Qual o significado do PNE e qual a sua importância para o oferecimento de uma educação pública de qualidade no país?
O Plano Nacional de Educação, PNE, é um dispositivo constitucional desde 1988. É demandado pelo artigo 214 da Constituição Federal e determina que todo o país, somando o esforço da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, caminhe no mesmo sentido, cumprindo metas que consagrem o direito à educação. Ou seja, o PNE é uma forma de fazer com que os entes federados ajam de maneira solidária para a consagração do direito à educação.
O Balanço do PNE feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, apresentado em audiência pública na Câmara dos Deputados no dia 25 de junho, aponta que 90% das metas do Plano foram descumpridas, 10% foram cumpridas, 13% sofreram retrocesso e 35% têm lacunas de dados. Como podemos analisar esses marcadores?
Nós [da Campanha Nacional pelo Direito à Educação] fizemos um trabalho pautado em dispositivos, em vez de trabalhar só com metas e estratégias, porque algumas metas são estratégias e algumas estratégias são metas, é um problema de formulação do Plano. Elencamos 38 indicadores e, dentre eles, 34 não foram cumpridos.
Alguns foram cumpridos por conta de uma questão factual, por exemplo, a meta de mestres e doutores nas universidades públicas. Isso já tinha sido cumprido antes do plano ser implementado, porque o plano foi planejado em 2010 e só conseguiu concluir a tramitação em 2014. Nesses quatro anos, a política educacional não ficou parada. Na prática, verificamos que algumas coisas aconteceram de maneira independente do plano.
O descumprimento das metas do PNE, é, infelizmente, uma marca da política educacional brasileira. O Brasil já teve dois Planos, o PNE de 2001 a 2010 e o atual, de 2014 a 2024, que não foram cumpridos. Isso demonstra uma tradição que precisa ser quebrada. Basicamente, acontece por um motivo estrutural de prioridade orçamentária.
A educação nunca foi uma prioridade orçamentária e, nos últimos meses, temos visto a área econômica do governo defendendo a relativização dos pisos, a redução dos pisos da saúde e da educação.
Ou seja, diminuir os recursos vinculados à saúde e educação. Especificamente na educação, o PNE demanda um acréscimo de recursos.Na prática, esses planos têm tido até a capacidade de identificar aquilo que precisa ser feito, mas nunca recebem o recurso necessário para o cumprimento das metas estratégicas.
Estaríamos falando de uma tradição do não cumprimento do PNE?
Sim, neste momento, temos uma tradição de não cumprimento do PNE.
Verdade seja dita, temos uma tradição de descumprimento dos direitos sociais, entre eles, o direito à educação.
O Plano Nacional de Educação é um mecanismo para a consagração da universalização do direito à educação. Como o Brasil não tem uma visão estratégica de educação, que é um pilar do desenvolvimento, o Plano Nacional de Educação é, praticamente, escanteado em termos orçamentários. Então, ele é abandonado pelos governos na tramitação da implementação do Plano, como resultado, ocorre o descumprimento. E esse abandono se dá pelo fato de que os governos não consideram prioritário investir em educação.
É uma impressão, ou os Planos Nacionais de Educação estabelecem metas grandes demais?
Não, as metas são corretas nos dois planos. O problema é que para cumprir essas metas, é preciso ter esforço. Esse esforço na política social, especialmente, no direito à educação, só é viabilizado se você tiver o financiamento adequado. No Plano Nacional de Educação apontamos que de 10% do PIB [Produto Interno Bruto] como demanda, só se cumpriu 5%. Na prática, em alguns momentos alcançou 6%. Veja, no mínimo, faltaram 4%, no máximo, faltou 5% do PIB de investimento para o cumprimento das metas estratégicas. O resultado disso é que não tinha como o plano ser cumprido.
Você aponta que deve existir uma relação intrínseca entre a educação, a economia e o planejamento estratégico de um país. Você pode falar um pouco mais sobre isso?
Essa é a questão que mais me preocupa, em termos do próximo Plano Nacional de Educação. O Brasil tem várias camadas nessa problemática, porque, primeiro, não tem um projeto de desenvolvimento. Concretamente, as duas últimas vezes que tivemos um projeto de desenvolvimento foram nos governos de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek. Se você perguntar para qualquer político sobre um projeto de desenvolvimento, ele vai responder sobre os problemas que está resolvendo. Mas, isso não é um problema dos políticos, é de como se organiza a estrutura do Estado brasileiro. O que se demanda dos gestores públicos é a resolução de problemas. Então, eles não têm a capacidade de planejamento, e, por isso, não têm um projeto de desenvolvimento.
A educação tenta resolver sozinha suas próprias questões. Por exemplo, nós ainda temos um problema enorme relacionado à mortalidade infantil, vem caindo, mas já foi muito pior. O principal indicador de resolução da mortalidade infantil é a escolaridade das mães. Então, as áreas sociais têm que trabalhar de maneira conjunta e tem que ser articuladas por um projeto de desenvolvimento.
Nesse sentido, o que de fato preocupa no caso brasileiro? A ausência de um projeto de desenvolvimento que não consegue trabalhar as políticas sociais. No caso da educação, é um problema mais grave, porque tem que ser tratada como um pilar de onde o país quer chegar. Ela tem que realizar as suas questões, sem saber qual é o objetivo pelo qual deve trabalhar, como deve trabalhar e quais são as linhas estratégicas para que o Brasil consiga cumprir com os seus desígnios e se torne um país de liderança em alguns setores da economia global. Então, o Brasil é um transatlântico desgovernado e a política educacional também. Os governos podem reverter essa situação, mas esse é um problema estrutural desde a Constituição de 1988. O Brasil não tem tido a capacidade de estabelecer um projeto de desenvolvimento.
O balanço da Campanha também aponta que o descumprimento do PNE afeta mais pessoas negras, pobres e das regiões Norte e Nordeste do país. Por quê?
O Brasil tem desigualdades regionais, de renda, de raça e étnico-raciais, isso acaba tendo um efeito também sobre a educação. As regiões Norte e Nordeste têm menos recursos para dar conta da política educacional e um déficit educacional maior. Infelizmente, o Brasil nunca conseguiu tornar igualitária a política educacional a ponto de beneficiar toda a população brasileira. Então, pessoas brancas e pessoas negras, as periferias e as grandes cidades, têm uma diferença muito grande em termos de anos de escolaridade. Concretamente, o que é possível dizer é que nessa última década não tivemos um avanço estrutural na redução das desigualdades no Brasil. Isso impacta a educação. São sempre os mesmos prejudicados, não muda essa, também, nefasta tradição brasileira.
O PNE também estabelecia metas sobre a alfabetização no país que não foram cumpridas, é isso?
Não foram cumpridas. Em 1988, a Constituição determinou que, em dez anos, nós deveríamos erradicar o analfabetismo. Não foi possível. Em 2001, determinamos que até 2010 erradicaríamos o analfabetismo e não conseguimos. Em 2014, definimos que iríamos erradicar o analfabetismo até 2024 e, mais uma vez, falhamos. É uma contradição, países em condições piores do que as nossas conseguiram cumprir a universalização da alfabetização, em períodos até inferiores a dez anos. Recentemente, a Venezuela conseguiu cumprir com essa tarefa, Cuba na década de 1960, praticamente todos os países europeus no pós-guerra e, a partir do momento que priorizou a educação, a Coreia do Sul também conseguiu. O Brasil não universaliza a alfabetização porque os governos não se esforçam.
O Brasil, inclusive, tem tido uma tradição de descumprir o que se refere à Educação de Jovens e Adultos [EJA]. No início do Plano Nacional de Educação, nós tínhamos 6 milhões de matrículas em Educação de Jovens e Adultos, hoje, temos 2 milhões. Por exemplo, está diminuindo a matrícula na cidade de São Paulo. No início de 2017, tínhamos quase 50 mil matrículas na EJA, agora, temos 20 mil.
É um total descompromisso com alfabetização, que é algo que reflete o descompromisso com a educação como um todo.
Provavelmente, o próximo PNE, que está sendo discutido e vai vigorar pelos próximos 10 anos após sua aprovação, terá objetivos que se diferem do atual, ou, geralmente, são os mesmos?
Na prática, são basicamente os mesmos, escritos de outra forma. A mudança da escrita da redação, em alguns casos, traz benefícios, em outros casos, traz malefícios.
Você pode dar um exemplo?
Bem, [o novo PNE] já parte com uma compreensão de que financiamento da educação é central, isso não estava no debate do Plano anterior. O governo federal, na época do segundo governo Lula, enviou um projeto em que o financiamento da educação não era a prioridade. Revertemos isso no Congresso Nacional, mas não foi cumprido. Nesse que está sendo discutido, já saímos com um ponto de partida melhor. Então, tem vários mecanismos que são contraditórios, como a própria afirmação do direito à educação. Existe uma pressão, por exemplo, sobre a aprendizagem, mas não existe uma afirmação categórica de que é preciso valorizar os profissionais da educação.
O que pode ser feito para que mais metas do próximo PNE possam ser alcançadas?
A área econômica do governo precisa compreender a centralidade da educação, o que é muito difícil, porque está colonizada pelo pensamento neoliberal. Claro, não dá para dizer que existe o pensamento neoliberal como aconteceu com Paulo Guedes, no governo Bolsonaro. Mas, esse pensamento também é predominante no governo Lula. Então, é preciso que a área econômica do governo tenha uma visão de desenvolvimento do país na educação, na ciência e na tecnologia. Não basta a educação sozinha, não vai dar conta de ser um pilar para o desenvolvimento. Mas, precisamos fazer com que a educação, a ciência e a tecnologia sejam o centro de um projeto de desenvolvimento para o Brasil no século XXI. O país só viveu esse tipo de pensamento no século XX na Era Vargas, com todos os seus problemas e dilemas. No entanto, tudo o que foi feito naquela época, é o que nos sustenta até hoje: o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], tinha outro nome, mas as bases estão estabelecidas ali, a Petrobras, o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], a CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e o próprio Ministério da Educação.