cerca de R$ 578 bilhões, entre 1995 a 2012, tendo sua continuidade assegurada até 2015. Nesse sentido, há fontes disponíveis no governo. O problema é ele aceitar a defesa das entidades vinculadas à reforma sanitária há anos: acabar com a DRU.

Quais seriam as melhores medidas para enfrentar o subfinanciamento da saúde?

Para enfrentar o subfinanciamento estrutural do SUS é necessário defender a rejeição da política econômica conhecida como o famoso tripé econômico - juros altos, superávit primário e supervalorização da moeda -, que restringe a possibilidade de gastos públicos, mesmo os sociais, incluindo a Saúde. Essa política vem sendo adotada pelo governo federal desde 1995, portanto não há diferença entre os diversos governos. O que nós, profissionais que defendemos o SUS, podemos fazer de diferente é lutar pela mudança dessa política que prioriza o pagamento de juros da dívida pública. Temos de reivindicar uma auditoria dessa dívida, como fez o Equador, de forma bastante equilibrada, com a participação de parlamentares de diversos países. Lá, depois dessa medida, 60% da dívida foram declarados ilegais, e o governo equatoriano admitiu pagar os outros 40%.

Ao mesmo tempo, durante os 25 anos de existência do SUS, a fragilidade do financiamento foi percebida no crescimento da renúncia fiscal decorrente da dedução dos gastos com planos de saúde e símiles no imposto de renda e das concessões fiscais às entidades privadas sem fins lucrativos (hospitais) e à indústria químico-farmacêutica, enfraquecendo a capacidade de arrecadação do Estado brasileiro e convertendo-se no que se convencionou denominar por gasto tributário. Assim, considera-se, importante também, rever o incentivo concedido pelo governo à saúde privada. O total desses benefícios tributários concedidos à saúde privada cresce de forma considerável. Registre-se: R$ 3,67 bilhões, em 2003; passando para R$ 19,98 em 2012.

Não se pode esquecer também a defesa pela rejeição da DRU que retira 20% do total das receitas das contribuições sociais do Orçamento da Seguridade Social, que na realidade vem resultando em perda de recursos para a saúde, previdência e assistência social de cerca de R$ 578 bilhões, entre 1995 a 2012.

Por fim, para assegurar a universalidade, principalmente no cenário da crise mundial no capitalismo contemporâneo sob o domínio do capital financeiro, a fim de garantir mais recursos, por meio de propostas alternativas de financiamento. Algumas propostas poderiam ser discutidas e apresentadas, como por exemplo: a) aprofundamento dos mecanismos de tributação para a esfera financeira, como por exemplo, por meio da criação de um Imposto Geral sobre a Movimentação Financeira (IGMF) e a tributação das remessas de lucros e dividendos realizadas por empresas multinacionais, atualmente isentas na legislação de alguns países, como no caso do Brasil; b) estabelecimento da Contribuição sobre Grandes Fortunas com destinação para a seguridade social, consequentemente para a saúde.