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Entrevista: 
Alda Cruz

‘O Brasil foi o primeiro país a lançar um programa de eliminação de doenças, que agora vai ser ampliado no âmbito do Brics’

Terminou na segunda-feira, 7 de julho, a 17ª Reunião da Cúpula do Brics, que aconteceu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Com um noticiário que enfocou principalmente as pautas econômicas, inclusive a ameaça do presidente estadunidense Donald Trump de aumentar as tarifas de importação dos produtos dos países do bloco, talvez poucos tenham notado que questões de Saúde Pública também foram tema do encontro, que, entre outras medidas, incluiu na sua declaração final uma parceria para a Eliminação de Doenças Socialmente Determinadas. A preocupação é com os diferentes tipos de enfermidades que atingem as populações mais vulnerabilizadas, a exemplo da tuberculose, hanseníase, malária e HIV/Aids. Como se sabe, o Brics é um bloco de articulação política e econômica entre 11 países de economia emergente: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã. E a ideia é desenvolver conjuntamente e compartilhar iniciativas voltadas ao combate de doenças associadas à pobreza e à desigualdade que permanecem como desafio para esses países. Para se ter uma dimensão da importância do tema, mais de 50% dos casos de tuberculose no mundo hoje foram registrados nos países que compõem o Brics. Nesta entrevista, a pesquisadora Alda Cruz, que é atual vice-presidente de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fiocruz e foi coordenadora adjunta do Programa Brasil Saudável, que serviu de referência para essa nova parceria internacional, explica o que são doenças socialmente determinadas e analisa a importância de esse tema ter sido alçado à prioridade dos chefes de Estado que compõem o Brics.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/07/2025 16h21 - Atualizado em 11/07/2025 10h46

No debate brasileiro sobre a saúde, é bastante conhecido o conceito de determinação social da saúde e da doença. Ao mesmo tempo, trabalhamos com a categoria de doenças negligenciadas, para nomear principalmente aquelas doenças infectocontagiosas ou causadas por parasitas que afetam as populações mais pobres, que vivem em piores condições. A ideia de determinação social é mais ampla do que a de doenças negligenciadas. Mas a que nos referimos exatamente quando falamos em Doenças Socialmente Determinadas?

O termo Doença Socialmente Determinada amplia o conceito, que é muito questionado, do ponto de vista conceitual, de doença negligenciada. A Organização Mundial da Saúde [OMS] tem um portfólio e uma definição do que são as doenças negligenciadas, que é um conceito que envolve não apenas o fato de atingir populações negligenciadas, mas também de serem doenças negligenciadas do ponto de vista da oferta, da disponibilidade de tratamento, vacina, etc. Por exemplo, o nosso top ten das doenças socialmente determinadas é a tuberculose. E a tuberculose não está na lista de doenças negligenciadas da OMS. Porque é uma doença para a qual temos investimento, métodos diagnósticos modernos, tratamento, novos medicamentos. A mesma coisa acontece com a malária. Mas existe também, por exemplo, a esquistossomose, que é uma doença que está na lista das doenças negligenciadas.

Se a gente pensar num conceito amplo, para as populações menos favorecidas, o determinante social vale para todas as doenças

A Doença Socialmente Determinada, como você disse, está além das doenças infecciosas. Se a gente pensar num conceito amplo, para as populações menos favorecidas, o determinante social vale para todas as doenças, porque elas não têm acesso. Mas a gente tem que delimitar, porque em termos de política de saúde, é preciso ter uma estratégia. No Brasil, já temos, historicamente, vários programas de eliminação de doenças infecciosas e o plano de eliminação da tuberculose veio com muita força a partir da entrada da ministra Nísia [Trindade]. Quando a proposta foi apresentada, ela, por entender muito a sociologia da saúde, orientou que a gente ampliasse esse leque de doenças. Daí entraram várias outras doenças [no foco do programa] e a gente criou um Comitê Interministerial para Eliminação de Tuberculose e outras Doenças Socialmente Determinadas, que ficou conhecido como CIED. Esse comitê foi instituído por um decreto do presidente Lula, que originou o Programa Brasil Saudável, de eliminação de Doenças Socialmente Determinadas. Nesse programa, especificamente, entraram 14 doenças infecciosas, parte delas de transmissão vertical, como, por exemplo, HIV, sífilis, HTLV e doença de Chagas.

É importante dize que quando a gente fala de eliminação de doença, é diferente de erradicação. Nós só erradicamos uma doença, que é a varíola. Nenhuma outra doença foi erradicada. Então, estamos falando de eliminação, com duas vertentes. Uma é a eliminação da transmissão, como aconteceu com a filariose [linfática], que nós eliminamos no ano passado. Outra vertente é a definição de metas operacionais. Por exemplo, para HIV, a meta é ter 95% das pessoas diagnosticadas, 95% das pessoas tratadas e com carga viral indetectável. Outra meta para o HIV é eliminar a transmissão vertical. Nós chegamos a essa meta e entregamos, dois meses e meio atrás, para o ministro [da Saúde, Alexandre Padilha], o dossiê para a validação da eliminação da transmissão vertical do HIV. Isso é o programa. O Brasil foi o primeiro país a lançar um programa de eliminação de doenças, que agora vai ser ampliado no âmbito do Brics. Esse programa foi reconhecido e o presidente o incluiu na última reunião do Brics. Acho que pela primeira vez, a Saúde entra como uma pauta forte. É um programa que foi capitaneado pelo Brasil.

Internamente, o Programa Brasil Saudável nasce como ampliação de um programa de eliminação da tuberculose?

Isso, mas também nós já tínhamos em curso programas de eliminação de outras doenças. A gente tem o programa de eliminação da malária, da oncocercose... O Brasil Saudável alinha todos esses programas. E uma coisa muito importante é que não é um programa da Saúde.

Não adianta você ter o melhor medicamento no posto de saúde, médicos super bem qualificados, equipe de enfermagem pronta para recebê-los, todo esse aparato, se a pessoa não tem dinheiro para pagar passagem para um posto de saúde, se ela não tem acesso.

Ele é um programa que foca nos determinantes sociais. Por exemplo, os estudos mostraram que o programa Bolsa Família teve um impacto importante na redução de óbitos, na redução de casos [de doenças socialmente determinadas] porque traz um benefício social e propicia que a pessoa possa cuidar um pouco mais da saúde, uma vez que a questão do trabalho e da renda fica mitigada. Então, o programa de transferência de renda é uma ação e uma das metas do Brasil Saudável. Não adianta você ter o melhor medicamento no posto de saúde, médicos super bem qualificados, equipe de enfermagem pronta para recebê-los, todo esse aparato, se a pessoa não tem dinheiro para pagar passagem para um posto de saúde, se ela não tem acesso. Então, o programa trabalha muito essa questão do acesso à saúde. Há ações relacionadas aos direitos humanos, ao bem-estar, às questões trabalhistas... Para você ter uma ideia, se conseguirmos tratar a população carcerária, a gente já atinge a nossa meta de eliminação de tuberculose, dada a carga da doença que nós temos nessas localidades. Então, a gente tem, por exemplo, uma ação com o Ministério da Justiça. Há casos de presos por uma situação banal, como o daquela moça que roubou um saco de biscoito, e isso cria uma densidade de pessoas num espaço pequeno que proporciona a transmissão de doenças, como a hanseníase e a tuberculose.

Outro exemplo é a questão do saneamento. O saneamento está diretamente relacionado à transmissão da esquistossomose e das geo-helmintíases. Então, se você leva ações do Ministério que lidam com a infraestrutura para melhoria do saneamento, isso vai ter impacto nessas doenças. E, obviamente, há impacto indireto sobre várias outras doenças: as ações vão ser positivas para muitas outras doenças além daquelas relacionadas.

Queria um panorama geral do que aproxima e diferencia os países do bloco em relação a essas doenças socialmente determinadas. Dados recentes mostram que, juntos, os países do Brics têm mais de 50% dos casos de tuberculose do mundo. Portanto, esse é claramente um problema comum. A hanseníase é um problema importante ainda na Índia e no Brasil, mas não necessariamente nos outros. Apenas a África do Sul está entre os piores cenários epidemiológicos de HIV/Aids... Há um mapeamento dessas fragilidades e potencialidades no interior do bloco, do que cada país precisa e pode oferecer?

Cada país vai ter o seu portfólio, vai definir quais são as doenças que mais o afetam. Obviamente, nós temos as doenças, como a tuberculose, que você listou, que acontecem mais em dois, três países. Isso vai variar muito. Mas um aspecto importante é a cooperação entre os países: [o papel da] China, que tem um parque tecnológico bastante robusto, da Índia, com a sua capacidade de produção de vacinas, medicamentos... Esse é um elo comum entre esses países, a capacidade que eles têm de, juntos, pensarem em estratégias e terem ações mais concretas do ponto de vista de oferta e da área de pesquisa. A estratégia seria principalmente essa. Se a gente pegar o exemplo da covid, a China foi importante para a geração da vacina. Então, é também uma força que a gente tem quando trabalha conjuntamente nesse bloco.

Me dá exemplos de medidas que podem resultar dessa parceria?

Do ponto de vista do saneamento, existem várias tecnologias, por exemplo, para o tratamento de água em condições insalubres, que podem ser partilhadas. Há iniciativas nos diferentes países que podem ser transformadas para que isso se torne uma política de saúde e possa ser feito em grande escala. Existem iniciativas vinculadas a uma universidade, por exemplo, que trabalha em uma determinada região e faz algo muito legal, que beneficia aquele grupo, mas que não está disseminado como política pública. A gente tem visto muito, curiosamente até em congressos, a participação de organizações que trabalham com o que a gente chama de tecnologias sociais. [Isso significa] levar soluções alternativas para localidades onde você não teria investimento para fazer um programa de saneamento robusto, de distribuição de água. O próprio tratamento de água é uma dessas possibilidades.

O que o Brasil, em particular, tem a oferecer nessa parceria firmada durante a Reunião de Cúpula do Brics?

Isso não foi muito aprofundado porque, entre o anúncio e a reunião [de Cúpula] do Brics, foi um tempo muito curto. Acho que a gente teve um pontapé inicial de colocar isso na pauta, ter esse tema na agenda, para daí conseguir desdobrar. Nós tivemos algumas reuniões com os países do Brics em que cada um apresentou a sua estratégia e as suas questões relacionadas às Doenças Socialmente Determinadas. E, a partir daí, a ideia é que se crie um plano que seja transversal, em que a gente possa alinhar justamente isso que você falou: o que a gente tem em comum e quais [questões] são comuns a todos ou à maioria [dos países].
Outra discussão que tivemos é que algumas dessas ações vão ser realmente bilaterais, ou vão envolver três países. Vai depender da carga de doença de cada um desses países. Mas esse é o início do que a gente vai passar a construir de agora em diante. E a Fiocruz está envolvida até o pescoço, porque em todas essas ações a gente tem contribuições importantes para dar, seja do ponto de vista das políticas sociais, seja do ponto de vista tecnológico mesmo.

A questão das patentes foi muito discutida durante a pandemia de covid-19 como uma expressão concreta e grave dos interesses econômicos que ampliavam as desigualdades e geravam mortes. Depois veio o Tratado de Pandemias, que também marcou as diferenças entre países mais e menos ricos. Esse debate tem relevância também nessa parceria para a eliminação de Doenças Socialmente Determinadas ou as questões envolvidas são completamente diferentes?

Eu não sei se são completamente diferentes, mas no âmbito, mais especificamente, do programa [Brasil Saudável e da parceria para eliminação de Doenças Socialmente Determinadas], a gente está trabalhando mais com a questão das doenças endêmicas. E o enfoque das discussões sobre as pandemias foi justamente a preparação com aquilo que pode acontecer de doenças que a gente possivelmente nem conhece ainda. Mas, de fato, acho que a gente se preparar como um bloco de países que têm interesses comuns é algo que nos aproxima. Qual o interesse da Europa, por exemplo, na Doença de Chagas? Eles estão em outro momento epidemiológico, em que as doenças crônicas e neurodegenerativas são um problema maior. A gente tem, além das doenças não transmissíveis, as doenças transmissíveis como tema de preocupação em termos de Saúde Pública.

O Brasil é o único país da América Latina e da América do Sul que integra o Brics neste momento. Como essa parceria para eliminação de Doenças Socialmente Determinadas pode beneficiar os outros países do continente?

No âmbito do Mercosul, a gente tem uma cooperação grande que foi fortalecida também a partir de 2023. Existe uma Comissão de Vigilância em Saúde. Esses países se reúnem duas vezes ao ano para fazer esse debate. Tem uma reunião de ministros. Então, esse bloco trata também de doenças que são comuns aos países. Mas as realidades são um pouco diferentes porque, por exemplo, o Uruguai e a Argentina têm outras preocupações que não são tanto essas doenças que estão no Programa Brasil Saudável. No âmbito do Mercosul, a gente discute as arboviroses, a resistência antimicrobiana... Para alguns desses países, como o Uruguai, doenças infecciosas não são algo importante.

Na sua avaliação, qual a importância dessa parceria para a eliminação de Doenças Socialmente Determinadas firmada pelos líderes do Brics?

Quando esse tema entra numa pauta como essa, que tem outros temas econômicos que normalmente dominam o debate, acho que a gente realmente entra em outro patamar

Primeiro temos que destacar o fato de isso fazer parte de uma pauta de reunião de chefes de Estado. Isso mostra que, como costumamos dizer, que a gente subiu o nível. Não é apenas uma preocupação de pesquisadores ou de trabalhadores da área da Saúde. Realmente, a gente coloca na pauta governamental essas questões, esse problema, como sendo algo que afeta, inclusive, a economia dos países. Isso foi um ganho enorme. A gente passou para uma escala de chefes de governo debatendo esse tema. Inclusive, do ponto de vista de se entender a necessidade de que se tenha mais investimento. Quando esse tema entra numa pauta como essa, que tem outros temas econômicos que normalmente dominam o debate, acho que a gente realmente entra em outro patamar.

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