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Entrevista: 
Gastão Wagner

'Nesses dois anos o Ministério da Saúde atuou contra o SUS'

O presidente Michel Temer celebrou na semana passada dois anos desde que assumiu a chefia do Executivo após o impeachment que destituiu a ex-presidente Dilma Rousseff. Foi um período em que as entidades do movimento sanitário, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), se manifestaram publicamente em várias ocasiões contra propostas e programas apresentados pelo governo federal para o Sistema Único de Saúde (SUS). Medidas como a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), a revisão da Política Nacional sobre Drogas por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), a criação do Programa Nacional de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags), a proposta de planos populares de saúde defendida pelo então ministro Ricardo Barros, entre outras, foram alvo de críticas ferrenhas por sanitaristas e militantes do SUS. Nesse contexto de dois anos do governo Temer, o presidente da Abrasco Gastão Wagner faz uma avaliação sobre os impactos dessas e de outras medidas, como a Emenda Constitucional 95, para o SUS, que completou 30 anos no dia 17 de maio.
André Antunes e Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 22/05/2018 10h20 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Eventos, discursos e até uma campanha publicitária comemoraram, no dia 15 de maio, o marco de dois anos de Governo Temer. Dias depois, na mesma semana, comemoramos 30 anos da aprovação do texto do SUS pela Assembleia Nacional Constituinte. Como foram esses dois anos para o SUS? Por quê?

Foi um desastre, resumindo. Nesses dois anos, o Ministério da Saúde atuou contra o SUS. Ricardo Barros foi o segundo ministro da saúde nesses trinta anos que é contra o SUS. O primeiro foi o Alceni Guerra, que inaugurou o sistema. Ele e o presidente da época, Fernando Collor eram contra. Declaravam que era um modelo superado, um dinossauro, inviável, utopia, idealismo. O Ricardo Barros começa a gestão dele declarando que o SUS é muito grande, que tem que ser reduzido. O SUS é muito grande, sim. Apesar de todas as dificuldades, ele cresceu, e é muito importante para 75% da população que não tem outra alternativa. Houve uma expansão do acesso a tratamento de diabetes, hipertensão, pressão baixa, câncer, programas de vacinação. Então, eu acho que mesmo sendo contra, o governo federal, o Ministério da Saúde, tem que ter uma estratégia de desconstrução gradativa, lenta e segura. Eles não têm capacidade política de enfrentar o SUS diretamente, como estão fazendo com a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], os direitos trabalhistas. Então a estratégia do Ministério é uma estratégia de desconstrução seletiva. Eu ando usando uma metáfora de que eles estão fazendo uma pressão em pinça contra o SUS. Um lado é uma pressão interna, que é uma ação contra o SUS a partir do próprio Ministério e enfraquecimento do SUS, através de várias medidas. Uma delas é até de omissão do Ministério da Saúde no papel de liderança que ele tem na coordenação do SUS. Outra estratégia é a restrição orçamentária na execução financeira. O recurso é orçado, mas não é gasto, em vários programas. Isso agora vai se agravar com a Emenda Constitucional 95. A terceira estratégia, e agora com a mudança do ministro isso ficou evidente, é uma desqualificação dos cargos de confiança do ministério. Os diretores de programas, das secretarias, do Ministério da Saúde não têm experiência nenhuma na saúde, o currículo deles é na área de negócios. O Gilberto Occhi, e toda a equipe dele, da SGEP [Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa], da SAS [Secretaria de Atenção à Saúde], todos, são da área de negócios, com exceção do secretário-executivo que é da saúde, mas do setor privado. Não teria nenhum problema se fosse para indústria, comércio. É que o SUS é um sistema público. A quarta estratégia de desconstrução, mais grave, é que junto com essa omissão do Ministério há uma passagem progressiva de responsabilidades assistenciais para os municípios, com a desregulamentação de políticas que deram certo, como as de Atenção Básica, Saúde Mental e DST/aids. Eles estão delegando responsabilidades maiores pela assistência aos municípios e cada município pode fazer da forma que quiser. Não há uma indução, não há uma negociação. Então essa é a pressão interna. A externa é que o Ministério da Saúde se transformou em agente do desenvolvimento do mercado da saúde, das seguradoras privadas. A preocupação é com a expansão do mercado da saúde. Em um país em que a política é o SUS.

O início do governo Temer foi marcado por declarações polêmicas por parte do ministro da Saúde, como a de que o SUS não cabia na Constituição e de que as pessoas faziam exames demais. Esse embate inicial, que mereceu reações do movimento sanitário, foi amenizado ao longo desses dois anos?

Só se agravou. Tem um embate gravíssimo entre as entidades do movimento da Reforma Sanitária, e a relação com o Ministério é muito ruim. O Ministério rompeu a negociação com a gente, mas a gente faz oposição, critica todas essas medidas que descrevi. A Abrasco, o Cebes, entre outras entidades, nunca perderam a capacidade de negociar com os gestores, inclusive os federais. Então eu acho que é uma situação muito grave.

Acompanhamos, ao longo desse período, uma forte agenda do então ministro da Saúde, Ricardo Barros, e do próprio presidente Michel Temer, com entidades ligadas aos interesses privados na saúde. Um dos principais exemplos seja talvez a reunião entre Temer e o Instituto Coalizão Saúde (formulador e representante dos interesses das grandes empresas de saúde) semanas antes do impeachment. Como sanitarista e presidente de uma das maiores entidades representativas do movimento sanitário, a Abrasco, gostaria que você comentasse como foi a agenda desse movimento com o governo federal ao longo desses dois anos?

O espaço concedido à Abrasco foi alguma coisa próxima de zero. A gente tentou, pediu audiência, pedimos o direito de participação na tripartite, tanto na discussão da mudança da Política de Saúde Mental quanto na de Atenção Básica. Foi sempre negado.

Com alguma justificativa?

Nada. O apoio que os congressos da Abrasco sempre tiveram do SUS, do Ministério, nos últimos dois anos e meio foi zero. O governo rompeu a relação com as entidades do movimento sanitário. Aí se reúnem com o setor privado e com algumas entidades médicas.


E isso, nesses trinta anos de SUS, não tem precedentes, mesmo no contexto da gestão de Alceni Guerra no Ministério durante o governo Collor?

Não, nunca houve. Na verdade a nossa influência, da Saúde Coletiva, dos sanitaristas, continua porque uma parte pequena dos cargos do SUS, mas importante, continua sendo de concurso. E nas comissões assessoras dos programas, a gente ainda continua participando. Por exemplo, o Programa de Controle da Hanseníase tem uma comissão assessora que não é de funcionários, mas de pesquisadores, cientistas. A da febre amarela, da Aids, também. A gente continua participando desses fóruns. A Abrasco tem assento no Conselho Nacional de Saúde (CNS). Então aí a gente discute com os representantes do ministro da saúde enquanto membros titulares do CNS. Além disso, temos participado muito de audiências públicas, no Congresso, com o Executivo.

Medidas como a reformulação da PNAB - mais recentemente a criação do Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags) - e, principalmente, a proposta de criação de planos populares de saúde, mereceram críticas de boa parte do movimento sanitário. Qual a sua avaliação sobre isso?

Uma das pérolas da coroa do SUS é a atenção básica, a Estratégia Saúde da Família, que vem sendo construída de forma tripartite. A estratégia começa nos municípios, depois se transforma em uma política nacional. Essa revisão que a tripartite [Comissão Intergestores Tripartite – CIT] aprovou, com a conivência de estados e municípios, a Abrasco e outras entidades foi contra. Agora cada município pode fazer o que quiser. Se fizer pronto atendimento apenas e dizer que é atenção básica, tudo bem. Ou seja, o repasse não é usado como instrumento para induzir uma política nacional comum. Isso com certeza está reforçando uma tendência de enfraquecimento da atenção básica. Não está havendo reposição de equipes. A gente está acompanhando isso em várias cidades, pequenas, médias e grandes. Em Campinas, no Rio de Janeiro.

A outra foi a saúde mental, nessa estratégia incremental, progressiva, de desconstrução do SUS. A Política de Saúde Mental tem uma legitimidade social, científica muito grande. Os CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] e as RAPS [Rede de Atenção Psicossocial] têm uma capacidade de reabilitação muito maior do que os hospitais psiquiátricos, do que os manicômios. Não há como negar isso. O foco deveria ser expandir e aperfeiçoar a rede, não desconstruir. Como eles não tem coragem de fazer isso, então fizeram a mesma estratégia da PNAB. Eles vão repassar o financiamento da saúde mental, independente do modelo de cada estado, de cada município. Ou seja, é muito mais difícil para os municípios enfrentarem o poder médico dos hospitais do que o SUS todo.

Os planos populares é a mesma coisa. Só 25% da população tem condição de ter seguro privado, direto ou indireto. E essa concorrência aumentou, principalmente de quatro anos para cá, com a abertura do mercado da saúde para o capital estrangeiro, e não há como expandir, ainda mais com o desemprego, com a desindustrialização, ou seja, com esse conjunto de fenômenos que estão ocorrendo. Então o setor privado, e aí com o apoio do Ministério da Saúde, está mirando os R$ 240 bilhões que o SUS teve. E esses planos entram dentro dessa estratégia, de expandir os 25% da população que compõe o mercado do setor privado.

Com relação ao Profags, é uma tendência contrária ao SUS, porque os agentes comunitários de saúde são um sucesso como apoio à prevenção, ao cuidado na atenção primária. O técnico e o auxiliar em enfermagem têm outro papel, um papel interno. A formação do agente comunitário de saúde é para atuar no território, no domicílio, nas escolas.


Um problema historicamente apontado no campo da saúde é o subfinanciamento. Houve mudanças em relação ao financiamento da saúde nesses dois anos?

A partir desse ano, a saúde vai estar sujeita a emenda constitucional 95, mas mesmo antes, em 2016 e 2017, há uma diferença muito grande entre o que é orçado para a saúde e o que é executado. O Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] está fazendo esses estudos, com autonomia. A Associação Brasileira de Economia da Saúde também, demonstrando que o gasto efetivo do Ministério da Saúde em 2017 é menos do que em 2016 e em 2015. Então, há uma compressão orçamentária. O que reflete nos estados, porque os estados e municípios também estão em crise orçamentária. E os cortes têm sido horizontais, ou seja, não corta onde há privilégio, onde é mal aplicado, mas corta tudo. A saúde tem sido cortada. Há dados de diminuição da capacidade de atendimento do SUS, na área hospitalar, na atenção básica, em ambulatórios. Em três anos, observamos um desmonte. A gente não tem estimativa ainda, porque varia de região para região, mas nós estamos investigando isso. Mas com certeza, o SUS diminuiu a capacidade de atendimento, o acesso foi prejudicado.


A medida de maior impacto nesses dois anos de governo talvez tenha sido a criação da EC 95, que congela os gastos federais durante 20 anos. Qual sua avaliação sobre essa medida e que impactos ela tem sobre a saúde?

A Emenda vai ser o instrumento mais agressivo contra as políticas públicas e também contra o SUS. Um estudo do Ipea mostra que, se permanece essa emenda, se a gente não derruba essa emenda, a previsão é que em oito anos nós vamos perder 30% do financiamento da saúde. Por isso que a revogação dessa emenda constitucional está no centro da nossa agenda.

O mandato do presidente Michel Temer se encerra no final deste ano. Quais devem ser as principais pautas, demandas e expectativas do movimento sanitário para a saúde a partir de 2019?

Eu estava vendo a última pesquisa do Ibope sobre o que a população aponta como os principais problemas que os candidatos deveriam enfrentar. O campeão no Brasil inteiro é a saúde. O povo precisa do SUS, o valoriza, mas está reconhecendo que tem muito problema. Então eu acredito que um tema da campanha vai ser o SUS. As pessoas vão ter que se pronunciar. Candidatos a governador, presidente, deputado e senador vão ter que se pronunciar sobre se vão defender o SUS, se pensam no SUS como um sistema da saúde para toda a população. Se concorda com o Ricardo Barros, que o SUS deve ser restrito a grupos muito pobres da população, o resto é mercado. De qualquer forma, as entidades da saúde, do movimento sanitário, vão provocar os candidatos, cobrando uma posição sobre o SUS, em geral e no particular: financiamento; política de pessoal; expansão; consolidação da atenção básica; expansão da atenção hospitalar pública; enfretamento da privatização. Queremos tornar públicas, antes das eleições, as posições dos candidatos sobre o SUS, para depois cobrar.