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'O financiamento público da educação pública precisa ser olhado de modo mais global'

Em 2023, o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) deve chegar a quase R$ 40 bilhões em complementação da União. O Fundo, que passou a vigorar em 2007, garante dois terços dos recursos que os municípios investem em educação, sendo cerca de 90% via impostos coletados no âmbito estadual e municipal, e 10% do Governo Federal. Em 2020, a Emenda Constitucional (EC) 108 estabeleceu um aumento progressivo da participação da União no Fundo de 10% para 23% em 2026. Em 2023, ela será de 17% das receitas totais do Fundo. Nesta entrevista, Nalú Farenzena, primeira vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fala sobre a importância deste aporte para manutenção e desenvolvimento do ensino nas redes municipais e estaduais, para remuneração dos profissionais da educação, entre outros custeios, e revela o impacto causado pelo decréscimo de recursos destinados à educação nos últimos anos.
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2022 14h36 - Atualizado em 01/11/2022 10h36

Portal EPSJV - As consultorias de Orçamento da Câmara e do Senado divulgaram nota sobre os projetos orçamentários para a Educação em 2023 (PLN 32/22), que mostram um aumento de 32,8% para o novo Fundeb, chegando a quase R$ 40 bilhões. O que esse orçamento irá proporcionar neste momento?

Nalú Farenzena - A complementação da União ao novo Fundeb deve atingir o mínimo de 17% dos recursos totais dos fundos dos estados e do Distrito Federal em 2023. Ou seja, o percentual mínimo sempre é calculado sobre os recursos dos 27 fundos das unidades federativas. Em 2023, os percentuais mínimos de complementação da União devem ser: 10% pelo Valor Aluno Ano dos Fundos (VAAF), que beneficia os fundos estaduais com menores médias de valor aluno ano, os quais são dez fundos nas estimativas de 2022; 6,25% pelo Valor Aluno Ano Total (VAAT), em benefício de entes de qualquer unidade federativa que tenham os menores valores aluno ano totais; 0,75% pelo Valor Aluno Ano “R” (VAAR, sendo que o R não é especificado na legislação; para muitos significa Resultados e para outros significa Redução de desigualdades). A complementação de 2022 deve ser de no mínimo 15%, portanto aumentará 2 pontos percentuais em 2023. A estimativa de agosto de 2022 é de uma complementação de R$ 33 bilhões.  Ou seja, se comparamos a estimativa atual com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2023, a complementação da União passa de R$ 33 bilhões para R$ 40 bilhões, um aumento de 21%, porém a estimativa das consultorias de orçamento comparou o PLOA 2022 e o PLOA 2023, por isso o índice de 32,8%. De todo modo, mais recursos de complementação da União significam mais recursos para custear a manutenção e o desenvolvimento do ensino nas redes municipais e estaduais dos entes beneficiados, principalmente governos municipais. É bem importante ter em conta que os recursos federais de complementação não chegam a todos os governos estaduais e prefeituras. Também é importante ter em conta a inflação, ou seja, para comparar aumento real de um ano para outro é preciso lembrar da inflação. Mesmo assim, são mais recursos para aplicar na remuneração dos profissionais da educação, pois 70% da complementação VAAF e da complementação VAAT são para esta rubrica. E significa também mais recursos para a educação infantil das redes municipais, pois 50% do valor global da complementação VAAT deve ser destinada a esta etapa. Além disso, mais recursos de complementação no caixa de governos estaduais e prefeituras exige ainda mais dedicação ao planejamento e execução orçamentários para aplicar recursos que conduzam à efetivação do direito à educação e igualmente a atenção redobrada dos órgãos de controle estatal (como tribunais de contas) e dos conselhos de acompanhamento e controle social do Fundeb (CACS/Fundeb).

Portal EPSJV - A soma das demais despesas do Ministério da Educação tiveram uma redução de 7,6%. A queda impactou programas como o da Educação Básica de Qualidade, que perdeu cerca de R$ 1 bilhão. O que se perde e de que forma é possível reverter esta situação?

Nalú Farenzena - Nos últimos anos, os recursos destinados à assistência financeira e técnica da União na educação básica têm decrescido, com exceção da complementação ao Fundeb. São exemplos as ações previstas em lei e executadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE), como também ações de assistência voluntária como apoio à infraestrutura da Educação Básica e apoio à alfabetização e à Educação de Jovens e Adultos. Por exemplo, o PNAE teve decréscimo de 16% de recursos, em valores reais, de 2014 para 2020 e o PDDE, considerando as suas modalidades básicas e ações integradas, decresceu 54% no mesmo intervalo. O decréscimo parece ter se acentuado em 2021, 2022 e na LOA/2023, infelizmente ainda não pude fazer este levantamento. Ou seja, a manutenção da complementação da União até 2020, bem como parte do aumento da complementação da União ao Fundeb a partir de 2021, vem ocorrendo por meio da diminuição de recursos ou da descontinuidade de outras ações. No caso do PNAE, por exemplo, um volume menor de transferência de recursos federais para compra de gêneros alimentícios pode levar a maiores desembolsos de recursos por parte dos estados e municípios a fim de manter a oferta da merenda em condições minimamente adequadas ou à oferta mais precária. Estudos da Fineduca em colaboração com o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), de 2021 e 2022 demonstram a urgência da recomposição dos valores per capita do PNAE e, portanto, a necessidade de mais recursos federais.

A manutenção da complementação da União até 2020, bem como parte do aumento da complementação da União ao Fundeb a partir de 2021, vem ocorrendo por meio da diminuição de recursos ou da descontinuidade de outras ações

Portal EPSJV - A Emenda Constitucional 108 aumentou de 10% para 23% a participação da União no novo Fundeb. Em 2023, ela será de 17% das receitas totais do Fundeb. Neste período pós-pandemia, com tantas pesquisas demonstrando grande prejuízo na educação para os alunos, o que representa essa garantia da EC? Quanto ainda é necessário para recompor os cortes na educação e garantir recursos para evasão escolar e defasagem na aprendizagem?

Nalú Farenzena - A política pública de financiamento da educação brasileira tem uma meta quantitativa, a qual consta no Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE), meta 20: atingir um investimento de recursos públicos em educação pública que corresponda a no mínimo 7% do PIB até 2019 e a pelo menos 10% do PIB até 2024. Estes percentuais foram definidos a partir de estudos que levaram em conta as necessidades de expansão e de garantia de padrões de qualidade na educação pública brasileira, não são números mágicos. O Relatório do 4º ciclo de monitoramento do PNE, realizado pelo INEP [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] e publicado em 2022, aponta uma despesa pública em educação pública, em 2019, da ordem de apenas 5% do PIB. Ou seja, faltaram quase R$ 130 bilhões para atingir os 7% que deveriam ter sido atingidos em 2019, bilhões estes que comprometem o atingimento das outras 19 metas do PNE e cuja falta se torna ainda mais dramática diante do abandono e evasão escolares, e de precariedades na oferta de oportunidades educacionais escolarizadas que se agudizaram na pandemia de covid-19 e crise econômica. O Fundeb e o aumento da complementação da União ao Fundeb são indispensáveis; contudo, o Fundeb não representa nem a metade do total das despesas públicas em educação (incluindo educação superior e educação básica). O financiamento público da educação pública precisa ser olhado de modo mais global, mas, no que concerne ao Fundeb, cabe pontuar que sua lógica depende da disponibilidade de recursos da receita de impostos dos governos subnacionais vinculada à educação, pois mesmo a complementação da União está atrelada a isto. Uma nova geração, de fato, da política de fundos na educação básica somente ocorrerá quando a lógica estiver pautada na garantia de recursos para garantir um padrão de qualidade, ou seja, no Custo Aluno Qualidade. É preciso conectar ao Fundeb a responsabilidade da União de garantir Custo Aluno Qualidade, conectar o parágrafo 7º do art. 211 da Constituição ao artigo 212-A, sendo que ambas as prescrições foram introduzidas na Constituição pela Emenda 108/2020.

Uma nova geração, de fato, da política de fundos na educação básica somente ocorrerá quando a lógica estiver pautada na garantia de recursos para garantir um padrão de qualidade

Portal EPSJV - Dos inúmeros impostos que formam a receita do Fundeb, qual é o principal? Esse aumento no percentual de repasses equilibra as perdas com a redução do ICMS [Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação]?

Nalú Farenzena - A principal é o ICMS. O ICMS representa em torno de 60% da chamada cesta de recursos do Fundeb. Em nota da Fineduca, foi considerada uma perda de até R$ 84 bilhões no recolhimento de ICMS em função da diminuição das alíquotas incidentes sobre combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo. A perda de receita para a MDE (Manutenção de Desenvolvimento do Ensino) seria, então, de R$ 21 bilhões (25% de 84 bi) e, dentro disso, perda de R$ 17 bilhões para o Fundeb (20% de 84 bi). Reduzindo-se a base, reduz-se também o valor a ser complementado pela União. Em 2022 tudo indica que haverá crescimento real nos recursos do Fundeb, decorrente do crescimento de arrecadação, mas poderia ser maior este crescimento se não houvesse a perda na arrecadação do ICMS.

Portal EPSJV – Os consultores de Orçamento da Câmera e do Senado destacaram que o aumento de arrecadação da contribuição social do salário-educação não foi destinado à educação básica; e sim a uma reserva que auxilia no alcance do resultado primário fixado na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023. Quais são as consequências dessa decisão?

Nalú Farenzena - O salário-educação, parcela federal, não pode ser fonte da complementação da União ao Fundeb. Isto foi duramente conquistado durante a tramitação da PEC que deu origem à EC 108/2020, com atuação incisiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Fineduca. O motivo era proteger o salário-educação, a fim de garantir a continuidade dos programas financiados por esta fonte, pois avaliava-se que retirar recursos da cota federal do salário-educação para a complementação ao Fundeb teria um impacto negativo em programas federais de assistência financeira, e estes programas são importantes porque não são somente transferência de recursos ou materiais, mas contém disposições quanto ao emprego de recursos que têm muita relevância, como é o caso do uso de 30% dos recursos do PNAE para a compra de gêneros alimentícios da agricultura familiar; também as transferências do PDDE para as escolas, uma vez que muitas mantenedoras públicas não transferem recursos e não incentivam a autonomia de gestão financeira das escolas públicas de educação básica. O uso dos recursos da complementação da União – com exceção da parcela destinada à remuneração dos profissionais – tem uma margem de liberdade maior, o que é bom, pois respeita a autonomia dos municípios e estados, porém eu defendo que haja programas federais, desde que, obviamente, suas diretrizes e modos de funcionamento sejam formulados e reformulados pelo menos em diálogo com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), pois a ideia de programas federais não é induzir ou determinar isto e aquilo de cima para baixo e sim desenhar programas intergovernamentais que garantem certos padrões de atendimento no nível nacional. Portanto, é imprescindível que o salário-educação seja integralmente aplicado na educação básica, sem contingenciamentos.