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Entrevista: 
Yeda Duarte

‘Ninguém penaliza o Estado por não ter política pública para os idosos’

Nesta entrevista, Yeda Duarte, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do estudo Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe) no Brasil fala sobre os resultados da pesquisa, iniciada em 2000, e sobre o desafio de criar políticas públicas voltadas para essas populações
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 28/01/2022 09h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Quais as principais ‘conclusões’ do Sabe hoje sobre o envelhecimento no Brasil e na comparação com outros países? Há diferenças substanciais entre o começo do estudo e agora?

O Sabe é um estudo longitudinal de múltiplas coortes, sobre as condições de vida e saúde dos idosos residentes do município de São Paulo. A primeira coleta de dados foi em 2000 em sete centros urbanos da América Latina e Caribe. Naquela época a Organização Panamericana de Saúde, que já vinha estudando isso há muito tempo,  verificou que nessa região o envelhecimento estava acontecendo de uma forma extremamente rápida, sem que esses países em desenvolvimento tivessem alcançado as melhores condições socioeconômicas, de saúde, de estrutura, saneamento, escolaridade, etc. Em todos os outros países eles aconteceram na capital e no Brasil isso aconteceu na cidade de São Paulo porque Brasília é uma cidade construída, não teve um desenvolvimento natural, ela tem características que lhe são peculiares. Daí nós começamos então em 2000 e pegamos a população de 60 anos e mais, na época. E fizemos uma sobreamostra que a gente chama, de pessoas de 80 anos e mais para que agora 21 anos depois, eu ainda tivesse pessoas dessa coorte, senão eles morreriam antes e aí a gente muito possivelmente não teria representatividade. Em média nós voltamos a campo a cada cinco anos, então nós fizemos Sabe em 2000, 2006, 2010, 2015, éramos para ter voltado em 2020, não voltamos por conta da pandemia. Fizemos o inicial da coorte nova, que a gente chamou de Sabe Covid e agora vamos voltar, se tudo der certo, se a gente conseguir financiamento, em 2022. Então a ideia foi entender as condições de vida e saúde das pessoas. O que a gente pode comparar com o Brasil como um todo? Primeiro porque São Paulo proporcionalmente não é a cidade mais envelhecida do Brasil, mas em números absolutos tem o maior número de idosos no país. Sem  considerar a Grande São Paulo, nós temos hoje mais de 1,8 milhão de idosos. São do país inteiro e de outros países, então eu tenho uma miscigenação extremamente importante. Então o que nós vimos? Tem uma coisa que é padrão que nós temos o envelhecimento predominantemente feminino, isto é uma questão mundial, nós temos mais mulheres idosas do que homens idosos. Nós mulheres ainda vivemos mais que os homens, porém isso é uma questão de faixa etária, porque conforme você vai elevando a faixa etária o tempo de esperança de vida vai igualando. Então a população de 80 anos e mais é a população que mais cresce, e aí a diferença entre homens e mulheres em termos de expectativa de vida é muito pequena. Então tanto homens quanto mulheres que chegarem aos 80 anos eles tendem a viver aproximadamente o mesmo tempo de vida, ou muito parecido. Então um vive 11 anos, o outro vive 12 anos, vamos dizer assim, então as diferenças elas se assemelham. Porém, chegam muito mais mulheres do que homens nessa faixa de idade. Isso é uma coisa que não acontece só no Brasil, mas no mundo inteiro.

Então no processo de envelhecimento da população no Brasil e no mundo, isso está dado epidemiologicamente, quando você muda a transição demográfica, você muda a transição epidemiológica. Então você troca um padrão de doenças mais contagiosas por um padrão de mais doenças crônicas, embora nós tenhamos tido grandes infecções, agora com a Covid, tivemos a AIDS. Mas os idosos eles têm doenças crônicas? Tem várias. E tem uma coisa que nós chamamos de multimorbidade, em que as pessoas apresentam duas ou mais doenças ou condições crônicas ao mesmo tempo. Isso é uma característica bastante importante das pessoas idosas. Então no SABE, por exemplo, a gente viu que, quando eu olho a população como um todo, eu tenho 60% da população idosa aqui que tem multimorbidades. Então eles têm pelo menos duas ou mais doenças crônicas, às vezes são quatro, cinco. Isso faz dele uma pessoa doente? Não, eu ter uma condição crônica não me transforma em um doente. O que é padronizado pela Organização Mundial da Saúde já desde que foi decretado a política do envelhecimento ativo é que o principal indicador de condição de saúde das pessoas idosas seria sua capacidade funcional. Então apesar de eu ter múltiplos problemas crônicos, eu consigo viver de forma independente? Se sim, está tudo bem. Então eles associam o saudável a essa melhor oportunidade que as pessoas têm de continuar participando ativamente da sociedade, mesmo que ele tenha uma ou mais condições crônicas.


O que se entende como conseguir participar ativamente da sociedade para um idoso?

Você avalia se a pessoa é capaz de funcionar na vida, de gerir a própria vida de forma independente ou com alguma ajuda tecnológica assistida. Então por exemplo, se eu tenho alguma dificuldade de andar, eu tenho artrose, por exemplo, eu posso compensar isso com uma bengala. E isso não me impede de fazer absolutamente nada, eu continuo tendo uma vida absolutamente normal. Talvez eu ande um pouco mais devagar, mas isso não me impede de continuar fazendo tudo que eu preciso fazer. Então o que mede funcionalidade é aquilo que a gente chama de dificuldade no desempenho das atividades cotidianas. Aqui em São Paulo, por exemplo, 46% da população idosa tem comprometimento em uma ou mais atividades que a gente chama de instrumentais. Nós estamos falando, por exemplo, de tomar um transporte público de forma independente, de carregar pacotes de compras com 5kg ou mais. Estamos falando de usar telefone de forma independente, ou porque não escuta ou porque não conseguem. Mexer com dinheiro, ir ao banco, gerir as minhas próprias contas, afazeres domésticos, sejam eles leves ou pesados, etc. Então esse conjunto de atividades mostra se a pessoa é capaz de ter uma vida doméstica independente de forma tal que ela consiga ainda residir sozinha sem ajuda. Em São Paulo, por exemplo, nós temos aproximadamente 16% da população que reside sozinha. E dentro do grupo que reside sozinha tem muita gente com 80 anos e mais e tem até com 90 anos e mais que residem sozinhos. Residir sozinho não é um problema, quando isso é uma escolha, ele passa a ser um problema quando isso é uma falta de escolha. Isso é uma coisa que a gente estudou bastante na pandemia, porque a recomendação era restringir os idosos dentro de casa, que eles circulassem menos. Aí você fala, bom, mas se ele mora sozinho, ele tem ajuda para trazer comida, medicamento, as coisas que ele necessita? Se ele tem muito que bem. E se ele não tem? Aí você vai falar, ele pede; ele pede como? Será que ele é capaz de usar o telefone, o smartphone, será que ele tem essa condição? Criou-se uma imagem de que isso é simples, fácil, isso é uma mentira. Durante a pandemia, pelo menos, cerca de 30% da população idosa como um todo era capaz de usar telefone ou telefone celular. Aí você fala, e os outros 70%, que é a maioria expressiva da população? Ou ele tinha ajuda ou ele saía, então ele quebrava a restrição porque ele não tinha como se manter vivo sem comida, sem medicamento, sem outras coisas. As políticas públicas precisam entender como a população idosa é até para que eu possa organizar serviços de apoio. Historicamente nós já tivemos isso em outros locais e parece que a gente não aprende. Você tinha que ter já pensado em uma estratégia de política pública para ajudar essas pessoas, o que não aconteceu. Quando aconteceu, aconteceu por iniciativa da sociedade civil e não por iniciativa das políticas governamentais, isso foi uma coisa importante na pandemia, que aconteceu no Brasil como um todo. 


Quando a gente fala em abandono de idoso muitas vezes a gente faz uma referência direta à família e não ao Estado, ao papel que o Estado tem. Contextualizando especificamente na pandemia, o que poderia e deveria ter sido feito como política pública ou como ação da sociedade civil para contornar esse problema que a senhora apontou?

Tradicionalmente, na América Latina de um modo geral, nós temos uma coisa chamada familismo, nós damos à família a completa e total responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes e, dentre elas, você coloca as pessoas idosas também. E as pessoas esquecem que é constitucional que a responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes, incluindo crianças doentes, idosos, etc, é da família, da sociedade e do Estado. Mas só a família é criminalizada se não acontecer, então se o idoso está residindo sozinho alguém faz uma denúncia e vão atrás de um parente que ele não vê há 30 anos, essa pessoa vai ser acionada judicialmente para cuidar daquele que ele mal conhece, porque não conviveu com ele. Então o Estado passa para a família a responsabilidade absoluta por cuidar dos idosos e, quando isto não acontece o único penalizado é a própria família. Ninguém penaliza o Estado por não ter política pública para os idosos, ninguém penaliza a sociedade porque não ajudou os idosos durante a pandemia, por exemplo. O que poderia ser feito? Se eu tenho uma população que progressivamente envelhece, eu tenho que primeiro conhecer bem essa população. Eu vou trabalhar com os grupos que são mais vulneráveis, que são os primeiros que vão precisar de alguma coisa. Dentro dos grupos mais vulneráveis eu vou ter os idosos com algum grau de dependência. Então pessoas que se precisarem ficar restritas por alguma razão vão precisar de ajuda. Eu tenho que ter estratégias de intervenção prontas e atuantes. Então, por exemplo, aqui na cidade de São Paulo e na cidade de Belo Horizonte existem já há muitos anos programas públicos que são programas de cuidadores. Aqui em São Paulo se chama Programa de Acompanhante de Idosos. Eles vão à casa dos idosos que residem sozinhos, dos idosos que vivem em casas onde só vivem idosos na casa ou mesmo existindo cuidador ele também é idoso, por exemplo, e vê se a pessoa precisa de ajuda para algumas coisas. Elas não ficam lá como um homecare de uma empresa privada, por exemplo, mas elas vão, ajudam. São iniciativas que existem aqui e existem em diferentes lugares do mundo e isso faz absoluta diferença em termos de manutenção da saúde e da qualidade de vida das pessoas.


Isso funciona e funcionou na pandemia?

Funcionou muito bem. Foi o que salvou muita gente. Porque entre as funções dos acompanhantes está, por exemplo, ir no médico com o idoso se ele precisa e neste momento, se o idoso não podia sair, ele podia ajudar com as atividades, por exemplo. Faz absoluta diferença, você devolve a essa pessoa qualidade de vida. São estratégias públicas ligadas a secretarias municipais que já provaram que são altamente pagáveis, elas não geram um ônus público como costuma se falar, que parece que o idoso é a grande causa do buraco financeiro do Brasil, o que é uma mentira. E você evita que essas pessoas o que o é caro: internação hospitalar em uma terapia intensiva. Agora, se eu consigo manter essa pessoa adequadamente assistida na própria casa dela, que é o que se preconiza em qualquer lugar do mundo, eu vou garantir que a população continue vivendo muito bem obrigada, claro que com as suas limitações, com os seus problemas, mas esses problemas assistidos adequadamente e elas vão viver a sua longevidade da melhor forma possível. E continuando a participar ativamente da sociedade mesmo tendo limitações. É isso que se espera de uma política pública que olha para uma população que envelhece. E infelizmente a gente ainda não tem isso, a gente tem isso muito no discurso, algumas iniciativas bem pontuais. Então é nesse país que a gente vive e é isso que a gente precisa mudar.


Quais são as principais doenças que atingem a população idosa e quais são os elementos, que não são propriamente doença, mas que são fatores, determinantes sociais, da saúde, da doença, fatores sociais que não dependem só da pessoa, que têm mais influência hoje sobre a saúde e condições de vida da população idosa?

Quando a gente olha perfil epidemiológico você vai olhar as doenças e as condições de mortalidade. Então geralmente você olha do que adoece e do que morre uma população. Então quando você olha a questão da mortalidade, as doenças cardiovasculares são as principais causas de morte na população. Você vai ter sim doenças associadas a doenças cardiovasculares, como, por exemplo, hipertensão, que é a mais prevalente na população idosa, em São Paulo e no Brasil como um todo. A questão é: hipertensão mata? Depende, se você não tomar medicação, se você não fizer os cuidados que você tem que fazer, se você não tiver acompanhamento de saúde periódico, isto pode gerar consequências. Então não é que a hipertensão vai te matar, é o descontrole da doença. Então isso vale para qualquer doença crônica. Nós vivemos em um país de extremas desigualdades, mas nas grandes cidades essas desigualdades são gritantes. Aqui na cidade de São Paulo, por exemplo, ao mesmo tempo em que você tem um bairro como o Morumbi, no mesmo bairro você tem a favela de Paraisópolis. As condições de desigualdade adoecem mais as pessoas, então essas pessoas tiveram condições de vida piores. Então elas tiveram que trabalhar mais cedo, tiveram pior alimentação, não estudaram, não tiveram acompanhamento de saúde adequado durante o desenvolvimento, durante a infância, isso vai repercutir na vida adulta e na velhice. Então são pessoas que adoecem mais cedo, adoecem com doenças que incapacitam mais cedo e vão entrar nesse envelhecimento com condições crônicas mais precoces e talvez não tenham um acompanhamento adequado. Você vê essa diferença de acompanhamento conforme o nível socioeconômico das pessoas. O que é uma condição de desigualdade injusta, é uma iniquidade. Então na década do envelhecimento saudável, o primeiro ponto colocado é: você precisa conseguir que todo mundo possa envelhecer e possa envelhecer em condições justas para todos. Então os locais onde você tem mais desigualdades o investimento tem que ser para minimizar essas desigualdades, para que eu possa garantir que aqueles que têm menos condições tenham o suporte necessário para envelhecer como a população que tem mais condições. Então eu acho que a gente precisa olhar melhor para as nossas condições de desigualdades para que as políticas públicas olhem para isso de forma diferenciada e permitam que a população todos possam envelhecer, porque esse é o direito de todos. Então eu tenho direito a envelhecer e tenho direito a ser cuidado se eu não envelhecer bem, eu não posso ser penalizado porque não envelheci bem, talvez eu não tenha envelhecido bem justamente porque eu não tive condições para isso.


Há dados mais segmentados sobre essas condições de desigualdade? Falando de forma mais clara, o que influencia mais diretamente? Condições de moradia, cor e raça, renda?

Geralmente renda é um fator altamente determinante. Acontece que a gente tem uma questão de renda no Brasil diferente. Quando você estuda renda no Brasil é diferente de estudar renda na Inglaterra, na Europa. Na Europa você tem uma coisa que eles chamam índice de riqueza, aqui no Brasil você nunca vai conseguir fazer isso, porque as pessoas não contam quanto elas têm, quanto elas ganham porque elas têm medo do Fisco, medo de uma série de coisas. A gente tem uma vaga noção de renda das pessoas porque é o que elas falam que ganham. Então a prova disso sempre é a escolaridade, então quanto maior a sua escolaridade geralmente melhor a sua condição de renda também, melhor a sua condição socioeconômica. Com o envelhecimento a gente está vendo que progressivamente a condição de escolaridade dos idosos tem melhorado. Quando a gente começou o Sabe, por exemplo, mais de 50% da população idosa era analfabeta, hoje isso já baixou para em torno de 30%. Até porque os mais idosos também foram morrendo com o passar do tempo e aqueles que estão envelhecendo estão vindo com melhores condições ao menos de escolaridade.

Os estudos que trabalham especificamente com etnia demonstram que as  condições de desigualdade atingem mais as populações pardas e negras, atingem mais as populações socioeconomicamente menos favorecidas. E consequentemente essa população também vai adoecer mais. Ela não vai adoecer mais por conta da etnia, mas sim por conta da determinação social que está ligada a isso. Como eu tive uma pior condição de infância, juventude, adolescência, idade adulta, eu vou chegar no envelhecimento com uma condição de saúde mais comprometida e consequentemente com uma condição social mais comprometida também.

A gente tem uma condição no envelhecimento que é uma condição extremamente importante, que na pandemia agora fez muita diferença. Então eu tenho entre os idosos uma prevalência importante de problemas osteoarticulares. Então essas pessoas vão ter dificuldade para se cuidar, para carregar compras, por exemplo. Isto compromete de forma significativa a qualidade de vida das pessoas idosas, mesmo que não as mate. E aí quando a gente olha em paralelo a isso, 42% da população idosa, tem uma coisa chamada dor crônica. Dor é algo que mostra que tem alguma coisa de errado. Então na hora que eu vejo que quase metade da população idosa tem dor crônica, significa dizer que eles estão inadequadamente avaliados e assistidos. Porque existe ainda um mito que parece que ter dor crônica é normal para o idoso. Não, ela pode ser frequente, mas nunca é normal. Aí na hora que ele tem dor crônica ele procura assistência, se não é adequadamente assistido ele começa a se automedicar e aí, por exemplo, aqui em São Paulo 40% da população idosa toma cinco ou mais medicamentos diferente. E não são só os medicamentos prescritos pelos médicos, eles chegam nas farmácias e compram medicações, analgésicos, anti-inflamatórios, coisas que eles não podem tomar e muitas vezes impacto na saúde. Porque ele está tentando resolver o problema. Quem deveria estar ajudando a resolver não está. Então a gente tem um problema de formação profissional que ainda é muito importante no nosso país.


Dos profissionais de saúde?

É. Nós temos menos geriatras, mas todos os profissionais formados para a área da saúde deveriam aprender envelhecimento como aprendem pediatria. Todo mundo aprende a cuidar de criança, todo mundo aprende a cuidar de gestante, em qualquer curso da área de saúde você aprende isso. Agora, nem todo mundo aprende a cuidar de idoso, como isso pode ser aceitável em um país envelhecido como o Brasil, com 33 milhões de pessoas com 60 anos ou mais.


O SUS está preparado para as questões trazidas pelo envelhecimento? A Atenção Básica funciona bem como porta de entrada e acolhimento?

A gente tem muita oscilação conforme o governo. Em alguns períodos nós tivemos grande investimento em termos de formação profissional ou pelo menos de informação, vamos dizer assim, voltada para questão do envelhecimento para capacitação dos profissionais de saúde, principalmente da atenção primária. Mas é verdade que a gente tem na atenção primária este olhar mais voltado para o idoso? Isso varia de região para região. Aqui, por exemplo, no município de São Paulo foi feito uma estratégia de implantar na Secretaria Municipal de Saúde para todas as unidades o que eles chamaram de avaliação multidisciplinar da pessoa idosa. Então toda pessoa idosa ela deve ser avaliada segundo esse protocolo para se determinar se ela está fragilizando ou não e, se sim ela será encaminhada para um centro de referência, comunidade de referência à saúde do idoso para ter um acompanhamento mais adequado. Mas isso foi uma estratégia do município de São Paulo. Isso depende um pouco da gestão de cada local. Eu ainda acho que precisa, muito precisa ser feito para de fato as pessoas idosas serem incorporadas na assistência mais adequada segundo as suas necessidades. Então isso esbarra na formação, na educação permanente, no controle periódico das ações que estão sendo feitas, etc. O que a gente precisa é de um olhar macro para isso também. A gente precisa que o idoso entre na renda, a gente precisa da questão das políticas de cuidado de longa duração, que nós discutimos já há muitos anos e agora existe, foi criado uma comissão para fazer isso, mas uma comissão do governo que nem conversa com a área técnica especialista na área.


Eu queria insistir em um ponto, em relação ao funcionamento do SUS e particularmente da atenção básica. A atenção básica no Brasil se orienta pela Estratégia de Saúde da Família, e é o agente comunitário de saúde que é o profissional da atenção básica que faz visita domiciliar.em um desenho ideal, desejável, existe um papel do agente comunitário de saúde que deveria ser mais aproveitado, mais preparado, mais organizado para a saúde com o idoso especificamente?

Eu acho que sim, do meu ponto de vista sim, se eu sou a pessoa que vai na casa, eu sou a pessoa que vai identificar o que está acontecendo. Agora para eu poder identificar o que está acontecendo, se o que está acontecendo é um problema ou não eu preciso ter este olhar diferenciado. Um exemplo clássico: conforme a gente vai envelhecendo a gente vai tendo uma manifestação dos problemas e das condições de saúde, em relação às doenças propriamente ditas, eu vou manifestar isso de forma diferenciada. Então, por exemplo, eu vou apresentar infecção sem febre, enfarte sem dor, então eu vou ter algumas características diferenciadas em relação a uma série de problemas. Se o agente comunitário não tem este olhar diferenciado ele não vai ser sensível a identificar uma alteração presente. E não é porque ele não é capaz, é porque ele não foi treinado para isso. Então eu preciso sim habilitar, capacitar permanentemente os meus agentes comunitários a ter esse olhar diferenciado sim, porque ele é a ponte que liga o serviço às necessidades da comunidade. Se ele não for capaz de identificar o problema, o problema não chega ao serviço.


Quais os principais aspectos comportamentais – cigarro, drogas, atividade física, alimentação - que influenciaram a diferença na qualidade do envelhecimento? 

Tem uma coisa importante que também acho que é um mito que a gente precisa combater. Uma coisa que se fala muito e, nesse governo infelizmente, principalmente na época da pandemia isso se tornou de alguma forma importante, é dizer que o idoso é um peso. O idoso é um ônus, ele é um ônus para o INSS, é um ônus para a sociedade. Isso não é verdade. Não é ele o grande buraco do INSS. Na verdade a população idosa ela mais ajuda do que é ajudada e a gente normalmente não valoriza isso. Eu tenho quase um quarto da população idosa, não só em São Paulo, mas do Brasil como um todo que vai precisar de ajuda de alguém, mas isso quer dizer que eu tenho 75% da população idosa que é independente, que cuida da própria vida, que cuida do seu entorno e que muitas vezes cuida da família. Então a maioria dos idosos mais ajuda do que é ajudado e agora na pandemia, por exemplo, foi graças a muitos idosos que muitas famílias puderam se manter. Porque eles perderam emprego e o idoso tinha aposentadoria, então quem mantinha a casa eram as pessoas idosas. Então ele tem um papel social extremamente importante na manutenção de vida das famílias e da sociedade de um modo geral, essa eu acho que é uma primeira coisa que a gente precisa enfatizar e desmistificar da maneira que estão sendo postas as coisas. Em relação a estilo de vida, claro que o estilo de vida foi progressivamente sendo modificado. Então, por exemplo, quando você pega os idosos com 80 anos ou mais eles vêm de uma fase da vida, de uma infância, de uma idade adulta onde nós não tínhamos as mesmas regalias que nós temos hoje. Então muitos vêm da zona rural, trabalharam na zona rural, eu não tinha carro como tenho hoje. Eles tinham alimentação mais saudável sim, tinha menos alimentos ultraprocessados. Muitos fumavam e bebiam porque isso era até entendido como uma condição social, mas eu não tinha a questão do uso indiscriminado desse tipo de comportamento e até do uso de drogas como tem hoje em dia. Então a sociedade mudou e ela mudou para comportamentos mais nocivos e é claro que progressivamente isso também está influenciando o comportamento das pessoas idosas. Só que os que estão envelhecendo hoje estão vindo da geração da mudança cultural. Eles chegam com problemas crônicos, como os idosos de um modo geral, mas uma condição preocupante é que eles estão chegando com incapacidades mais precoces. Então antes eu tinha as pessoas de 60 a 70 anos, por exemplo, eu tinha um percentual muito baixo de pessoas com algum tipo de incapacidade, hoje esse percentual está aumentando. Porque o discurso de promoção de saúde é mais recente, então ele não atingiu essas pessoas quando elas eram jovens ou adultos jovens, ele só veio a atingir quando já estavam na meia idade para a velhice. Agora, em qualquer idade uma mudança de hábito para um hábito mais saudável faz diferença. Então você já tem toda aquela questão de uma política da cidade amiga do idoso, você tenta estimular que as pessoas saiam, façam atividades, porque a tecnologia avança de forma tal a tornar as pessoas cada vez mais sedentárias. E isto é ruim em termos de saúde. Além do que, isso tende a isolar as pessoas, que vão ficar cada vez mais fechadas e conviver menos socialmente.

A questão de participação em grupos. Isto é bom? Sim, é muito bom. As pessoas vão? Não necessariamente. Quando você vai fazer orientação educacional, trabalhar questão de saúde, elas sempre são em grupos. Por quê? Grupo de hipertensão, grupo de diabetes, grupo do obeso. As pessoas vão? Vão. Vão aderir? Não necessariamente, mas pelo menos esta convivência grupal possibilita diferentes trocas, e isso é extremamente positivo. Não é todo mundo que gosta. Nós perguntamos no Sabe uma vez se eles gostavam de participar das estratégias grupais, dá menos de 40% da população idosa. Eu preciso saber disso para que eu possa fazer outras intervenções, não só um único tipo de estratégia. 


Por exemplo?

Tem uma experiência que foi feita em uma equipe de saúde da família que foi bem interessante, foi uma das experiências exitosas apresentadas no ministério. Uma enfermeira de uma unidade básica de saúde começou a perceber que nos diferentes grupos de orientação, de hipertenso, diabéticos, as pessoas se repetiam, quem vinha no grupo de hipertensão vinha no grupo de diabetes, vinha no grupo da obesidade e tal. Então eles estavam em uma unidade várias vezes por semana em grupos diferentes. Por quê? Bom, porque ele era hipertenso, diabético, obeso, cada dia aponta uma coisa ele vai cada dia em uma coisa. Então ela começou a perceber que tinham várias senhoras idosas que estavam repetidamente nesses grupos e ela percebeu também que assim, elas estavam emagrecendo, com baixo astral e tal. A maioria delas residia sozinha. Porque ficou viúva ou porque não tinha família, por N razões diferentes. O que ela fez? Ela combinou com elas assim, que cada dia da semana uma delas seria responsável por fazer o almoço, não precisava ser grande coisa, mas ia fazer o almoço e todo mundo ia comer na casa dela. Quando você precisa cozinhar para alguém primeiro você arruma sua casa, você se arruma, você se preocupa com o que você vai fazer. E quando você vai na casa de alguém você também se arruma, o idoso sempre leva alguma coisinha na casa para o outro, isso é cultural. Então você gera demandas mentais diferentes, o que estimula a sua plasticidade neurológica, você vai criar novas redes neurais, isso é bom para a cabeça. Você melhora o autocuidado da pessoa justamente porque ele vai sair, vai na casa do outro, vai ser observada. Ela começou a perceber que depois de um tempo estas pessoas se transformaram em um grupo de amigas. Passaram a sair juntas, passaram a fazer programas juntas, diminuíram as suas vindas na unidade de saúde. E isso melhorou significativamente a qualidade de vida dessas pessoas. Você precisou só de um profissional que tivesse um olhar um pouquinho diferenciado e prestasse atenção na população que ele atende. O que os estudos internacionais já mostraram é o que faz absoluta diferença para você envelhecer com melhor qualidade de vida, é você manter uma rede social presente e ativa. Em outras palavras é ter amigos. Na Estratégia de Saúde da Família, se os programas de atenção à saúde, programas de atenção social tiverem este olhar diferenciado eles vão estimular esse tipo de coisa e isso que vai fazer com que a população envelheça com melhor qualidade.


Há uma certa romantização do debate sobre o emprego na terceira idade.   Ao mesmo tempo que isso pode ser um caminho para construção dessa rede social, também tem a história do idoso ter trabalhado a vida toda e ter direito a descansar. Vocês conseguem perceber nas pesquisas de vocês alguma interferência nisso? Isso varia de acordo com a classe social, como a senhora avalia?

Assim, no Sabe a gente tem uma parte que fala da questão do trabalho. A maioria dos idosos ou são aposentados ou são pensionistas ou são aposentados e pensionistas. O que não quer dizer que ele parou de trabalhar. Os idosos de hoje, principalmente os idosos um pouco mais longevos, assim de 70 anos e mais, eles vêm de uma geração onde o lazer era entendido como ócio. É um erro isso, mas era. Então o idoso entende que ele tem que trabalhar, trabalhar é importante. Ele quer ter aposentadoria, ele não quer necessariamente parar de trabalhar. Agora, a sua melhor performance mental em todos os sentidos ela é depois dos 50 anos, é onde você usa os dois hemisférios cerebrais, é onde você consegue ter uma visão do conjunto de forma mais integrada. Então quando você tem o potencial do idoso em termos de trabalho, é muito diferente do potencial do jovem. O jovem pode ser mais rápido, mas o idoso faz um trabalho com melhor qualidade. Tanto que você tem essa questão da estimulação das empresas a abrirem vagas para as pessoas de 50 anos e mais. Lógico que você tem uma questão de mercado de trabalho que precisa ser trabalhado nesse sentido, mas que há mercado para isso há. E há qualidade de trabalho também para isso? Também há. Então acho que este é também um dos mitos que precisa ser combatido. O velho não vai tirar o emprego do jovem.


A senilidade é um processo próprio do envelhecimento, independentemente de outras doenças? Em que consiste? Há outros?

Tem duas coisas que precisam ser diferenciadas. Uma coisa é senescência outra coisa é senilidade. A senescência a gente entende como mais frequente ou normal no processo de envelhecimento. Você vai ter movimentos mais lentos, vai ficando com mobilidade um pouco mais comprometida, esse tipo de coisa. Mas sem que isso atinja o limiar de incapacidade. Então a minha performance física conforme eu vou envelhecendo é diferente da minha performance física quando eu tenho 15, 20 anos. Mas isso não é um problema, isso tem a ver com a idade mesmo. Isso não é um problema de saúde. A senilidade está associada com as doenças e os problemas relacionados às doenças que acontecem mais frequentemente no envelhecimento. Então um idoso senil é um idoso doente, não existe idoso senil normal. Então eu não posso entender a senilidade como algo normal da velhice, ela está relacionada à doenças e a problemas de saúde. Eu tenho uma prevalência de declínio cognitivo que gira em torno de 10% a 15% da população, o restante não é. Então por que eu fico achando que todo velho com qualquer alteração de memória tem demência? Porque isso virou um fantasma na vida dos idosos. As demências são mais prevalentes nos idosos, porém elas podem acontecer em qualquer outra idade adulta. Ela aumenta conforme a idade do idoso aumenta, a prevalência de demências em idosos mais longevos é maior do que idosos menos longevos. Mas ela não chega a atingir nem metade da população. Então, não, a senilidade não é normal, senilidade é condição de doença.

Em janeiro de 2022 vai ser lançado a Classificação Internacional de Doenças versão 11. Na CID 11 a velhice foi colocada como um código, o que é um absurdo. Então a gente está tendo todo um movimento de combate a isso para que esse código seja excluído, porque ele carrega com ele uma questão de preconceito contra as pessoas idosas de forma bastante importante.


À que se deve isso?

Existe uma indústria muito poderosa por trás disso, do antienvelhecimento, ligada aos grandes laboratórios, ligada a áreas genéticas, está ligada a Google, Microsoft etc. Você tem indústrias poderosíssimas por trás disso, porque na hora que você coloca a velhice como doença ela precisa ser diagnosticada, portanto ela gera uma série de exames, intervenções, tratamentos, etc. Então ela vai ser diagnosticada, ela vai ser tratada para ser eliminada. Agora, eu vou conseguir eliminar a velhice? Só matando os velhos. Isso não existe, a pílula da juventude não existe.


Quais foram os principais impactos da pandemia para a população idosa no Brasil?

A pandemia ela é uma tragédia mundial, essa é a primeira coisa que eu acho que a gente tem que colocar. Nesta tragédia mundial, a primeira população altamente atingida, mais vulnerável eram as pessoas idosas. Então foi quem começou a morrer de forma mais significativa no mundo inteiro. 70% da população que veio a óbito eram idosos. E principalmente idosos institucionalizados. Quando foi decretada a pandemia aqui no Brasil, que se começou as medidas de isolamento, um pouco antes disso, a gente estava preocupado com o que a gente estava vendo de notícia no resto do mundo, principalmente na Europa, na Itália, Espanha, onde você tinha casas de repouso, instituições de idosos onde muitos morreram. Não tinha ninguém trabalhando, tinham ido embora e os idosos lá mortos. Então tiveram notícias trágicas, imagino que você tenha visto isso. Daí nós estávamos preocupados com isso porque nós sabemos a nossa realidade em termos de instituições no país. Eu tinha coordenado um inquérito nacional das instituições de longa permanência um pouco antes e tinha visto esse retrato muito preocupante. A gente fez um documento que se chamou O Grito de Alerta para as Instituições, em março do ano passado, isso gerou uma mobilização dos ministérios da Saúde e da Cidadania para que fosse feita liberação de auxílio emergencial para as instituições, para que a gente não tivesse aqui esse gerontocídio que a gente chamou no documento, que estava acontecendo em outros locais. A partir disso, houve todo uma mobilização e foi criada a Frente Nacional de Enfrentamento da Pandemia nas Instituições de Longa Permanência, com certeza a maior experiência em termos de sociedade civil voltada para o envelhecimento. Então se criou um movimento que está vigente até hoje e que fez absoluta diferença no acompanhamento da pandemia nas instituições do Brasil inteiro e daí nós conseguimos evitar aquilo que aconteceu em outros locais. Nós tivemos mortes? Sim, tivemos, mas de longe isso foi parecido com o que aconteceu em outros lugares. A pandemia trouxe muita tragédia, mas ela trouxe algumas coisas positivas, como a união das pessoas, de técnicos de diferentes pessoas da sociedade civil que trabalham em prol do envelhecimento que se uniram voluntariamente para trabalhar em prol da melhoria das condições de saúde e de vida dessas pessoas. Aqui na cidade de São Paulo propriamente dito, a gente fez o que a gente chamou de Sabe Covid. Quando a gente vai iniciar uma onda do Sabe, eu acompanho os idosos, introduzo uma coorte nova a cada onda de 60 a 64 anos. Então eu tenho que ter uma fase primeiro que é relocalizar essas pessoas, falar com eles, ver onde eles estão, se eles mudaram de casa, se estão vivos ou não, se mudaram de cidade. A gente faz tudo isso normalmente. Então a gente  juntou com isso duas coisas: uma é saber o impacto que a pandemia estava tendo na vida dessas pessoas, a outra é se eles estavam ou não conseguindo manter as restrições e se não estavam por que não estavam, se eles tinham acesso à tecnologia ou não, se tinham ajuda ou não. E nós fizemos uma parceria com o instituto Butantan na época, que estava estudando as populações mais vulneráveis para ver as variantes circulantes. Então nós entramos em contato com o grupo dos idosos do Sabe e tínhamos uma entrevista telefônica com eles e para os que concordassem nós íamos à casa, claro que com todas as medidas de proteção possíveis e coletávamos deles e dos contactantes exames sorológicos e para os que fossem assintomáticos nos 15 dias anteriores a essa visita nós coletávamos PCR também. Nós tivemos uma parcela de em torno de 11% de idosos positivos. Quem contamina os idosos? Os seus contatos, as pessoas saem, circulam, voltam para casa e esquecem que tem um velho em casa, tira a máscara, acaba levando essa contaminação para dentro da casa. Conseguimos ver que isso está associado a uma questão de desigualdade, então dentro da cidade de São Paulo, por exemplo, as regiões mais suburbanas, mais periféricas onde eu tenho piores condições de vida, casas com mais pessoas, maiores aglomerações dentro das próprias casas ou no seu entorno, eram onde tinha o maior índice de contaminação de contactantes idosos e onde ocorreram mais óbitos entre os idosos do próprio Sabe, por conta do Covid. Então a questão da desigualdade se colocou como fator importante na questão da pandemia para além do idoso ser vulnerável ou não. A outra coisa que a gente viu é que muitos idosos eram obrigados a quebrar as restrições por uma questão de sobrevivência, então ou ele não tinha quem o ajudasse ou ele não sabia mexer no smartphone, no telefone. Então ele quebra a restrição no sentido de sair de casa para conseguir aquilo que ele necessitava. Pela inexistência de uma política pública eficaz que pudesse auxiliá-los, eles se expuseram ao maior risco.

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