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Entrevista: 
Tatiana Wargas

Saúde: financiamento em tempos de crise

Doutora em Saúde Pública pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, Tatiana Wargas se dedica a estudar as políticas públicas de saúde. Ela é professora e pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fiocruz, e integra o grupo de pesquisa ‘Desenvolvimento, políticas públicas e sistema de saúde’. Nesta entrevista, ela analisa os impactos da crise financeira atual para as políticas sociais, especialmente a saúde.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 10/03/2009 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como a atual crise econômica pode afetar os gastos públicos em relação à seguridade social e, mais especificamente, à saúde? O que tem acontecido com o SUS, ao longo desses 20 anos, em épocas de crise?

Toda crise é sempre um alarde. Ligamos o sinal vermelho como se alguma coisa fosse acontecer na vida das pessoas, elas fossem ficar desempregadas ou ter menos dinheiro para fazerem suas compras. Toda crise, historicamente, é um momento difícil. E essa crise está se mostrando maior do que imaginávamos inicialmente. Podemos dizer que é sazonal. De tempos em tempos vivemos crises econômicas. Estamos vivendo uma maior, talvez daqui a alguns anos possamos entender melhor o que está acontecendo, porque agora estamos no meio da turbulência, mas algumas lições históricas nós já temos. Em todo momento de crise, temos também maior contenção de gastos públicos, sobretudo nas áreas sociais. É inevitável, porque são as áreas que exigem investimento alto e constante: os gastos em saúde não se mantêm numa linha constante, estão sempre crescendo e empurrando para que sejam maiores. Então num momento de crise, aquilo já é de difícil negociação nos governos se apresenta de maneira mais crítica ainda. Vivemos hoje, novamente, uma situação crítica para o setor saúde e para as políticas sociais de maneira geral porque não vai ter recurso para investir. de imediato. Só que já vivemos em 2008 um certo arrocho na saúde desde o fim da CPMF. E não se colocou nada no lugar. A previdência tem obrigações muito claras. O núcleo duro dela, que são os aposentados e pensionistas, não se pode deixar de pagar. Como existe pressão, haverá sempre aumento dos salários, o que repercute em pensão e aposentadoria. Esse núcleo duro da seguridade vai se manter numa base constante de recursos. O maior corte virá nos núcleos frágeis, como saúde e assistência. A falta de regulamentação da Emenda Constitucional 29 fragiliza a saúde no seu orçamento, ainda mais em tempos de crise. A falta de regulamentação faz com que muitos estados e municípios não apliquem exatamente o que foi estabelecido em saúde porque usam os recursos em áreas que são consideradas afeitas à saúde, como merenda escolar. O governo Lula tem uma grande preocupação com as políticas sociais, mas especificamente as de assistência social. Se esse é o foco do governo, quando se tem uma disputa de recursos entre as áreas frágeis, se a assistência ganha maior força, a saúde vai perder de novo. E não à toa, nos dois primeiros anos de mandato, no orçamento do governo federal parte dos recursos destinados à saúde foram destinados ao bolsa-família. Isso mudou. O SUS, apesar de ser forte, ter clareza da sua direção, ter uma política que parece ser bastante clara, e bandeiras de luta que deveriam estar sendo cumpridas, como universalidade, integralidade, participação e descentralização, tem uma fragilidade frente aos demais projetos do governo.

Você disse que a previdência é mais forte porque está tudo mais claro...

Alguns economistas chamam isso de núcleo duro. Porque é uma área em que se sabe quanto se vai gastar para financiar mensalmente um x de aposentadorias e pensões. Você faz uma planilha. Na saúde, não: fazemos previsões de gastos, mas sempre dizemos que enquanto tiver dinheiro vamos usar. Não temos estudos tão específicos que possam dizer e orçar (nenhum país é assim claro) de forma tão clara esses gastos.

Apesar disso, ouvimos mais críticas aos gastos com a previdência que com a saúde.

No fim dos anos 70, se começou a ouvir falar em crise da previdência. Desde então tem se tentado diminuir o ônus dos estados com a previdência. Nos anos 70, nossos avós recebiam aposentadoria integral. As reformas que foram feitas, algumas constitucionais, buscando diminuir gastos aí. Estabeleceu-se em determinado momento que o mínimo era o salário mínimo, depois foi o salário mínimo de referencia, incentivavam-se as privadas complementares. É uma área que parece estar sofrendo mais crítica e é uma área que só parece mais frágil. Porque, com o crescimento populacional e com o envelhecimento, há cada vez mais volume de gente se aposentando. Se você pega planilha do volume de beneficiários, vê que só aumenta, especialmente porque as pessoas começaram nos anos 70 a se aposentar em massa. Antes as pessoas viviam 40, 50 anos, a expectativa de vida era baixíssima. Com mais gente usufruindo de aposentadoria, pressionando os cofres da presidência, o volume de recursos que ela precisa ter aumenta muito. Para quem está olhando, parece que estamos tendo perdas históricas na área da previdência, perdas que não percebemos na área da saúde, porque na saúde fizemos o SUS. Mas a perda da previdência foi em relação ao que havia antes; em relação aos outros setores, ela mantém orçamentos cada vez maiores.

Acho que, em 1993, o Antonio Brito, que era ministro da previdência, conseguiu revincular uma das fontes que era do orçamento da Seguridade Social, da contribuição da folha de salários, diretamente à previdência. Isso mostra a capacidade da previdência de se articular e defender interesses dos trabalhadores, que queriam manter o beneficio previdenciário. Continuaram brigando, na questão da saúde, pelos planos privados de saúde como beneficio indireto de salário. A briga entre saúde e previdência se dá exatamente a partir do fim dos  anos 70 e início dos 80, quando, por um lado, tendemos a diminuir custos na previdência, porque ela vai exigir cada vez mais – o que pode parecer uma contenção para o trabalhador mas ainda é uma garantia para ele – e, por outro lado, a saúde, que parece universalizada  ao mesmo tempo assiste a muita gente migrar para fora, buscando os planos privados. Os principais compradores, na década de 80, foram os sindicatos, brigando para ter os planos  como benefício para o trabalhador.

Como o momento histórico interferiu na construção dessas políticas? O que a crise atual, que é tida como do neoliberalismo, acarreta?

São contextos diferentes. Houve um momento nos anos 80 em que começaram a emergir muitos movimentos sociais e trabalhadores da saúde, por conta do início de uma abertura política. Havia todo um afã, uma busca pelo processo de redemocratização. Essa é a palavra-chave dos anos 80. A busca pela democracia fez as pessoas se tornarem muito otimistas com relação aos projetos sociais. Buscou-se constituir uma coisa que estava muito longe da realidade social brasileira. Mesmo quando falamos da universalização, é preciso entender que isso exigia um Estado e uma sociedade que bancassem um pacto de solidariedade. Um pacto em que eu vou pagar mais, você vai pagar menos, mas nós dois vamos ter o mesmo benefício. Esse pacto foi muito pouco trabalhado. Mas virou uma bandeira de luta muito importante para alguns movimentos, embora não todos —  eu não diria que virou para o movimento dos trabalhadores, porque eles não fecharam o pacto. Nos discursos da constituinte, ficou claro como trabalhadores e aposentados brigavam pelo seu benefício, pela lógica de seguro social e não queriam perder isso. O pacto veio de uma discussão política no interior do movimento da saúde, mas veio também especialmente como uma proposta articulada pela presidência para manter o orçamento da saúde e da previdência junto.

A construção histórica da seguridade foi montada muito rapidamente naquele momento de discussão próximo à constituinte. Até então, quando se falava em reforma da saúde, falava-se de reforma sanitária, com a descentralização de recursos. Isso significava para a previdência abrir mão do Inamps. Para a previdência isso era mito ruim, porque o volume de recursos que a saúde abarcava da previdência era muito grande. Quando a proposta começou a ganhar corpo, isso começou a ser a principal bandeira de luta e chegou à Constituinte, a previdência rearticulou e conseguiu manter todo mundo junto. Muito pouca gente fala disso mas foi o próprio Centrão que bancou a proposta da seguridade na constituinte. Uma coisa que era pra ser inovadora veio, na verdade, para abafar conflitos. Com total descrédito na economia, todo o arrocho e a política neoliberal começam a se dar e a previdência vira, mostra sua força e diz que é preciso garantir as aposentadorias e pensões. Consegue a revinculação e a seguridade é descartada do debate político. Tanto que nunca se fez uma lei orgânica da seguridade social que acoplasse os três setores.