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Entrevista: 
Guilherme Boulos

'Para a esquerda brasileira sair do atoleiro em que está hoje é preciso ter uma ampla unidade de ação'

Nesta entrevista, o filósofo Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), fala sobre as perspectivas de construção de saídas à esquerda para a crise política e discute quais os passos que a esquerda brasileira deve dar para mudar a correlação de forças tão desfavorável quanto a do cenário político atual.
Maíra Mathias, Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Crise. Essa é a palavra que mais se ouviu em 2015, aplicada à economia, aos partidos, aos políticos e até à “moral”. Caminham em falso parlamentares e empresários envolvidos na Lava Jato, sob a corda bamba se equilibra o governo Dilma Rousseff e a pergunta que não quer calar é: o que o futuro nos reserva? A questão é particularmente urgente para a esquerda brasileira, que viu a força motriz de junho de 2013 se transformar em uma enorme onda conservadora onde surfa a nova – e nem tão nova – direita nacional. Respondê-la, contudo, depende de um inventário do que significou a chegada da esquerda ao poder, com o Partido dos Trabalhadores, o que restou dessa experiência e o que significa seu aparente declínio. Em suma, quais são os dilemas e desafios da esquerda brasileira hoje e como mudar a atual correlação de forças tão desfavorável aos trabalhadores, populações tradicionais, indígenas? Para debater essas questões, a Revista Poli convidou uma liderança de um dos movimentos sociais mais ativos na disputa por “corações, mentes e ruas” – o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Nesta entrevista, o filósofo Guilherme Boulos fala sobre outro exercício de equilíbrio, sob “fio de navalha”, que se apresenta para os movimentos que querem disputar a insatisfação popular para a construção de saídas à esquerda da crise.

O PT está há quase 13 anos no poder e, tanto o governo quanto o partido, vivem hoje uma crise sem precedentes. Um aspecto da crise parece estar ligado à descaracterização do PT como partido de esquerda. Você concorda? Essa inflexão estava visível desde antes da eleição de Lula, em 2003, ou se deu ao longo da trajetória do partido no poder?

Já na década de 1990 o PT fez a opção de se voltar todo para a disputa do Estado. Aquilo que foram as forças sociais pulsantes que geraram o PT nos anos 1980 – greves, movimento popular, comunidades eclesiais de base – deixaram de ser prioridade do partido. O foco passou a ser ganhar prefeituras, governos, aumentar a bancada parlamentar para chegar à Presidência da República. O discurso era chegar à Presidência para fazer as mudanças necessárias, incluindo mudar o sistema político brasileiro, mas o que aconteceu é que o PT se adaptou a esse sistema, se adaptou às alianças conservadoras para estabelecer governabilidade.  Apesar de avanços do ponto de vista de programas sociais e de investimentos públicos, em 13 anos de poder não foi feita nenhuma reforma estrutural e não se combateram os privilégios históricos da elite brasileira. Nesse sentido, não é possível dizer que o governo petista foi um governo de esquerda.

E pode-se dizer que o PT permanece sendo um partido de esquerda?

O problema foi que o PT praticamente se identificou com o governo. O partido não construiu uma posição própria por fora do governo e tomou como seu o conjunto das políticas e das opções assumidas pelo governo.

Ao mesmo tempo em que se consolidam essas análises sobre a descaracterização do PT, observamos em 2015 um crescimento, nas ruas, do ódio ao pensamento de esquerda como espécie de irmão siamês do ódio ao PT. Episódios em que pessoas vestindo vermelho foram acuadas durante as manifestações dão o tom desse processo. Em que medida o ‘ocaso’ do PT impacta a organização das esquerdas no Brasil?

Esse é o drama. Ao mesmo tempo em que o governo petista não tomou uma opção de esquerda – especialmente neste segundo mandato da Dilma, em que está se aplicando uma política de austeridade que era a plataforma do candidato da direita em 2014 –, a direita cresce nas ruas e no parlamento. Esse antipetismo que está nas ruas não critica o PT por não ter feito as reformas populares, mas por achar que o partido é bolivariano e comunista. Nesse sentido, uma esquerda crítica e independente do governo não pode cometer o erro de flertar com esse antipetismo das manifestações de classe média. Esse antipetismo é antivermelho, antiesquerda, antigreve, antiocupação de terras, antimovimento social. O drama é que ao mesmo tempo em que é preciso combater essa ofensiva da direita, também não é possível defender as políticas do governo. É preciso enfrentá-las também. Hoje uma postura que eu acredito ser coerente na esquerda brasileira é fazer esses dois enfrentamentos: tanto à ofensiva da direita, que critica o PT talvez por alguns de seus méritos, quanto às políticas do governo, que fazem o povo pagar pela crise.

O enfraquecimento do PT pode ter dado as condições para o aparecimento e fortalecimento dessa direita?

Temos que ir um pouco além. As políticas adotadas pelo PT no governo em parte são responsáveis por esse fortalecimento da direita. A opção por construir um governo de pacto, mesmo quando se tinha amplo suporte social, com 80% de popularidade, foi também a opção por não fazer os grandes enfrentamentos necessários, mantendo a divisão do butim com os setores da direita mais tradicional. Isso foi como chocar o ovo da serpente, mantê-los fortes, vitaminados, para que num momento de enfraquecimento do PT, eles pudessem dar o bote como estão dando. Agora, naturalmente que se o PT não fez reformas estruturais – e de fato não fez, estou falando de reforma urbana, agrária, tributária, política, democratiza-ção das comunicações, e nada disso foi pautado nesses 13 anos –, por outro lado, funcionou como um freio para contrarreformas no país. E o enfraquecimento do PT tem colocado em pauta essas contrarreformas, particularmente no Congresso Nacional.

E qual tem sido o papel do Congresso Nacional no reascenso da onda conservadora?

Um papel protagonista. É impressionante a rapidez com que o Congresso tenta converter as manifestações de 2015 em retrocessos institucionais. Poucas semanas depois [das manifestações] se pauta terceirização, redução da maioridade penal, contrarreforma política, posteriormente, Estatuto da Família, PEC dos Indígenas [PEC 215/00], lei antiterrorista – esta, é importante que se diga, com projeto originário do governo –, ou seja, uma série de projetos que estavam na gaveta esperando o momento apropriado, uma correlação de forças mais favorável à direita brasileira para se impor.

Ainda sobre a nova direita, não há muita dúvida de que existem grupos, inclusive financiados por entidades estrangeiras, que estão se organizando. Mas nem todo mundo que foi protestar é automaticamente filiado às pautas mais simbólicas da direita, como o Estado mínimo. Quais são os vetores que unem essas pessoas que estão indo às ruas?

Uma grande insatisfação social. Hoje essa insatisfação é medida em todas as pesquisas com o governo, mas não só. O índice de aprovação do Congresso Nacional é menor do que o índice da Dilma, que já é muito pequeno. O índice de credibilidade dos partidos políticos é ainda menor que o do Congresso. Há uma crise de representatividade, no sentido de que esse sistema político dominado pelo poder econômico é incapaz de dar voz aos grandes anseios da maioria da sociedade brasileira. Acontece que a direita brasileira tem sido capaz de canalizar essa insatisfação. É verdade que nem todo mundo que estava [nas manifestações de] 15 de março ou 16 de agosto é de direita, felizmente. No entanto, as pautas mais representativas são saídas à direita para a crise. A direita tem sido capaz de canalizar essa ampla insatisfação social, a partir do aparato de mídia também. O desafio da esquerda brasileira é disputar essa insatisfação.

Muito se falou durante esses anos de governo do PT da cooptação de movimentos sociais, com consequente arrefecimento das lutas que vinham sendo travadas no país. Se isso pode ser verdade no caso de entidades e movimentos ligados ao PT desde sua origem – CUT, UNE e MST –,outras forças políticas, como o MPL e o MTST, se fortaleceram. Como você analisa o surgimento e crescimento desses novos movimentos e a importância de ir para as ruas após junho?

Junho de 2013 foi um fenômeno complexo. Nenhuma análise unilateral dá conta de junho, que foi um movimento desencadeado por uma pauta urbana e por um movimento com um viés de esquerda, como é o MPL, mas que, no seu rescaldo, foi apropriado por setores da direita. E se é possível dizer que alguns movimentos sociais, como o MPL e o próprio MTST, se fortalecem após junho, certamente a direita também sai do armário e toma as ruas. No caso desses movimentos, vou dizer mais particularmente do MTST, esse crescimento se expressa na capacidade de lidar com demandas concretas de forma independente e desatrelada dos governos. A autonomia do movimento social é essencial. A ideia de que ‘pau que bate em Chico também bate em Francisco’, de não deixar de fazer nenhuma luta e nenhum enfrentamento porque é tal ou qual partido que está no governo, isso fortalece muito a dinâmica e a capacidade do movimento de crescer e representar pautas populares. Sobre os outros movimentos, eu acho que não se deve jogar a criança fora com a água do banho. São instrumentos historicamente criados pelos trabalhadores no Brasil que não podem e nem devem ser jogados no lixo. Ainda têm uma representatividade social expressiva. Você pode criticá-los. O MTST tem diferenças de análises com a CUT, a UNE e o MST. Mas para a esquerda brasileira sair do atoleiro em que está hoje é preciso ter uma ampla unidade de ação entre os setores que representam força real no movimento social.

Embora faça muitas críticas ao governo, o MTST tem participado de eventos que, em nome da defesa da democracia, contra o golpismo, acabam sendo interpretados como atos de proteção ao governo. Esse foi o caso da manifestação de 20 de agosto, por exemplo, e, mais recentemente, do Congresso da CUT. Essa decisão sobre a proximidade com um governo que se critica num momento de ameaça de impeachment tem, inclusive, dividido a esquerda...

O MTST não participou ou participa de qualquer ato de defesa do governo. O MTST, aliás, é o movimento social que mais luta fez contra as políticas desse governo em 2015.

Sei que vocês criticaram pesadamente o governo, mas o ato de 20 de agosto foi interpretado como de apoio. Me refiro à divisão na esquerda, entre aqueles que argumentam que criticar o governo é fazer o jogo da direita e outros que defendem que a esquerda deve fazer de uma vez por todas o “luto” do PT, algo como “puristas” versus “governistas”...

Quem estava lá no dia 20 de agosto viu o tom do ato. Não nos pautamos pelo que diz a Rede Globo, a Folha de S. Paulo ou o Estadão. Quem estava lá viu o tom da maioria do ato que era claramente de crítica às políticas do governo. Se a Globo resolveu publicar outra coisa, tem que conversar com o Ali Kamel [diretor de jornalismo da Rede Globo], não comigo. Do ponto de vista dessa diferença de posições na esquerda brasileira, acho que há dois erros que precisam ser evitados nessa conjuntura. O primeiro é fazer a defesa desse governo em nome da necessidade de criticar e combater a ofensiva conservadora. Essa ideia de que qualquer crítica ou qualquer enfrentamento às políticas do governo seria fazer o jogo da direita é extremamente equivocada. Isso leva a esquerda brasileira a dar um abraço de afogado num governo que gera uma ampla insatisfação social e, inclusive, tira a capacidade da esquerda de fazer a disputa pela insatisfação social que tem que ser feita hoje. Adotar uma política de defesa do governo significa perder imediatamente a capacidade de dialogar com 80% da população que não quer ouvir falar nele. Além de um erro político, seria um tiro no pé. Por outro lado, é um erro igualmente grave subestimar a direita ou flertar com o antipetismo de direita, em suma, acreditar que daí vai sair qualquer caldo, mesmo em nome da legítima necessidade de enfrentar a política desse governo. Esse tipo de posição ignora o tamanho da ofensiva conservadora que vivemos hoje no Brasil. Ignora que com esse antipetismo de direita não há dialogo, pois é o mesmo que está batendo em quem está de vermelho, que enfrenta as políticas historicamente identificadas com a esquerda brasileira e com os movimentos sociais. A postura política que achamos correta neste momento é a de fio da navalha. Ao mesmo tempo em que se enfrenta essa ofensiva conservadora, se enfrentam as políticas do governo defendendo uma saída à esquerda para a crise. Essa tem sido a política do MTST marcada por independência e crítica em relação ao governo.

Na medida em que o PT se enfraquece e outros partidos de esquerda não conseguem grande expressão eleitoral, como você vê o futuro da esquerda partidária e da disputa eleitoral no país?

Nosso desafio é a reconstrução da esquerda brasileira. E isso passa por outro espaço central que não é o da institucionalidade. Não que se deva abrir mão ou que o que há de expressão de esquerda na institucionalidade deva ser jogado fora. Ao contrário, o fortalecimento dessas manifestações da esquerda, seja com o PSOL, seja com setores do PT, ainda é fundamental. Mas acreditamos que o grande desafio é retomar as ruas como espaço de fazer política. A opção tomada pelo PT de fazer um giro completo para a institucionalidade, deixando de fazer trabalho de base, deixando de atuar nas ruas e construindo uma sustentação de governabilidade através do parlamento, deu no que deu. Repetir é tolice. É preciso reconstruir o ciclo de mobilização social no país. Isso é essencial mesmo para aqueles que querem atuar na institucionalidade. Para que essa atuação possa ter algum respaldo, tem que ser com forças sociais e populares ativas nas ruas.

Comparando com o movimento 15M na Espanha e, posteriormente, o surgimento do Podemos!, muitas vezes se lamenta o fato de que nenhuma força partidária tenha surgido de junho de 2013. Qual é a reflexão do MTST sobre a forma partido?

No caso do Podemos!, você frisou bem, ele surgiu depois do 15M. Nós temos que fazer primeiro a lição de casa, que é colocar 300, 400 mil pessoas nas ruas como se fez na Espanha. Ficar pensando em construir instrumentos institucionais a frio não é algo que vai representar uma alternativa de saída à esquerda para essa crise. Não que se deva negar a construção de ferramentas políticas, mas me parece que elas não devem se identificar com o que é hoje esse modelo institucional de partido que está desacreditado, até porque o sistema político brasileiro está desacreditado. É preciso que se construa antes de tudo um ciclo de mobilização. Não adianta ficarmos tendo uma referência no Podemos! sem compreender o processo que gerou o Podemos!. Se não, vamos ficar só no ‘Queremos!’.