Em entrevista à Folha de S. Paulo publicada hoje, 17 de maio, o ministro provisório da saúde, Ricardo Barros, defendeu, entre outras coisas, que o Estado não tem condições de arcar com direitos como a saúde. Depois da repercussão negativa, ele recuou, afirmando que o SUS já está “estabelecido”. Qual a sua avaliação sobre esses posicionamentos?
Isso indica uma política inadequada e uma escolha inadequada, de um ministro que naã tem nenhuma experiência de SUS. Com tanta gente com experiência de SUS nos vários espectros ideológicos, encontraram uma pessoa que faz um discurso contra o direito universal à saúde, que é constitucional. Ele inclusive não tem autonomia para fazer isso. Acho que esse é um problema.
O segundo problema é que a gastança do governo não é com as políticas sociais. O padrão de gasto com o SUS pelo governo federal, fazendo a padronização pela inflação, é o mesmo desde o início do SUS: governos Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma têm um padrão de gasto de 3,4% a 3.6% do PIB. Então não houve aumento do gasto. A gastança é com o serviço da dívida pública. Nos últimos dois anos, quase 50% do imposto arrecadado pelo governo federal foi para pagar o serviço da dívida pública, que nem entra no orçamento, porque fizeram uma lei que obscurece isso. Fala-se que a previdência está gastando 50% do orçamento, mas se a gente colocar na conta o gasto com a dívida pública, o da previdência baixa para 20%. Além disso, tem a bolsa-empresário. Nos últimos cinco anos, por renúncia fiscal, incentivo à produção, várias formas, o governo federal passou para o bolsa-empresário um valor superior ao gasto com o SUS. Gastou mais com repasse de recursos diretos e indiretos a empresários do que com o SUS, sem nenhuma repercussão na economia muito menos social. Então, o que a gente tem que ver é onde vai se fazer o corte. Eles [o governo provisório] estão optando por excluir os pobres, excluir a maioria da população, no Bolsa Família, na saúde.
E tem uma terceira coisa que é o desconhecimento, uma análise equivocada. Porque esse modelo de organizar a saúde em sistemas nacionais públicos, que é o modelo que começa com Inglaterra e Suécia e que o SUS adota, é mais eficiente na relação custo-benefício do que o setor privado. Muito mais eficiente. A Inglaterra gasta per capita em saúde metade do que os EUA, com melhores resultados. A expectativa de vida na Inglaterra e os indicadores de todas as doenças são melhores do que nos EUA, e não há exclusão como nos EUA. No Brasil, a saúde suplementar privada foi responsável, nos últimos dois anos, por 54% dos gastos nacionais para 25% da população. O SUS gastou 46% e atende exclusivamente 75% da população, fora o atendimento pontual, ocasional, de transplante, Aids, vigilância sanitária para toda a população. Então, nós temos uma proposta que é mais eficiente. Agora, para qualificar o SUS, tem que discutir o que fazer. Tem que dobrar a cobertura e qualificar a atenção básica – que é o segredo de a Inglaterra gastar menos do que os EUA. Dizem que vão fazer reforma da gestão. Muito bem, então que comecem extinguindo que os cargos de gestão no SUS, de unidade básica, de saúde mental, de Aids, sejam de confiança, de livre provimento dos prefeitos, governadores e dele próprio [o ministro provisório]. Não custa nada fazer isso. Em Portugal, na Espanha não é assim? Ou seja, nós temos formas efetivas de ampliar o atendimento, melhorar a qualidade do SUS. O que ele está propondo é barbárie sanitária. Excluir o direito à saúde é barbárie. Eu acho que a população não vai aceitar isso. Ou seja, 75% da população não vai ter direito ao acesso a tratar câncer, não vai ter direito a fazer o transplante quando precisar, não vai ter tratamento integral para Aids. É uma proposta muito retrógrada. Tem que ser combatida. É uma persona non grata. Eu considero um ministro anti-SUS, anti direito à saúde.
Você é um militante histórico do movimento sanitário brasileiro e participou da construção do SUS. O que sustenta a defesa da saúde como direito universal, que foi conquistada na Constituição?
É a ideia de que todo ser humano — independentemente dos seus méritos, do seu salário, da sua renda, de ter seguro saúde ou não, de ter seguro previdenciário ou não — tem direito à vida.. E se liga à ideia da atenção à saúde conforme a necessidade. Outra coisa que orientou o SUS, baseado nessas experiências anteriores de boa parte dos países é a constatação de que o mercado, pelo seu interesse, aumenta os custos. O custo-efetividade está ligado a isso: [a saúde privada] interna muito mais, não tem uso racional de medicamentos, transforma a saúde e a doença em mercadoria. E não tem gestão, regulação, fiscalização capaz de controlar isso. Por isso a atenção à saúde precisa ser socializada, precisa ser pública. Os países capitalistas da Europa — todo lugar que tem um mínimo de cidadania e em que a sociedade civil tem força — têm sistemas nacionais públicos de saúde: Portugal, Espanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão... Cada vez mais está-se convencendo de que essa é uma área onde o mercado não tem competência, produz doença e gasta muito recurso. Então eu acho que essa é a gravidade. É uma barbárie social se se seguir essa política – eu acho que não vão seguir porque não têm força. A reação vai ser muito grande, nós vamos articular isso.
Mesmo na declaração em que recuou da defesa de encolhimento do direito universal à saúde, o ministro provisório afirmou que a saúde não tem que ser “patrocinada” exclusivamente pelo poder público. É possível garantir o direito a saúde com outro tipo de financiamento que não o público?
Não, porque isso nega a política pública, volta ao mercado. A gente defende que o financiamento do SUS seja um financiamento público. Aí entra a discussão de que precisamos de mais recursos. Mas temos que ver qual está sendo o uso do orçamento público. Por que temos que usar metade dos impostos arrecadados no Brasil para pagar rentistas, que são três mil famílias? Qual país do mundo republicano tem 14%, 15% de juros, que é a taxa que regula o pagamento da dívida pública? Nós estamos questionando isso. A bolsa-empresário tem que acabar. Também a isenção, que é a bolsa-classe média: R$ 15 bilhões de renúncia fiscal, de imposto de renda, além de setores do funcionalismo público que pegam o orçamento público para pagar convênios privados. O cálculo é que isso [o fim da isenção fiscal na saúde] significariam R$ 15 bilhões a mais para o SUS. Nós temos formas de qualificar e financiar o SUS com orçamento público.
Qual será a posição da Abrasco diante do governo provisório de Michel Temer?
A Abrasco foi uma das primeiras entidades a tirar uma nota que criticou o impedimento da presidente como golpe. Criticamos a parcialidade da imprensa, a assimetria da área jurídica, que só combate a corrupção de representantes da esquerda popular e adia a dos outros. Então, nós temos essa posição. Nós estamos discutindo com as outras entidades que relação nós vamos ter com esse governo. Nós temos um governo provisório. O SUS é público. A Abrasco é uma entidade da sociedade civil, mas os secretários de saúde, por exemplo, vão ter que negociar orçamento, modelo, vão ter que participar do Conselho Nacional de Saúde, que é do SUS. Nós não vamos deixar de participar. Já fizemos um editorial — que está no site da Abrasco e eu, como presidente, assino — criticando essa política ‘Uma Ponte para o Futuro’. Toda essa justificativa da dificuldade orçamentária, que eu comecei esta entrevista criticando, eles querem resolver com cortes aos programas que atingem os mais necessitados e com privatização, produzindo cobrança complementar para a população. Isso foi um desastre na Colômbia, um desastre social, sanitário. A gente tem uma avaliação científica de que isso não só não resolve como cria exclusão, cria heterogeneidades no que diz respeito à cidadania, à equidade. Nós somos contra aquilo que está no projeto, e que esse ministro da saúde agravou. Mesmo essa correção que ele faz [depois da repercussão negativa da entrevista] indica uma tendência à desconstrução do SUS, da gratuidade, da equidade, da integralidade, da universalidade. Nós somos contra e, caso eles não recuem, vamos ter que articular movimentos sociais para impedir essa contrarreforma no Brasil.
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