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Entrevista: 
Luiz Cláudio Meirelles

‘O que queremos é reduzir o uso e os impactos dos agrotóxicos no Brasil’

A espera foi longa e ainda não se sabe quais serão os próximos passos, mas não há dúvida de que se trata de uma boa notícia: com um atraso de mais de dez anos, acaba de ser criado o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara. A expectativa era de que ele tivesse sido lançado em 2014, quando, mesmo após uma ampla discussão que envolveu vários ministérios, órgãos públicos e representantes da sociedade civil, o texto final acabou sendo embarreirado pela Pasta da Agricultura. Passada mais de uma década, com o novo governo e a retomada de várias iniciativas públicas no âmbito da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, um novo Grupo de Trabalho (GT) foi criado para tocar o desenho do Programa. A primeira promessa era que o lançamento ocorreria em dezembro passado. Depois o cronograma foi novamente adiado para março de 2025. Finalmente, no último dia 30 de junho, sem propriamente um ‘aviso prévio’, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto nº 12.538, que institui o Pronara, com o objetivo de reduzir o uso de agrotóxicos no país. Para Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), ex-gerente da área de toxicologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e representante da Fiocruz tanto no GT de agora quanto do que elaborou o documento de 2014, foi uma “boa surpresa”. Nesta entrevista, ele faz uma primeira análise do decreto: critica as passagens do texto que parecem focar a redução de agrotóxicos apenas em práticas agroecológicas e familiares e não na agricultura como um todo, defende que não se perca o acúmulo de debate do passado no detalhamento do programa e reafirma a urgência de se colocar o Pronara em prática para proteger o meio ambiente e a saúde da população.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 03/07/2025 19h24 - Atualizado em 03/07/2025 19h32

Depois de mais de dez anos do primeiro esforço de construção, finalmente o governo lançou o Pronara, Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Eu queria que você fizesse uma análise geral sobre o conteúdo do decreto que acaba de ser assinado pelo presidente Lula.

A primeira coisa que é importante dizer é que eu estava nesse grupo [de trabalho] do Pronara, que é coordenado pela Casa Civil da Presidência da República, representando o GT de Agrotóxico da Fiocruz. Eu estava nessas discussões que foram acontecendo de meados até final do ano passado. A gente tinha a expectativa de lançar no dia 3 de dezembro [de 2024] o decreto instituindo o Pronara no Brasil. Também participei, representando a Fiocruz, no passado, antes de 2014, da construção do primeiro documento, principalmente com as recomendações relacionadas à regulação de agrotóxico. A gente estava construindo esse programa por dentro do Plano Nacional de Agroecologia. Eu posso te dizer, já de pronto, que fui meio surpreendido [pela publicação do decreto]. Foi uma boa surpresa.

O decreto é bem mais enxuto do que o que era proposto, mas, felizmente, preservou muita coisa daquela proposta. Naquela época, em que a ministra [da Agricultura] Katia Abreu foi contrária, a ideia era envolver cerca de 12 ministérios. Dessa vez, houve o esforço de serem mais, mas o que restou ali foram cinco ministérios e a Secretaria da Presidência da República. Eu não sei se esses ministérios vão entrar depois, em outra forma de articulação. Mas a ideia era que diferentes ministérios que acabam tendo algum tipo de atuação nesse campo pudessem estar inseridos [no Pronara] porque você tem questões de ordem econômica, questões de patente, de ordem industrial, questões relacionadas ao Ministério do Trabalho... Tem um conjunto de medidas para as quais acaba sendo importante a participação dos outros ministérios. Nesse decreto isso não está muito claro.

Se há substâncias hoje que estão proibidas na Europa e o uso é permitido aqui, não importa em que agricultura elas estão sendo utilizadas, em que modelo de produção agrícola, se é pequeno, médio ou grande

O decreto também fala muito em agricultura familiar, agricultura ecológica e agricultura orgânica. Mas não detalha se a ideia é implantar também a redução do agrotóxico para as grandes culturas. Isso também fica como um ponto a esclarecer. Eu espero que a gente possa, no desdobramento, na regulamentação, no desenvolvimento das ações, sanar isso. Porque não é só para pegar agricultura familiar. O decreto fala, inclusive, em agricultura urbana e periurbana, que têm um peso muito menor, e muitas já são feitas incorporando as práticas agroecológicas. Muito se usa de agrotóxico, mas onde se pratica mais a agroecologia é exatamente na pequena produção. Isso me chamou um pouco a atenção e eu acho que é um ponto a esclarecer porque a ideia é trabalhar a questão da redução de agrotóxico no geral. Se há substâncias hoje que estão proibidas na Europa e o uso é permitido aqui, não importa em que agricultura elas estão sendo utilizadas, em que modelo de produção agrícola, se é pequeno, médio ou grande. Tem que partir para uma mudança no modelo. Então, esse é um ponto que eu ainda acho que vai ter que ser visto.

Tem questões também que envolvem a nova lei de agrotóxico [nº 14.785], que passou lá em dezembro de 2023. Com ela, [os ministérios da] Saúde e Meio Ambiente perderam muitas competências como, por exemplo, o poder decisório sobre o registro ou não de um produto [agrotóxico]. Hoje esse poder é exclusivo do Ministério da Agricultura. Então, qual vai ser o alcance de algumas medidas [do Pronara]? Nesse momento, inclusive, o governo está trabalhando em uma regulamentação dessa lei, mas esse texto ainda não está divulgado. Eu não sei nem se alguém do [Ministério] da Saúde está participando. Por exemplo, nós, como Fiocruz, apesar de termos um GT sobre isso, nunca fomos chamados. Não tem ninguém desse GT da Fiocruz participando desse processo de regulamentação. E isso foi comentado durante a construção desse decreto do Pronara. Quem está regulamentando? O Ministério da Agricultura? Tem participação de outros órgãos de governo? Da sociedade civil? Eu, por ora, desconheço. Quem está preocupado com a questão dos agrotóxicos não está inserido nesse processo de regulamentação que se diz estar em curso. E isso, claro, afeta qualquer ação relacionada ao Pronara. Dependendo de como a regulamentação venha, ela poderá implicar avanços ou retrocessos, na menor ou maior dificuldade para implementar determinadas ações, porque [o Ministério da] Agricultura vai ter um poder muito maior do que os outros órgãos.

Não importa o interesse comercial de um produto, primeiro vem a questão da Saúde Pública e a proteção ambiental

O monitoramento de resíduos [de agrotóxicos], por exemplo, é uma questão estritamente vinculada à saúde. É importante estar atento a isso. Porque os órgãos de saúde têm que ter a total liberdade e autonomia para realizar essa ação e discutir o que vão fazer a partir dos resultados. Não importa o interesse comercial de um produto, primeiro vem a questão da Saúde Pública e a proteção ambiental. É um grande avanço a gente ter conseguido publicar o Pronara com o Ministério da Agricultura dentro, mas tem que garantir a sua efetivação. A Saúde tem que estar no programa, abraçada pelo ministro da Saúde e pela ministra do Meio Ambiente, para que a gente o efetive.

Como eu falei, metade dos produtos utilizados no país estão proibidos na União Europeia. Isso é uma preocupação enorme do ponto de vista da Saúde Pública. É uma aberração. A redução de agrotóxicos não se faz só pensando nas práticas agrícolas, mas na proteção à saúde e ao meio ambiente, mesmo que isso signifique algum ônus do ponto de vista da produção. E a produção a gente reorganiza, como já aconteceu várias vezes. Eu trabalhei na área regulatória da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Quando a gente reavaliava um produto e proibia o mercado dele, era uma briga danada. As empresas sempre diziam que a agricultura do Brasil iria acabar porque a Anvisa proibiu o agrotóxico. Mas isso nunca aconteceu. A União Europeia não proibiu um monte de agrotóxicos? A China e outros países também. E continuam sendo grandes produtores de commodities e de uma variedade enorme de produtos agrícolas, sem usar mais esses ingredientes ativos que são perigosos e geralmente causam danos de longo prazo [à saúde], danos crônicos. Então, essa é uma falácia de quem quer continuar lucrando sem investir em pesquisa, em mudança de modelo tecnológico, que quer simplesmente se manter no mercado, com a bênção da área regulatória. Isso não pode continuar acontecendo. Porque a conta vai para o outro lado, vai para o SUS [Sistema Único de Saúde]. As pessoas vão adoecer e vão morrer em razão de produtos que poderiam já ter sido substituídos no mercado e que não causariam danos tão graves.

Os documentos elaborados para o Pronara em 2014, quando o programa acabou não vingando, falam em muitas ações específicas que não aparecem nesse decreto publicado agora, como a reavaliação periódica da toxicologia desses produtos e implantação de zonas livres da influência de agrotóxicos transgênicos. Fala, inclusive, de incentivos financeiros para a produção agroecológica, mas também no fim de isenção tributária para agrotóxicos. Você participou das discussões naquele momento e agora. Iniciativas como essas também constaram dos documentos produzidos pelo GT que subsidiou este decreto? Há a expectativa de que elas apareçam depois, num detalhamento do programa posterior ao decreto?

Acho que vai ter um grupo gestor composto pelos ministérios. Felizmente, a maioria do grupo é mais a favor de políticas mais acertadas para controlar e reduzir agrotóxico. Só o Ministério da Agricultura sempre foi contra. Eu espero que esse grupo gestor, que está previsto no decreto, resgate esses pontos.

Mas eles estavam incluídos na proposta elaborada pelo GT de agora?

Estavam. A gente estava usando aqueles seis eixos [da proposta do Pronara 2014: regulação, fiscalização, incentivos econômicos, alternativas sustentáveis, informação e formação] como um referencial. Isso continuou valendo. Agora, neste momento, é só um decreto. Pelo texto, dá para avançar nessas questões que estavam lá colocadas naquele documento inicial. E eu tenho esperança, inclusive, de que esse grupo, que tem uma maioria mais comprometida [com a redução de agrotóxicos] – a depender das indicações que serão feitas dos ministérios para representá-los – possa resgatar a proposta de 2014 para aprimorá-la.

De lá para cá, muita coisa mudou e pode ser revista e aprimorada, inclusive no sentido de fortalecer a agroecologia, que é o modelo que a gente quer que prevaleça. Tem essa questão dos bioinsumos produzidos pelas grandes indústrias. O decreto fala em bioinsumos, que é uma coisa de que as grandes indústrias estão se apropriando. E tem bioinsumos também produzidos pelo agricultor, por pequenas indústrias nacionais. Tem uma série de questões que foram sendo atualizadas. E eu acredito e espero que a gente consiga avançar nesse sentido. Tem que ter estratégia, porque sabe como é que o Ministério da Agricultura age... No fundo, eles não têm nenhuma visão de modelos de agricultura. Trabalham com um determinado modelo fechadinho, com pacote, e não olham que existem inúmeras possibilidades de modelo produtivo, para as diferentes situações de produção que existem no país e que podem ser efetivadas. É uma coisa empacada, atrasada, por conta da influência do agronegócio, [baseado] em mecanização intensa, fertilizante e agrotóxico.

O decreto que institui o Pronara fala em redução, mas também em “uso racional de agrotóxicos”, que é uma ideia controversa. Isso é possível? Qual a sua avaliação sobre esse trecho do documento?

Eu também não gostei do que li. Não precisava estar lá. Foi a primeira coisa que eu não achei legal também. Tanto que a gente chamou o programa de “redução de agrotóxicos”. E quando você fala em uso racional, significa que vai deixar os agrotóxicos sobreviverem. Agora, quando eu falo de agrotóxicos em geral, estou falando de um conjunto de produtos que estão numa lista da Anvisa: envolve microbiológicos e até produtos químicos mesmo, que já são usados há mais de 300 anos, mas são de baixa toxicidade... [A questão é] como a gente vai tratar isso nesse desdobramento [do programa, para além do decreto]. Você não muda as coisas de uma vez, mas tem que partir para uma substituição. Se eu tenho produtos que não causam nenhum dano crônico e outros que são extremamente tóxicos, vou substituindo esses por outros. Então, quando falo de um programa de redução [de agrotóxicos], se estiver fazendo uma coisa racional, inteligente e com foco na proteção à saúde e ao meio ambiente, eu vou, dentro desse conjunto de situações, mexer nisso e tirar aqueles produtos que representam o perigo à saúde humana. Essa era a nossa estratégia na Anvisa na época: a gente vinha fazendo programas de reavaliação e ia retirando os [agrotóxicos] perigosos. Por outro lado, eu acho que tem que ter estratégias de fomento ao uso de produtos de baixa toxicidade, como os microbiológicos. Existem substâncias químicas que têm um risco menor do que vários produtos que estão autorizados hoje no mercado. Então, o uso racional seria isso. E também entra na racionalidade do uso aquela história de diminuir a dose, ver mecanismos de aplicação que usem menos quantidade. Tem uma série de medidas pequenas com as quais você pode mudar bastante essa realidade. Porque o cara [agricultor] recebe um produto que o vendedor quer que ele use bastante, para vender mais. Isso tem que ser racionalmente adotado, assim como também garantir acesso a esses produtos de baixa toxicidade. Como a grande indústria consegue chegar a todos os cantos do país, muitas vezes o agricultor que produz o microbiológico nas indústrias nacionais não consegue ter uma estrutura de distribuição. Por isso o acesso é um debate importante. Então, com o limão desse texto [do decreto], a gente pode fazer uma limonada. Exige esforço, mas nada tem sido fácil, só tem piorado.

Uma das diretrizes do Pronara fala em garantia do direito humano à saúde e em meio ambiente ecologicamente equilibrado. É um avanço esse reconhecimento, em política pública, dos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde humana e o meio ambiente? Pergunto isso porque a indústria de agrotóxicos tem usado como estratégia a desqualificação do conhecimento científico produzido sobre a relação desses produtos com a saúde e princípio da precaução...

Eu acho que reforça uma coisa que já vem sendo discutida em diferentes momentos da nossa história. O maior reconhecimento [dos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde e o meio ambiente] aconteceu quando a lei de 1989 foi sancionada. Era uma legislação bastante avançada e que foi derrubada agora em 2023. A lei 7.802 avançava até mais do que as legislações dos Estados Unidos e da União Europeia em vários aspectos da avaliação e controle de produtos porque reconhecia naquele momento que eles eram perigosos. Ela dizia, inclusive, que o produto que for carcinogênico, teratogênico ou mutagênico não é factível de registro. Isso a nova lei [14.785/2023] derrubou, implantando a avaliação de risco. Pela outra lei, bastava você fazer os estudos com cobaias e, se o produto se mostrava causador de câncer no filho de uma cobaia que tem compatibilidade com o ser humano, ele não ia ao mercado. Hoje a lei permite que você faça avaliação de risco, uma estimativa de quantos casos [de câncer, por exemplo] haverá em um milhão de habitantes, 100 mil habitantes, 10 mil habitantes. O que se sabe que não é viável. Tanto que a União Europeia mudou em 2011 a lei deles, imitando a nossa. E a gente andou para trás em pleno 2023. A gente tem que avançar no sentido de eliminar as substâncias que comportam essas características toxicológicas, principalmente de longo prazo, causadoras de câncer, doenças neurológicas, alteração do desenvolvimento fetal. Se isso está demonstrado em laboratório, é mais do que suficiente, eu não tenho que esperar provar em humano. Tem que adotar o princípio da precaução. Se não, você continua liberando e depois, quando começa a contar os mortos e feridos, é que vai pensar em fazer alguma coisa. Gente para contar mortos e feridos, nós já temos um monte, tanto [no âmbito] internacional como nacional. Esse não é o interesse para quem está fazendo Saúde Pública. O interesse é ter políticas que façam a prevenção de fato. Se o produto tem suspeitas desses efeitos, tem que estar fora do mercado.

Qual a sua avaliação sobre o papel que coube ao Ministério da Saúde no Pronara, de acordo com o texto do decreto?

Acho que o Ministério da Saúde pode tentar exercer uma liderança política nesse processo

É uma atribuição bem ampla, mas tudo vai depender de como isso vai ser desdobrado nas propostas, ações e programas que ele vai poder incorporar. O Ministério já vem fazendo isso. Ele pode usar o Pronara para fortalecer os programas que já tem, como o Vigiagua [Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano], o VigiQuim [Programa de Vigilância em Saúde Ambiental Relacionado a Populações Expostas a Substâncias Químicas], o VSPEA [Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos]. Eu acho que é uma oportunidade de fortalecer esses programas do Ministério, colocando recursos, trazendo estados e municípios para dentro deles. Acho que o Ministério da Saúde pode tentar exercer uma liderança política nesse processo. Tem competência para isso, no amplo sentido: não só a competência do ponto de vista constitucional, como competência do ponto de vista técnico, porque tem muita gente que atua nesse campo trabalhando no Ministério, na Fiocruz, no Inca e na Anvisa, que são todos órgãos vinculados. Tem tudo para que essa coisa funcione e dê certo, agora vai depender de como se vai desdobrar em termos de programas e ações, conforme está previsto no texto. Agora, tem aquele problema que eu te falei lá atrás, que é se isso não vai chocar com alguma questão [atribuída] ao MAPA [Ministério da Agricultura e Pecuária].

Pois é... A primeira função do Ministério da Saúde que aparece no decreto é elaborar uma agenda regulatória de avaliação e reanálise toxicológica. Mas, na sequência, o texto diz que essa análise deve ser coordenada pelo MAPA que, além disso, é responsável pelo registro de agrotóxicos no Brasil.

A lei [14.785] já está dizendo isso.

Sim, e decreto não pode alterar a lei...

Não pode alterar a lei, exatamente. Mas aí depende de como a [Pasta da] Saúde vai construir isso. Até porque o MAPA não tem competência para isso constitucionalmente. É por isso que a gente tem uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade, nº 7701], que não foi votada ainda no Supremo Tribunal Federal, contra essa nova lei. É uma ação de inconstitucionalidade porque essa nova lei tirou da Saúde uma atribuição que é especificamente dela. É papel da Saúde o controle de substâncias que causam danos à saúde humana. Essa é uma outra briga em paralelo. Agora, a Saúde pode tentar arrancar o máximo desse texto do decreto.

Me chamou atenção que, entre as atribuições do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, está apoiar a redução de uso de agrotóxicos nos resultados das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e nas unidades produtivas desenvolvidas no âmbito do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, o que significa aproveitar o financiamento público para fomentar a redução dessas substâncias. Entre as atribuições do MAPA, no entanto, não constam medidas que usem as políticas públicas voltadas ao agronegócio para redução do uso de agrotóxicos. Essa comparação faz sentido? Se sim, por que o desenho do Pronara foi esse?

A comparação faz sentido na medida em que cada órgão tem um conjunto de políticas para enfrentamento à questão dos agrotóxicos ou da própria agricultura e nessas políticas tinha que caber tudo que diz respeito à redução dos agrotóxicos. Então, foi muito bem lembrado no caso do Ministério de Desenvolvimento Social, a questão da segurança alimentar, do impacto que ela deveria ter nas políticas que são responsabilidade do órgão. Isso está bem colocado. Quanto a não ter citação das políticas do MAPA, provavelmente isso aconteceu na finalização dessa proposta. Se você olhar o texto inicial, que tem as seis diretrizes, lá estão colocadas todas as estratégias, inclusive a Política Nacional de Agroecologia, que tem uma parte importante sob responsabilidade do Ministério da Agricultura na implementação. Então, a sua pergunta é pertinente, o texto é incompleto nesse aspecto. E, na verdade, os programas e ações que ele determina que vão acontecer é que poderão dar uma direcionada mais adequada para que cada órgão trate dessas questões no âmbito das suas políticas relacionadas a acesso, uso, controle e fiscalização de agrotóxicos.

É bastante louvável a gente ter esse texto na mesa porque isso não foi possível nos governos anteriores. Estava claro que havia uma séria oposição a qualquer política de redução de agrotóxicos no Brasil

Não dá para dizer que esse é o desenho do Pronara. Até porque o desenho inicial tinha, como eu citei, vários ministérios e provavelmente, dentro da negociação, esse foi o texto que se alcançou. Agora, de qualquer maneira, é bastante louvável a gente ter esse texto na mesa porque isso não foi possível nos governos anteriores. Até porque, pelo cronograma que ocorreu, estava claro que havia uma séria oposição a qualquer política de redução de agrotóxicos no Brasil. Então, acho que as imperfeições existem e vão ter que ser trabalhadas pelo grupo gestor, na medida do que será possível. E ainda sabendo que possivelmente o Ministério da Agricultura vai ter muito pouco empenho, como foi historicamente na sua atuação em relação aos agrotóxicos. Isso sempre foi muito mais uma preocupação dos ministérios da Saúde e do Meio ambiente.

O que podem ser “medidas fiscais e financeiras para estimular a redução do uso de agrotóxicos”, mencionadas no decreto do Pronara?

Medidas fiscais e financeiras são aquelas que visam estimular ações, programas, entre outros, para que você possa avançar na redução dos agrotóxicos. Por exemplo, uma medida fiscal pode ser aumentar o imposto sobre os agrotóxicos que são perigosos, medidas que busquem impulsionar arrecadação para ações de controle e vigilância. E com recurso para isso, que são as medidas financeiras: você tem que ter dinheiro para estabelecer esses programas. É nesse sentido que isso está colocado aqui. Se não, não se avança. Hoje há um incentivo tremendo à desoneração dos agrotóxicos e não tem muito estímulo à pesquisa, por exemplo, com produtos do campo da agroecologia. A tentativa aí, possivelmente, foi garantir que medidas fiscais e financeiras sejam a base para que você possa avançar na redução dos agrotóxicos. Sem dinheiro não se faz isso. Se destinar dinheiro só para aquisição de agrotóxico voltado para o agronegócio, você está estimulando o consumo de agrotóxico e não o contrário.

O texto menciona acordos e tratados internacionais sobre eliminação de substâncias químicas danosas à saúde. A que isso se refere? O Brasil é signatário de que acordos desse tipo?

O Brasil é signatário de acordos que fazem o controle de substâncias químicas. O primeiro deles é a Convenção de Estocolmo, que é sobre poluentes orgânicos persistentes e isso inclui vários ingredientes ativos de agrotóxicos. Ela tem caráter vinculante e mandatório e já indica aos países, por exemplo, a proibição de produtos organoclorados. Então, BHC e DDT foram proibidos no âmbito dessa convenção e o Brasil tem que implementar. Mas tem uma segunda convenção, que é a de Roterdã, que é sobre procedimento prévio informado, que emite um alerta sobre substâncias que são perigosas no mundo e o país tem que informar periodicamente o que está sendo consumido, o que ele está fazendo, que medida regulatória está adotando. O Brasil também é signatário dessa convenção. Ela tem uma lista positiva de produtos que os países devem controlar e emitir alerta sobre o uso. Nós, no Brasil, usamos muito essa lista para botar produtos agrotóxicos em reavaliação. Então, algumas indicações que vinham nessa lista a gente colocava em reavaliação e acabava banindo esse produto do país também. A terceira convenção é a de transporte de resíduos perigosos, que é a de Basileia. É para que não se leve produtos perigosos ou resíduos tóxicos de um país para o outro. E o Brasil também é signatário. Nós temos também, mais acessoriamente, não tão diretamente relacionado a produtos químicos, a Convenção de Montréal, que é sobre a destruição da camada de Ozônio, que inclui alguns agrotóxicos que são destruidores da camada de Ozônio, e a convenção de biodiversidade, que também envolve químicos na medida em que o uso próximo a ecossistemas complexos tem um impacto importante que pode destruir a biodiversidade dessas regiões. Mas as três principais são Estocolmo, Basileia e Roterdã. Elas têm sido uma referência para tudo isso aqui no Brasil.

Inclusive, mais recentemente, nós temos discutido em nível internacional, com a Conferência Mundial sobre a Água, a questão de uma normatização internacional para agrotóxicos, na medida em que, por exemplo, vários produtos que são proibidos na União Europeia estão autorizados aqui. Então, que se harmonize uma regulamentação para que essas aberrações não aconteçam. Quando o motivo for saúde humana e meio ambiente, que você não tenha essa assimetria entre os países, em que uns proíbem porque causam perigo à sua população e outros utilizam porque aqueles mesmos exportam, principalmente, para os países do hemisfério Sul. Também temos uma discussão hoje em curso, através do Ipsa [International Pesticide Standard Alliance], que está levando esse debate na União Europeia, principalmente, para reduzir essa assimetria entre o Norte e o Sul.

Uma vez lançado o Programa, com o decreto, quais são os próximos passos? Que medidas concretas estão previstas no curto, médio e longo prazo para pôr em prática o que diz o texto?

O primeiro passo seria a implantação do comitê gestor. E espero que resgatem todo esse processo que vem acontecendo desde 2014 e tudo aquilo que já foi escrito, trabalhado, discutido para que façam o melhor desenho possível para o decreto que foi recém-publicado. É o comitê gestor que vai estabelecer as diretrizes e as ações e programas que deverão ser implementados para dar concretude ao decreto, a tudo que está sendo pensado nesse setor e que já vem sendo discutido ao longo de anos. O que queremos é reduzir o uso e os impactos dos agrotóxicos no Brasil. E para isso já tem muita coisa realizada. O comitê gestor pode ser um organizador desse processo através de inúmeras medidas ou do fortalecimento dos órgãos que já atuam nessa linha, porque muita coisa já acontece por dentro dos ministérios e dos seus órgãos vinculados. Eu estou acreditando que, para pôr tudo isso em prática, esse grupo vá trabalhar com aquilo que nós já temos, fortalecendo a atuação dos órgãos que já existem e que já fazem trabalhos em relação a isso, garantindo mais recursos, mais poder político e institucional, para que a gente consiga alcançar essa desejada redução de agrotóxicos, que é briga de muitos anos em termos de Saúde Pública e preservação ambiental e que, muitas vezes, foi negligenciada. Minha esperança é que, dados esses passos, possamos respirar um pouco nesse processo. Sabemos que não vai ser uma luta fácil porque existem do outro lado aqueles a quem interessa manter esse consumo absurdo de agrotóxicos, mas é importante, necessário e urgente que a gente estabeleça essa redução, se quiser garantir para as novas gerações um futuro com muito mais saúde, muito mais equilíbrio ambiental. Tem muito espaço para melhorar e isso tem sido pouco explorado em razão desse modelo produtivo que a gente vem estabelecendo no país.