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Entrevista: 
Nicola Worcman

"O problema não é álcool em si, é a forma como ele é usado na sociedade"

“O Brasil me obriga a beber”. A frase, que se popularizou durante a pandemia de Covid-19, indicava que a vida que já não estava fácil ficou ainda pior com a chegada da crise sanitária. E se a saúde mental já era algo para a qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) chamava atenção, a preocupação aumentou, ainda que faltem dados para precisar o crescimento de casos. Dados anteriores à chegada da pandemia, mas apresentados em relatório da Organização divulgados em março de 2021 estimam que de duas a cinco pessoas que bebem álcool têm um padrão abusivo de consumo. Outro estudo da OMS mostra que, nas Américas, entre 2013 e 2015 ocorreram mais de 85 mil mortes anuais (1,4% do total) atribuídas exclusivamente ao consumo de álcool, sendo 64,9% entre pessoas menores de 60 anos. A maioria por doença hepática, e um terço por distúrbios neuropsiquiátricos. A OMS calcula ainda que o álcool é um fator importante para 5,5% das mortes no continente (cerca de 300 mil por ano) e em sua maioria ocorreram nos países mais populosos: Estados Unidos (36,9%), Brasil (24,8%) e México (18,4%). Dados do Ministério da Saúde, divulgados em fevereiro deste ano, informam que o número de atendimentos decorrentes de transtornos mentais provocados por álcool e outras drogas cresceu 12% na comparação de 2020 para 2021. Os casos por uso de álcool responderam por 159,6 mil atendimentos no ano passado, quase 40% do total. Nesta entrevista, a médica psiquiatra e diretora de assuntos científicos da ONG Desinstitute, Nicola Worcman, fala das consequências da substância no organismo, da dificuldade de percepção de risco sobre uma droga lícita e da possibilidade de tratamento a partir da perspectiva de redução de danos.
Redação EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 26/07/2022 10h47 - Atualizado em 26/07/2022 14h09
Foto: Arquivo pessoal

O que é considerado uso abusivo de álcool?

Existem diferentes formas de nomear o abuso de uma substância psicoativa, que é o termo que se dá para as substâncias que alteram o estado de consciência, independentemente do seu estatuto legal, ou seja, se é lícita ou ilícita. Eu prefiro o uso do termo “problemático” como forma de não estigmatizar mais as pessoas que têm dependência química. E isso faz muita diferença. O uso problemático é um uso que pode ser a dependência, mas inclui também outros padrões de uso. É diferente do uso frequente e social de álcool. A dependência de álcool é aquela que, além de englobar um uso frequente e/ou exagerado, acarreta problemas não só para o indivíduo, mas impacta diretamente a sua saúde e os campos da sua vida social: o trabalho, a família, as relações afetivas e sociais. Então, não é só beber exageradamente. Dentro do uso problemático, existem subdivisões, digamos assim, como os bebedores pesados episódicos, que é quem toma mais de cinco doses em uma única ocasião, no caso dos homens, e mais de quatro doses, no caso das mulheres. Esse beber pesado episódico, também conhecido pelo termo em inglês binge, é um tipo de uso que preocupa muito porque aumenta o risco de morte e o risco de o sujeito desenvolver abuso e dependência. O tamanho da dose varia de acordo com a substância, se é fermentada [cerveja] ou destilada [cachaça, vinho, uísque...]. O Brasil tem mais ou menos 40 milhões de pessoas que bebem com frequência e 25 milhões de pessoas que estão bebendo em binge. Este número é especialmente preocupante entre os jovens.

Jovens de qual faixa etária?
Todo uso de álcool é especialmente preocupante em adolescentes e em menores de idade porque a gente sabe que quanto mais cedo uma pessoa começa a beber, e quanto pior o seu padrão de uso, os impactos na saúde são muito maiores e também esse padrão pode significar que a criança ou adolescentes não está bem. Os adolescentes são a população mais vulnerável. No entanto, os principais bebedores em binge e a maior quantidade de mortes decorrentes do uso de álcool acontece na faixa etária de 20 a 39 anos. Se morressem mais adolescentes, a gente estaria realmente lascado, seria talvez um dos maiores problemas de saúde pública do planeta. Mas a mirada de um país tem que ser o jovem e esses bebedores mais pesados.

Quais são os efeitos negativos possíveis do álcool?
O álcool causa problemas em inúmeras áreas. Na saúde física, que não é totalmente separada da saúde mental, o álcool aumenta o risco de doenças hepáticas e cardiovasculares, de muitas formas de câncer, aumenta o risco de morte e de suicídio, aumenta o risco de mortes ou injúrias decorrentes de violência interpessoal e acidentes de trânsito. Então, ele causa problemas em diversas áreas na saúde mental, aumenta o risco do desenvolvimento de depressão e a agudização de problemas psiquiátricos em geral que a pessoa tenha.

O que o álcool faz no corpo do adolescente?
Os efeitos são mais ou menos parecidos com os adultos. O que a gente sabe é que as chances de desenvolvimento de outras questões psiquiátricas são muito maiores, o risco de suicídio e morte é muito maior, enfim, os riscos como um todo são muito maiores, muito em função da falta de percepção de risco que é típica da adolescência. O uso frequente também compromete mais o funcionamento psíquico, neurológico e social daquela pessoa. O risco de gestação prematura é maior entre usuárias problemáticas de álcool do que entre adolescentes mulheres que não bebem tanto. Então, esse é considerado um problema de saúde pública que deve ser abordado. Esses usuários têm um risco elevado de desenvolver dependência. Colocar substâncias lícitas ou ilícitas que alteram a consciência de forma regular e pesada no cérebro de um adolescente atrapalha o desenvolvimento neurológico e psicológico dele.

O alto consumo de álcool já é um problema de saúde pública?
Claro. É um problema de saúde pública porque o álcool é a substância psicoativa mais consumida no mundo depois da cafeína. E como o álcool é uma substância lícita, existe todo um aparato financeiro, um mercado que gira em torno da produção, da propaganda, da agenda do consumo de álcool. E isso influencia diretamente a quantidade de álcool que é ofertada, a forma como o álcool é ofertado, o preço... Essas bebidas já são taxadas e deveriam ser mais. E isso não é uma opinião só minha. A OMS lançou pouco antes da pandemia [em outubro de 2019 no Brasil] um programa chamado Safer, que reúne um conjunto de estratégias para a redução dos danos causados pelo uso de álcool e os princípios desse programa são endurecer as restrições da venda, avançar nas medidas do controle do uso de álcool, controlar propaganda e aumentar a taxação e o preço.

E o que seria um uso recreativo de álcool?
Tem um capítulo muito legal no 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, coordenado pela Fiocruz, que trata da percepção de risco, ou seja, o quanto as pessoas percebem que aquele uso é prejudicial e pode causar danos à saúde. E ali você percebe, por exemplo, que só a metade da população brasileira acha que beber em binge, esse beber mais episódico, pode acarretar riscos à saúde. Metade da população acha que não tem problema nenhum beber assim. Em contrapartida, 80% da população brasileira acha que fumar um maço de cigarros por dia faz mal. A percepção de risco que as pessoas têm em relação ao uso de cigarro é muito maior do que em relação ao álcool. Isso faz com que se altere um pouco o que é considerado como uso recreativo. Quando um sujeito fala para mim ‘eu faço uso recreativo’, o que você está nomeando como uso recreativo? Porque isso não está claro. A população não é educada para compreender esse risco e isso tem a ver com interesses não declarados.

Qual a diferença de risco entre beber exageradamente e a dependência?
O beber exageradamente é um fator de risco para o desenvolvimento de dependência. E isso é um problemão. Mas, até o sujeito desenvolver dependência, a gente tem muita coisa para fazer. Depois que o sujeito entra em síndrome de dependência, as estratégias são outras. É que o senso comum tem a sensação de que o problema é só a dependência, mas não é: o problema também é como a gente evita que a dependência se instale.

Existem fatores genéticos ou individuais que fazem o álcool oferecer mais ou menos risco a quem bebe?
Sim. Se houver parentes de primeiro ou segundo grau, mas principalmente os de primeiro grau, que têm questões com o uso problemático de álcool, de outras substâncias ilícitas ou questões psiquiátricas na família, isso predispõe o desenvolvimento de risco pelo componente hereditário. Mas o componente genético por si só explica pouco. Esse componente precisa ser avaliado com o contexto, as características da vida e a subjetividade daquela pessoa. É esse trio que deve ser entendido para saber quais os riscos e qual a gravidade da situação.

Sobre o tratamento, há casos em que a abstinência é necessária?
Abstinência é a não utilização da substância da qual a pessoa entende que faz um uso problemático e escolhe parar de usar. A abstinência não se opõe, sob hipótese nenhuma, à redução de danos, que é uma estratégia de cuidado. Eu considero [a redução de danos] uma ética de cuidado, na verdade, em que se trata a pessoa no ponto onde ela está. Se o sujeito não está pronto ou não consegue ficar em abstinência, você encontra o sujeito onde ele está. A redução de danos considera a possibilidade da abstinência, mas ela também considera a possibilidade de tratamento para as pessoas que não estão abstinentes, seja porque não conseguem, seja porque não podem, seja porque não querem. O processo de tratamento depende do vínculo, depende que o sujeito tenha acesso ao tratamento, que o tratamento ofertado não viole os direitos humanos. O que acontece na maioria das vezes em que o sujeito consegue se tratar é que ele vai caminhando e esse caminho passa pela abstinência, muitas vezes pela tentativa de abstinência, já que ficar abstinente no longo prazo não é nada fácil. A ciência tem poucos dados exatos sobre isso, mas a gente sabe que entre 60% e 90% das pessoas que tentam ficar abstinentes das substâncias com as quais têm um problema não conseguem no longo prazo. Por isso tem esse entendimento de que é uma doença crônica, porque é uma questão de saúde que vai acompanhar o sujeito durante a vida. Ele vai ter que estar atento e cuidando disso ao longo da vida, porque a dependência leva a alterações químicas nos circuitos neuronais que o fragilizam em relação ao uso. A abstinência, assim como outras formas de uso, é algo que necessita de tratamento para que possa ser sustentada. Então, se a pessoa bebe sete vezes por semana e passa a beber uma vez, pode ser melhor para ela assim. Ou se ela estava numa situação de muita vulnerabilidade social, fora de casa, em situação de rua, poder voltar para o seu território também pode ser melhor.

Como pensar a redução de danos com uma droga que, como o álcool, é lícita e socialmente aceita? É mais difícil?
Eu não acho que seja mais difícil, acho que são outras dificuldades. Quando uma substância é ilícita, as dificuldades que a gente vai encontrar para pensar a redução de danos são de uma natureza, quando é lícita, são de outra. Já que o álcool é uma substância lícita, você estabelecer a lei seca, que é uma tolerância zero ou quase zero para o consumo de álcool e direção, eu considero uma vantagem. Isso tem um aspecto que torna mais fácil que a gente possa reduzir os danos causados pelo uso de álcool, uma vez que pessoas no trânsito e alcoolizadas têm chances muito maiores de causar um problema para elas e para os outros. Mas em alguns outros, não. Isso faz com que a pressão no Congresso para que essas substâncias tenham preços menores, redução de impostos ou ganhem incentivos fiscais seja maior. E dificulta muito, porque a percepção de risco que as pessoas têm quando uma substância é legal é muito menor. No caso do tabaco, por exemplo, é legal e as pessoas têm uma percepção de risco maior, por quê? Porque houve um trabalho intensivo de educação da população sobre os riscos daquilo e porque teve que haver uma briga muito grande financeira com a indústria produtora de tabaco, coisa que no álcool é mais difícil de fazer. Agora, no aspecto clínico, como o álcool é uma substância lícita, eu acredito que as pessoas têm mais dificuldade para assumir que têm um problema. Demora mais do que se ela usar cocaína. A sociedade tem uma empatia maior com o alcoolista do que com o usuário de substância ilegal, isso é claramente materializado na figura daquilo que as pessoas chamam, pejorativamente, de cracudo, ou nóia, muito embora o crack seja uma substância muito menos consumida. Então, acho que nesse sentido é muito mais fácil que o sujeito se sinta acolhido com a ideia de que tem um problema com o álcool e pode fazer alguma coisa, ainda que no começo seja difícil a pessoa aceitar e reconhecer a necessidade de tratamento.

Se você consegue um ambiente em que a pessoa se sinta acolhida, tenha um emprego decente, uma relação familiar razoável, isso por si só resolveria boa parte da questão?

O que a gente sabe que melhora, o que ajuda uma pessoa que tem um problema com o uso de álcool ou de outras substâncias ilícitas é um tratamento multidisciplinar, ou seja, tratamento psicológico, ocupacional, familiar, acompanhamento clínico e psiquiátrico, a oferta de cuidado para que as vulnerabilidades sociais daquela pessoa sejam contempladas no tratamento. Por exemplo, se o sujeito rompeu os vínculos familiares, se está vivendo uma situação de insegurança financeira, se tem acesso à moradia, à educação, a trabalho, aos direitos civis, tudo isso também precisa estar incluído na compreensão do que é tratamento e o desejo do sujeito de se tratar. Se você submeter uma pessoa a um tratamento involuntário, a chance de que essa pessoa consiga sustentar o tratamento é ínfima. Tem que ter o desejo da pessoa. Às vezes a pessoa não tem desejo de se tratar, mas tem desejo de outras coisas que envolvem o tratamento e aí você trabalha com essas coisas. Por exemplo, quero conseguir estabilizar a minha vida profissional para que o meu filho possa ir à escola.

Como você avalia a oferta de tratamento na rede pública atualmente?

Quando a atenção psicossocial era o centro da atenção da política de saúde mental, [na parte de] álcool e outras drogas ela já era insuficiente. Não era insuficiente no plano teórico, mas era na implementação da quantidade de serviços que precisam operar. Por exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas, que são os CAPS-AD, nunca tiveram incidência prevista pela lei, em termos quantitativos, nos grandes centros urbanos. Agora, com as atuais mudanças da política nacional, passou a ter outros problemas e os dispositivos que recebem mais destaque financeiro são os que trabalham com o regime de internação, como os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas, que trabalham fora da lógica de atenção psicossocial. Atualmente eu não considero que a resposta pública que o Brasil dá para os problemas causados pelo uso de álcool e de todas as outras drogas seja suficiente nem quantitativamente nem qualitativamente.

Um consumo moderado de álcool poderia atenuar o uso de antidepressivos? Dá para fazer uma comparação entre a função dessas substâncias?

É diferente. Essa é uma questão complicada porque a gente sempre tende a procurar respostas objetivas para problemas complexos. As respostas totalitárias sobre se isso funciona ou não, se é melhor ou mais ou menos, são pouco úteis para a gente avaliar e abordar as questões causadas pelo uso de substâncias psicoativas. Por quê? Porque depende do caso. Isso é a principal ética de tratamento: tem que ter políticas públicas de oferta de múltiplos tratamentos, que considerem qual é o lugar que aquela droga tem na vida do sujeito, por que ele usa, quais são as questões envolvendo o uso e que outros tipos de recursos substitutivos podem ser usados. Isso tudo não é tão simples assim. Quando teve a lei seca nos Estados Unidos, nas décadas de 1920 e 1930, por exemplo, a prescrição médica de álcool aumentou muito porque era uma estratégia para tentar que as pessoas usuárias de álcool pudessem continuar usando. Então, até o álcool já foi uma medicação prescrita. Mas eu não sei se dá para dizer que o álcool poderia ser usado como a cannabis medicinal atualmente. A cannabis é uma substância cujo risco de morte é menor, ou seja, mais segura inclusive para ser testada como medicação e com menores índices de dependência, quando comparados com o álcool, até pela prevalência de uso do álcool ser maior.

Mas o que eu acho que é legal da sua pergunta é: as pessoas consomem álcool para aplacar o sofrimento psíquico que elas têm? Consomem, não só por isso, mas consomem por isso também. O ser humano sempre consumiu coisas para dar prazer e para aplacar sofrimento. Não tem problema nenhum nisso, isso é humano, da natureza humana. Mas como isso é influenciado pela lógica do mundo atual e por que a gente chegou ao ponto em que isso é um problema de saúde pública, sendo que o álcool era consumido pelas civilizações grega, egípcia, chinesa e não era um problema de saúde pública? Alguma coisa aconteceu. O problema não é o álcool em si, é a forma como ele é usado na sociedade. O problema é que as pessoas estão sofrendo muito por questões eminentemente sociais, além das subjetivas. Então, acho que não é uma resposta possível dizer que dá para usar álcool em vez de Rivotril, mas também não condeno quem use álcool para aplacar o sofrimento psíquico e escolha não usar um Rivotril, assim como também não condeno quem escolhe usar um Rivotril. O que eu quero mesmo é saber por que você está sofrendo tanto e o que a gente pode fazer com isso. Isso é o mais importante.

O neurocientista Carl Hart ficou muito famoso por enfatizar que a dependência está relacionada mais a questões sociais do que psiquiátricas ou psicológicas. Você concorda com isso? Quais os limites de se apostar somente na abordagem social?

O entendimento de que o problema é somente social é perigoso, o entendimento de que é um problema somente psicológico, subjetivo, individual é perigoso e o entendimento de que é um problema somente da substância é perigoso. Mas sem sombra de dúvidas, eu concordo com o Carl Hart de que o consumo problemático, principalmente, a forma como a sociedade responde a isso, é um problema social. Em especial para as substâncias não legalizadas, como o crack. Mas para as substâncias legalizadas também é. No Brasil, segundo o relatório da Fiocruz, o consumo social de álcool é muito maior entre os escolarizados, ou seja, pessoas com maior escolaridade tendem a consumir mais álcool. No entanto, a dependência é mais frequente quanto menor a escolaridade. Esse dado, por si só, é muito interessante: as pessoas mais ricas, de um estrato social mais elevado, consomem mais álcool, no entanto não desenvolvem dependência como as pessoas mais pobres. Por que será? Porque a pobreza, a discriminação, o racismo são fatores de risco para o desenvolvimento de um problema. Então, até para o álcool, a questão social é fundamental.