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Entrevista: 
Gina Ferreira

‘O fim dos manicômios entrou no bojo da reivindicação de que a liberdade tinha que ser extensiva a todos’

Criadora do programa 'De volta para Casa' analisa a lei da Reforma Psiquiátrica, que completa 20 anos no dia 6 de abril
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/04/2021 11h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Foi há exatos 20 anos. Depois de tramitar por mais de uma década, finalmente em abril de 2001, a lei 10.216 foi aprovada e sancionada. Ao estabelecer direitos das pessoas com transtornos mentais e mudar o modelo assistencial nessa área, ela foi o primeiro passo legal para instituir, nacionalmente, o que hoje se conhece como Reforma Psiquiátrica. Herança de um movimento mundial que remete à década de 1960, seu principal objetivo era superar o encarceramento como tratamento da loucura. Assim, o recado do texto ecoava as palavras de ordem das lutas que se travavam nesse campo: ‘Manicômio nunca mais’.

Mais do que uma mudança institucional, no entanto, a Reforma Psiquiátrica depende de uma transformação nas práticas terapêuticas, na compreensão do território, na relação com a família e com a sociedade como um todo. São principalmente relatos de experiência sobre essa outra abordagem que Gina Ferreira, doutora em Psicologia Social, traz nesta entrevista. Suas memórias remetem, por exemplo, à vivência em um dos maiores hospitais psiquiátricos da  América do Sul, a Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro, que ela ajudou a fechar, e à coordenação de saúde mental de Angra dos Reis (RJ), onde criou o programa ‘De volta para Casa’, que mais tarde ganhou uma versão nacional.

A lei que instituiu a Reforma Psiquiátrica está fazendo 20 anos, mas o movimento antimanicomial é muito anterior.Quais são os principais marcos desse movimento? Fala-se muito na experiência de Santos, com David Capistrano...

Santos foi a primeira cidade a construir um dispositivo de atenção [à saúde mental], que seria próximo dos CAPS [Centro de Atenção Psicossocial]. Não eram os CAPS em si, mas lá foram construídos dispositivos de atenção e tratamento que não eram só ambulatoriais, e, em hipótese alguma, eram manicômios. Então, esse cuidado em liberdade pode-se dizer que começa em Santos, mas o movimento, não.  O ‘Manicômio Nunca Mais’, que é comemorado em 18 de maio, começa com os trabalhadores de saúde mental se reunindo naquela que foi uma época fértil para esse pensamento sobre o fim dos manicômios. Porque se queria mudar várias coisas. Foi uma época também em que o mundo inteiro estava se manifestando, a sociedade já estava exigindo mudanças nesse sentido. Era maio de1968, começou em Paris. As manifestações não foram por conta dos manicômios, mas o fim dos manicômios é uma reação positiva à mudança social. Entrou no bojo da reivindicação de que a sociedade se desse conta de que o mundo era outro, de que a liberdade tinha que ser extensiva a todos. Maio de 1968 começa por outras razões mas quando vai até as ruas, no meio das reclamações, começam a gritar: “eu trabalho, tu trabalhas, eles ganham”. E já começa um outro tipo de reivindicação. Essa [percepção sobre a] exploração vai se ampliando, esse pensamento sobre explorar o outro, minimizar o outro, vai se ampliando e chega a esse outro triste setor de encarceramento, que é o hospício, com pessoas que não fizeram nada para serem encarceradas. Esse é o pontapé inicial.

A desospitalização, o fim dos manicômios, é bandeira principal do movimento que gerou a Reforma Psiquiátrica, marcada até no nome. Mas por que é preciso acabar com os manicômios?

Porque no manicômio você não sai, pode sair para um passeio, se alguém quiser fazer algo diferente, mas retorna. Você usa uniformes, come em refeitórios, é um encarceramento de fato.Eu pude ver de perto como era um dos maiores manicômios da América do Sul, que era [a Casa de Saúde] Dr. Eiras, de Paracambi  [no estado do Rio de Janeiro]. Ele começa pequeno, mas era um lugar muito espaçoso, onde passava um rio, uma paisagem agradável. Começa a aumentar, abrir mais espaços, ter que contratar muita gente – e com salários baixos. Não aprimora, a qualidade não existe porque é para não oferecer absolutamente nada. Em Paracambi, às cinco horas da tarde, num calor que chegava a 42 graus no verão, as mulheres que viviam no pavilhão feminino eram fechadas todas em um salão, com uma única televisão. Eram 200 pessoas, não tinha cadeira para todo mundo, então elas tinham que ver televisão em pé. Esse manicômio era um encarceramento. Era particular, mas tinha convênio, naquela época, com o INPS [Instituto Nacional de Previdência Social] e depois com o SUS. Essas mulheres viviam rasgadas, uma era capaz de arrancar o olho da outra por conta de uma guimba de cigarro, viviam como animais. Quando cheguei, a primeira coisa que eu quis criar foi um pavilhão à parte, uma sala grande, onde eu pudesse fazer várias oficinas criativas e ter pessoas trabalhando, que a gente pudesse sair com elas, pegar o trem, viajar até o [município do] Rio de Janeiro. Lembro uma paciente que, quando via alguém chegar, imediatamente ficava de quatro, feito cachorrinho. O que mais me desesperava é que as pessoas achavam engraçado, riam. E eu me aproximava dela, segurava com as duas mãos as mãozinhas dela, ia fazendo ela levantar. E ela punha a língua para fora, como se fosse um cachorrinho cansado. E eu dizia: “Não, o seu nome é Lucinha, você não é um cachorrinho. Vamos ficar em pé?”. Eu pegava as duas mãos, a colocava em pé e fazia questão de cumprimentar com a mão. A parte daí, no dia em que eu chegava a esse pavilhão, ela estava em pé me esperando e me estendia a mão. São pequenas coisas, mas nem isso era feito.

Paracambi era uma cidade que teve perdas econômicas e sociais. Teve quatro fábricas fechadas, então, muita gente ficou desempregada. Nessas fábricas trabalhavam famílias inteiras, e o fechamento representou uma baixa econômica imensa. Diziam que tinham pessoas que enlouqueciam e iam se internar, ou iam se internar para ter o que comer e ter um benefício. Foi nisso que a Eiras se transformou: num desespero. Fechar a Dr. Eiras foi questão central do movimento ‘Manicômio Nunca Mais’ no Rio de Janeiro. Muitos anos depois, com mudança de governo, quando decidiram fechar a Dr. Eiras, eu fui contratada para supervisionar a equipe que organizava as atividades e a saída desses pacientes.

Lembro uma vez em que, junto com outras colegas, eu levei essas mulheres para um passeio até o Centro Cultural Banco do Brasil, e depois a gente ia ver se esticava até o MAM [Museu de Arte Moderna]. A mulher que estava sentada no trem ao meu lado, cada vez que abria a porta, olhava desesperada para fora. Eu olhei para ela e disse assim: “Eu estou vendo que você quer fugir. Cada vez que a porta abre, você olha com muita vontade de fugir”. Nisso, o trem foi parando na [estação da] Central do Brasil. Eu disse: “Olha, nós estamos na Central, eu não vou fazer nada para te impedir de fugir. Se você quiser, foge. Mas eu quero te avisar uma coisa. Eu já localizei a sua família em Paraty. E eles vêm te visitar essa semana que vai entrar, porque eu quero que você volte para a sua casa. Se você ficar aí na Central, vai dormir na calçada, vão abusar de você, você é uma moça bonita, você vai ter que pedir para comer, não sei se vão te dar comida ou não. Eu estou oferecendo essa outra oportunidade para você experimentar. A escolha vai ser sua”. Ela não fugiu. A família ficou muito contente de tê-la encontrado e ela foi para casa com eles.

E como foi esse processo de transição dos pacientes que saíam daquele manicômio?

A Prefeitura de Paracambi naquela época também fez por onde, fez acho que 21 casas de três quartos para acolher, cada casa dava para oito pessoas, e aí as pessoas podiam ter uma residência terapêutica. Eles eram acompanhados por um auxiliar de enfermagem e estagiários, tinham mesa para sentar, tinham uma cozinha para fazer uma comida mais especial. Foi garantido um beneficio a eles, então podiam comprar o que quisessem. Isso foi mudando a mentalidade. Agora, o que também foi feito para mudar a mentalidade? Quando me chamaram nessa segunda vez [para organizar o fechamento da Dr. Eiras], eu falei: “Gente, as pessoas vão precisar sair dessas casas e andar na cidade, e vão ter que andar com liberdade, vão ter que ser vistas como nós, não como pessoas diferentes, capazes de atacar, ou enfermas”. É necessário trabalhar a cidade, trabalhar a população. Paracambi teve quatro cinemas, que não existiam mais. Então, nós decidimos fazer uma sessão de cinema, acho que uma vez por mês. Tinha uma curadoria, eram filmes brasileiros da melhor qualidade, porque muitos moradores não sabiam ler nem escrever. Esse projeto, chamado ‘Cinema na Praça’, foi bancado por um edital da Petrobras. Qual era a função do cinema? Era fazer a população sentar ao lado dos pacientes. Ia um ônibus buscar os pacientes da Dr.Eiras. É claro que, no início, a população assistiu ao filme lá de trás, em pé, num bar. Depois sentavam na última cadeira. E depois já passavam para frente e sentavam ao lado do paciente. Da metade do filme para lá, elas não lembravam mais que aquele que estava ao lado dela era paciente da Eiras. Houve uma pesquisa de opinião pública e a primeira pergunta era quantos eram a favor do fechamento da Eiras. Começou com quase 90% a favor de manter a Dr. Eiras, porque dava emprego. Depois foi diminuindo e, no final, 80% eram a favor do fechamento.

Mas não é possível um hospital psiquiátrico sem violação de direitos humanos? A Associação Brasileira de Psiquiatria, que defende a manutenção dessas estruturas, fala em tratamento humanizado nos hospitais psiquiátricos...

Não é necessário mais porque existe o Centro de Atenção Psicossocial [CAPS]com possibilidade de ter até oito ou dez leitos dentro. O trabalho tem que ser feito também fora do serviço, no território, na vizinhança, na casa do familiar. Por que ir para um hospital psiquiátrico, se tem serviços [que o substituem]? É preciso ter mais CAPS 3 [modalidade que tem leitos], mas não é botar mais de dez leitos no CAPS e virar hospital psiquiátrico. E não precisa ser em todos os CAPS, você tem que ver qual é a região que tem uma demanda maior. Tem regiões em que a precariedade social é muito forte e, então, você tem que ter serviços que deem acolhimento, que trabalhem com aquela vizinhança, com aquele território, mudando mentalidades.

Diferente dos manicômios, os leitos dos CAPS 3 são temporários, certo?

São bastante temporários e têm que ser em um número muito pequeno, na minha opinião. Eles servem para que, no momento em que o vínculo familiar que [o paciente] tem não estiver propício para que a crise dele seja sustentada, ele possa ir ao CAPS e depois voltar, para que ele não apronte de noite sem que a família saiba lidar. Há momentos em que a família já não aguenta mais, às vezes tem outro paciente em casa, ou alguém está enfermo. Esse leito serve para que ele tenha um lugar de acolhimento num espaço onde já tem relações reconhecidas, vínculos afetivos, com psicólogo, médico, com as pessoas que trabalham lá. Porque o que faz [o paciente] aceitar medicação, por exemplo, é o vinculo afetivo. Então, não é para internar.

Mas, sobretudo, na população mais desassistida, muitas vezes as famílias têm dificuldade de dar conta desse acompanhamento e acabam ‘desejando’ a internação num manicômio, não?

Ficar um ou dois dias fora [num CAPS3], fazer trabalhos dentro da família ou no território [ajuda]. Mas não uma hospitalização num manicômio. Nem uma hospitalização de mais de dez dias. Muitas vezes a família fica desesperada porque a vizinhança não entende e não colabora. Eu tenho muito orgulho, por exemplo, do trabalho que o CAPS da Rocinha [favela localizada na zona sul do Rio de Janeiro] faz no território. Já levei equipe lá para fazer roda de conversa na calçada e no posto de saúde. Aquelas rodas de conversa iniciavam com muitas cadeiras vazias e de repente um morador passava por aquela calçada, parava para ouvir, daqui a pouco ele perguntava se podia sentar, chegava um outro, reconhecia alguém que estava sentado, sentava também, daqui a pouco estávamos todos discutindo o que é sofrimento psíquico. Tem que ter criatividade e disponibilidade para trabalhar com a população.

Quando eu fui coordenadora de saúde mental de Paraty [município do estado do Rio], chegamos a internação zero. Eu pedi que fossem criados só dois leitos na Santa Casa, para que quando estivesse fervendo na família, ele pudesse descansar naqueles leitos para depois retornar para casa. Uma família tinha me procurado dizendo que aquele paciente tinha que ser internado porque ele andava a noite inteira dentro da casa e não deixava ninguém dormir. Aí eu pedi para a Secretaria de Saúde pagar um plantão para um auxiliar de enfermagem dormir no quarto com aquele paciente. O paciente não andou, dormiu a noite toda. No dia seguinte a médica foi rever a medicação, não foi mais necessário.

Nessas situações, em que a família não consegue sustentar o cuidado, existe outra opção além dos leitos dos CAPS 3?

Existem as residências terapêuticas. Para quando a família não quer, em hipótese alguma, já está saturada, traumatizada... Porque também tem que se trabalhar com a família. Mas vamos dizer que há coisas que aconteceram de muitos anos, ou a família diminuiu e não dá para sustentar as crises, que podem ser periódicas ou não. Então, pode ser que a família não suporte essa relação, que já era difícil e a crise saturou. Existem residências terapêuticas, são residências de até oito pessoas, que podem ter três quartos ou mais, com cuidadoras. As pessoas podem sair. Muitas pessoas que eram extremamente regredidas, numa residência terapêutica melhoram seu quadro, seu dia a dia fica mais leve, têm menos brigas, menos conflitos. Elas têm mais liberdade, sentam numa mesa limpa, há residências em que até se discute o cardápio. Então, você, lentamente, vai inserindo a pessoa não só numa vida doméstica, mas num mundo mais social, num mundo melhor.

A Reforma Psiquiátrica, tal como foi pensada e está expressa na lei, se volta mais especificamente para esse espectro de pacientes mais graves, para os quais se costumava indicar internação, ou também tem aspectos que dizem respeito à saúde mental como um todo?

A Reforma Sanitária ampliou a atenção da saúde quando pensou no SUS [Sistema Único de Saúde]. Como [Sergio] Arouca fala na 8ª Conferência [Nacional de Saúde], a saúde também é alimentação, é trabalho. O que acontece é que a reforma vê que a saúde é tão ampla que oferece outras oportunidades: o sujeito não vai para um CAPS para ter uma relação mais fácil com a família, ele vai também para frequentar oficinas criativas, como a Nise [da Silveira, psiquiatra] fez no Museu [de Imagens do Inconsciente], por exemplo. Ele vai para dar expansão à sua criatividade, criar alguma coisa. Era um método que a Lygia Clark utilizava, como uma fronteira entre a arte e a clínica. Quando você cria, a Lygia dizia, inconscientemente, você está buscando soluções para sua vida, não uma solução consciente, clara, não é tão objetivo, mas você está treinando o potencial criativo que todo homem tem. Então, é como se, inconscientemente, você fosse buscando soluções.

Passados 20 anos da lei da Reforma Psiquiátrica, e muito mais tempo ainda do movimento Manicômio Nunca Mais, na sua avaliação, os trabalhadores da saúde estão preparados para esse modelo novo de atenção à saúde mental? É essa formação que eles têm nas instituições de ensino?

Eu não sei como está a universidade agora. De um tempo para cá, com abertura de estágios, eu acho que isso melhorou bastante. Eu acho que tem que ter concurso, as pessoas, quando entram para um CAPS, têm que ser trabalhadas, entender o que é CAPS. Não são só o paciente e a família que têm que ser trabalhados, o profissional também. Ele tem que entender o que é uma oficina terapêutica. Porque não se trata só de terapia ocupacional, de ter uma ocupação, é o que eu te falei: é criar, é ter mil atividades que saem dos CAPS, que convidam para ir ao cinema, ter CAPS com refeitórios amplos... Acho que tem que discutir as doutrinas, mas  eu não vejo ninguém debatendo sobre oficina em reuniões de equipe, por exemplo.

A lei nº 10.216, da Reforma Psiquiátrica, ficou 12 anos tramitando no Congresso. Imagino que ela tenha sido o consenso possível, que talvez houvesse demandas muito maiores do que aquelas que estão ali. Era um consenso?

Foi muito difícil para o [então deputado] Paulo Delgado (PT-MG) chegar até ali para colocar essa lei [para votação]. Porque havia um movimento muito forte de familiares que eram a favor dos manicômios, um movimento que era muito liderado por empresários da saúde, donos de instituições psiquiátricas. Então, foi muito difícil passar no Congresso. Foi a lei que era possível. Mas eu achei quase completa. Porque a lei não fala simplesmente para não botar no manicômio. Ela diz que tem que ter um tratamento de base comunitária. Que ele deve poder frequentar a comunidade, e isso deve ser dirigido, ter oficinas, grupos de família...

Você avalia positivamente o que foi possível na lei?

A lei foi muito bem feita, não teve nada que pudesse dizer que prejudicou, só somou. Teve criação de CAPS 3, que são CAPS com leitos, teve oferta de trabalhos em oficinas, como aconteceu em São Paulo logo no início. Foi de uma coragem incrível. O Paulo Delgado batalhou muito, todo o pessoal da luta antimanicomial também. Ela já vinha atrasada.