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Entrevista: 
Pablo Ortellado

‘Os meios de comunicação têm agido no sentido de forçar uma situação de convulsão social’

Pesquisador tem acompanhado de perto as manifestações recentes contrárias ao governo Dilma com o objetivo de traçar o perfil de quem está saindo às ruas. Diante dos últimos acontecimentos, ele alerta para a apropriação do discurso verdadeiro da insatisfação popular pela mídia e pelos grupos ultraconservadores e ultraliberais.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 17/03/2016 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Professor do curso de gestão em políticas públicas da Universidade de São Paulo, Pablo Ortellado é um dos pesquisadores que têm acompanhado de perto as manifestações recentes contrárias ao governo Dilma com o objetivo de traçar o perfil de quem está saindo às ruas. Diante dos últimos acontecimentos, ele alerta para a apropriação do discurso verdadeiro da insatisfação popular pela mídia e pelos grupos ultraconservadores e ultraliberais.

No esforço de entender o cenário atual, que leitura pode ser feita do que está acontecendo no país?

Essa é uma pergunta que não é simples. Há alguns elementos que eu posso dar e que saem do lugar comum. A primeira coisa é entender a dinâmica de mobilização das ruas. Em geral, se confundem três coisas muito diferentes. Uma é a insatisfação, os setores que estão insatisfeitos com o governo, seja por conta da corrupção, seja por conta da performance da economia. Uma segunda coisa são as pessoas mobilizadas, e uma terceira coisa são os grupos que estão chamando as manifestações. Separar essas três coisas ajuda a entender um pouco esse processo.

Quando a gente vê os dados, tanto os dados do Ibope, quanto os dados do Datafolha, percebe que as pessoas que estão insatisfeitas estão bem distribuídas, tanto do ponto de vista geográfico quanto do ponto de vista social. Você vê os insatisfeitos com escolaridade baixa e com escolaridade alta, com renda baixa e com renda alta e a variação percentual é muito pequena. Então, realmente é uma insatisfação que está espalhada e é uma insatisfação alta. Isso é diferente do processo de mobilização. O processo de mobilização que é construído dessa insatisfação, mas que sempre se constrói a partir de um meio social determinado, é muito homogêneo e muito concentrado geograficamente. Então, ele é concentrado em São Paulo e é homogêneo socialmente. Está concentrado nos mais escolarizados, de renda mais alta e de etnia branca. Então, não se deve confundir as duas coisas, insatisfeitos estão bem distribuídos e os mobilizados estão concentrados. E uma terceira coisa são os grupos que estão liderando os protestos, desde o começo do ano passado, na verdade, desde o final de 2014, logo após as eleições. Estes grupos que estão liderando os processos são bem diferentes dos mobilizados. Eu e duas colegas fizemos uma pesquisa de opinião com os manifestantes e a gente pôde ver com muita clareza que existe uma divergência entre esses dois grupos, principalmente no tocante à defesa dos direitos sociais. Os manifestantes, em larguíssima medida — mais de 95% — apoiam a educação e a saúde pública, universal e gratuita. Já as lideranças dos protestos têm uma agenda liberal muito expressiva de privatização dos sistemas de saúde e educação. Até mesmo na pauta da tarifa zero, do transporte gratuito, que é uma inovação, metade dos manifestantes tem acordo com isso. E isso tem profundo desacordo com as lideranças. Um outro elemento que a gente deve ver é a representação dos meios de comunicação. Porque nós temos pelo menos dois meios de comunicação no Brasil muito engajados com uma agenda política, a Rede Globo e a Revista Veja. Eles têm usado seu poder de uma maneira muito aberta para mobilizar. Eles têm utilizado politicamente tanto da insatisfação, quanto da mobilização. Uma vez que esses elementos são separados, ajuda a entender que temos elementos diferentes interagindo e que muitas vezes se reduz um deles. Por exemplo, se diz: ‘essas mobilizações não existem, isso é uma construção dos meios de comunicação’. Isso não é verdade. Ou então se diz: ‘essa insatisfação está restrita à classe media branca’. Isso também não é verdade. Acho que separar essas coisas é o principal elemento analítico para a gente entender esse processo.

Como podemos explicar esse descompasso entre os grupos que convocam as manifestações e quem de fato está indo pra rua, já que, pelo que o senhor mencionou, o posicionamento sobre questões fundamentais é muito diferente? Podemos falar em despolitização?

Existe uma tensão entre as duas posturas, mas na verdade existe um vácuo. Nós não temos uma força que defenda os direitos sociais e que esteja engajada na luta contra a corrupção. No vácuo dessa liderança é que esses novos grupos de direita assumiram a liderança dos protestos. Isso gera uma tensão, mas eles têm atuado fortemente no sentido de converter uma coisa em outra. Por exemplo, em converter a insatisfação com a corrupção em uma crítica do Estado e os manifestantes não estão criticando o Estado, ao contrário, eles estão pedindo melhores serviços públicos. E as lideranças vêm dizendo que a corrupção advém do Estado, então se a gente diminuir o tamanho do Estado, diminui a corrupção. Eles estão tentando converter uma coisa em outra.

E os outros atores políticos, empresários, movimentos sociais, como se posicionam?

Os meios de comunicação e os empresários estão homogêneos em destituir a presidente, aproveitando, assim como as lideranças dos protestos, da insatisfação não só para propor uma agenda política, não só para discutir a questão de quem lidera, como para instituir mudanças econômicas. Agora, há movimentos que apoiam o governo, mas há vários movimentos sociais que não estão sabendo se posicionar. É o caso do Movimento Passe Livre ou dos secundaristas aqui em São Paulo.

Essa falta de posicionamento pode ser perigosa? Estamos diante de um golpe? 

Tudo é possível, né? Eu não sei dizer. Se você tiver indícios de crime da presidente, o impeachment é um instituto legítimo. Não é golpe. Impeachment não é golpe. O impeachment contra o Fernando Collor não foi golpe. Eu acho que pode vir a acontecer que as delações da Lava Jato sejam surpreendentes, mas, na minha avaliação, até agora não gerou nenhum fato ainda que justifique o processo do impeachment. Então, se houver uma destituição sem fundamento, isso é uma ameaça às instituições. Os meios de comunicação têm agido no sentido de forçar uma situação de convulsão social. Foi o que aconteceu com a Rede globo ontem [16/03/2016], ela obviamente estava incentivando as pessoas a irem ao Palácio do Planalto, quem sabe tentar uma invasão. Eu acho que se qualquer coisa desse tipo acontecer, vai ser muito perigoso.

Quem perde se isso acontecer?

Eu acho que perde todo mundo. Se a gente tiver um processo de desrespeito às regras da democracia liberal, é uma regressão importante.

Esse discurso ultraconservador dessas organizações que estão puxando as manifestações ganha espaço?

Ultraconservador e ultraliberal. Tem umas que são só ultraconservadoras, outras ultraliberais e outras são os dois. Estão explorando essa insatisfação por uma ausência de capacidade organizativa da esquerda, que está muito presa ao governo. Acho que a esquerda tem muita responsabilidade nisso, de deixar esse vácuo. Ela abandonou o discurso de combate à corrupção e entregou para grupos de extrema direita.

Pensando no cenário institucional, esses grupos encontram respaldo em algum partido?

Os grupos que estão liderando, um pedaço importante deles está muito engajado na construção do Partido Novo, que é um partido ultraliberal recém criado.