O que pretende e a que se deve a organização de tantas entidades para elaborar um plano alternativo de enfrentamento à Covid-19? O objetivo é dar conta dos gargalos ou trata-se de um novo olhar para o enfrentamento da pandemia?
Há mais ou menos um mês houve uma iniciativa de trazer para sociedade, a partir de um movimento articulado das entidades da sociedade civil, o tema da defesa da vida. Isso acabou mobilizando a criação da Marcha pela Vida, que foi extraordinária. Foi uma organização da sociedade civil congregando várias entidades, entre as quais, na área da saúde, eu cito a Abrasco, o Cebes e a Rede Unida, que atuaram com maior força e estavam muito articuladas na SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. Com essa união, viu-se a possibilidade de uma discussão para realizar alguma coisa que fosse mais contributiva. Claro que, a partir de acúmulo também do movimento justo de denúncia e indignação principalmente por conta da omissão do governo federal, especificamente do presidente da República, que é um negacionista e, em geral, tem uma perspectiva anticientífica. A partir dessa mobilização, surge a energia para esse movimento. Isso vem convergir com todo o trabalho chamado Ágora que a Abrasco já vinha fazendo, de abrir várias perspectivas de debate e que ganha fôlego quando começamos a acumular debates de interfaces diferentes para dar conta da grande complexidade de uma pandemia. Não há nenhuma área, não tem nenhuma dimensão capaz de dar conta isoladamente do que é central, apesar de, na prática, uma pandemia não ter centro, ter impacto sobre todas as áreas, todas as dimensões. Não tem ciência que dê conta, tampouco soluções simplistas que o pessoal chama de bala de prata. Iniciativas como essa não têm eficácia para algo complexo, amplo e desconhecido. Portanto, tentamos realizar aquilo que o Ministério da Saúde tinha a responsabilidade de fazer, que é um plano estratégico de enfrentamento. Isso foi uma iniciativa que na prática abre um caminho. Mas não é um produto fechado para atuação. É uma lista de recomendações para que as autoridades políticas possam, por exemplo, garantir investimento no desenvolvimento tecnológico de testes, vacinas e insumos em grande escala segundo as necessidades do país; implantar comitês consultivos e de assessoramento em todas as esferas de governo; respeitar os mecanismos tripartites de pactuação e decisão. Indicações para que as autoridades sanitárias, por sua vez, possam elaborar e apresentar à sociedade um plano estratégico nacional de intervenção, com a participação ativa das comunidades científicas da saúde e das instâncias de controle social do SUS, garantindo aplicação e repasse ágeis e eficientes dos recursos disponíveis, com critérios de transferência para estados e municípios. [Orientações] para que possam acompanhar a implementação e ampliação das medidas de proteção social e apoio emergencial a trabalhadores, desempregados, setores e grupos da população vulnerabilizados, entre outros. Falamos ainda com os gestores do SUS para que eles possam garantir o atendimento presencial a pacientes suspeitos de Covid-19 nas unidades de atenção primária, que pressionem e tomem iniciativas para utilizar ferramentas tecnológicas para localização, monitoramento e controle dos casos durante o período infeccioso, para que possa realizar busca ativa de casos que pode e deve ser realizada por equipes das redes de atenção à saúde. E, por fim, para a sociedade em geral, que deve exigir e conquistar acesso à informação precisa sobre a pandemia, além de intensificar sua participação nos espaços destinados ao controle social.
No documento vocês apontam que é preciso entender a complexidade da pandemia em suas múltiplas áreas para enfrentá-la. Que complexidade é essa?
Isso, na verdade, é uma discussão antiga na saúde pública, que é um campo de saberes em que cabem várias ciências. É claro que a ciência base da saúde coletiva é a epidemiologia. Na epidemiologia há uma referência muito forte às clínicas de toda ordem. Tem, em geral, o bloco das ciências básicas da saúde, aquelas que são derivações e nuances da biologia humana, de uma compreessão do que a gente chama de processo de saúde, enfermidade e cuidado. Além disso, a saúde coletiva também incorpora as ciências sociais em saúde. E também as ciências da gestão em saúde. É um campo que se constitui com uma certa ambição de totalidade. E isso dá a essa área uma possibilidade de lidar com as múltiplas dimensões e sucessivas interfaces que essas dimensões permitem. Essa é uma referência antiga na saúde coletiva, vários pensadores contribuíram para essa forma de lidar com as questões da saúde e, quando chega a pandemia, ocorre uma espécie de moda, em que todo mundo vira epidemiologista. Os infectologistas, os virologistas, ao falarem da pandemia, se apresentam como tal e até constroem um certo discurso como se fossem epidemiologistas a partir da utilização de pesquisa e aplicações tecnológicas, que são quantitativas. Assim como o campo da ciência da computação, que agora chamam de ciência de dados, matemática, física… Enfim, muita gente que tem a formação nessas áreas começa a lidar com os dados dessa pandemia como se tivesse descobrindo agora que é possível trabalhar dessa forma. E a área da epidemiologia tem mais de um século de contribuição e vem desenvolvendo formas de lidar com o viés quantitativo ao pesquisar os efeitos das doenças na sociedade. Então, essa questão da complexidade tem muito a ver com a capacidade de um certo campo científico de dar conta disso. É claro que a virologia, que é uma parte da microbiologia, tem sua própria complexidade, mas sua visão de microorganismo, patógenos, células não é capaz de dar conta dos aspectos sociais. A mesma coisa vale para alguém com a formação antropológica, sociológica, histórica, filosófica específica: na hora em que tem que elaborar algum discurso, produzir alguma coisa, não como agir de forma isolada. E a pandemia é um conjunto de eventos que ocorre simultaneamente em distintas dimensões e distintas realidades, que extrapolam todas essas áreas.
Nessa perspectiva, a pandemia da Covid-19 pode ser compreendida como um objeto complexo, com sete dimensões, articuladas por interfaces hierárquicas: alterações moleculares e celulares que replicam o vírus; lesões metabólicas e tissulares que afetam órgãos e sistemas corporais; quadros sintomáticos que se concretizam em “casos clínicos”; populações afetadas pela epidemia (doentes e óbitos); ecossistemas agredidos e degradados pela ação humana; sociedades, economias e redes políticas rompidas ou ameaçadas; além de esferas simbólicas e culturais, que desdobram num clima de medo e pânico e acabam trazendo outras consequências, como as informações desencontradas. Não é somente a replicação viral na população, não é somente o desenvolvimento de infecção do desenvolvimento do vírus, da patologia. Com a pandemia, vivemos um cenário de muitas incertezas e inseguranças entre as pessoas, que se torna um patógeno social. E essa patologia social é um campo fértil para a infodemia, que é uma epidemia de informação.
Isso também foi outra linha de enfrentamento, não é? Defender a ciência, os estudos científicos…
Isso é muito comum durante epidemias. Se olharmos para a história, cada pandemia sempre teve um aumento de produção de mentiras, de mitos, de coisas que modernamente chamamos de fake news. E tem ainda todo um processo de cultivo de esperanças e expectativas que vêm desde o plano religioso ao plano pseudocientífico. Muitas coisas são propostas como soluções, como aplicação do pensamento mágico, que é comum nesses movimentos. O que temos de mais próximo historicamente foi o 11 de setembro. Isso, inclusive, é descrito na literatura, e os pesquisadores chamam de síndrome sociogênica. É uma síndrome ligada à ansiedade sociogênica. Cuba teve um problema sério com a dengue hemorrágica, que surgiu em diversos lugares na Ilha e produziu à época uma neuropatia, as pessoas tinham dor, fadiga, não conseguiam andar. A pandemia da gripe espanhola do século 18 teve também esse efeito. Na Bahia tem uma marca, inclusive, linguística da epidemia de cólera de 1886: as pessoas não aguentavam e as pernas ficavam bambas a ponto de caírem nas ruas. E, naquele momento, disseram que era epidêmico e contagioso. Você via uma multidão subindo a ladeira, umas pessoas começavam a cair e outros caiam também. E é descrito que deram o nome a isso de caruara. E hoje em dia, quando alguém fica nesse momento de tensão e as pernas falham, ainda são chamadas de caruara. A própria imagem da figura da Covid-19 é uma reconstituição, não é possível vislumbrar uma imagem no nível nano. O nível nano não tem imagens. Aquela imagem com os bracinhos é uma construção visual. E a partir dessa imagem, se deu o nome do vírus. Veja que há uma cadeia de significantes muito fascinante. O nome vem daí. O sujeito já começa a reconstruir imagens, inclusive, muito bonitas, até do ponto de vista estético. O Boaventura de Souza Santos [sociólogo português] inclusive recentemente refletiu sobre isso, denominando de “pedagogia do vírus”. É muito interessante ver esses efeitos sob essa ótica também.
Como vocês avaliam a participação do SUS nesse enfrentamento? Quais áreas se destacaram, se fortaleceram e onde surgiram as principais fragilidades?
O Brasil entrou nesse cenário da pandemia com uma enorme vantagem pelo fato de dispor desse sistema unificado, o sistema único, de cobertura geral, que é o SUS. Mas essa vantagem foi logo perdida. Na verdade, aí, somada a uma crise política gravíssima. A vantagem de se ter quase que uma máquina de cuidar, de alcance nacional, precisava ser acionada como organismo coordenador. E não se fez isso. Ao mesmo tempo, a grande vantagem do SUS é a capilaridade na sociedade, que é fundamental para um problema como esse. A coordenação em nível federal e nas instâncias estaduais e municipais também não se deu. Toda expertise e a competência que tem o sistema único em fazer o que chamamos de vigilância em saúde e, especificamente, em vigilância epidemiológica, não foi acionada. Está demonstrado em outros países que a chave para se lidar com o fenômeno da pandemia para ter o mínimo de sequelas e efeitos nocivos está justamente aí, em interromper [a transmissão]. Isso são táticas de campo que a epidemiologia desenvolveu secularmente. Antes mesmo de se tornar ciência, o conhecimento da dinâmica de transmissão já existia. E o Brasil é muito forte nisso. E esse conhecimento simplesmente não tem sido acionado.
Teve um certo discurso clínico, por exemplo, no início da pandemia, que se estabeleceu a partir de um discurso do senso comum, que era a orientação de que quem não tinha sintomas graves deveria voltar para casa. Se você apresentasse sintomas leves, ou não deveria procurar uma unidade de saúde ou, caso fizesse, teria a orientação de voltar para casa. Isso não tem acordo, porque é isso que mantém a cadeia de transmissão: essa pessoa volta para casa e se torna mais um foco. A lógica epidemiológica, que a gente chama de estratégia epidemiológica, é exatamente a identificação do caso e o isolamento. E a gente estava fazendo o contrário desde o início. Aqueles mega hospitais da China não eram para unidades intensivas de tratamento, eram para abrigar as pessoas com sintomas leves e garantir que ficassem isoladas. Aqueles que não tinham sintoma nenhum e, de alguma forma, demonstraram necessidade de fazer o isolamento individual, eram seguidos por aplicativos no celular, até por drone, para que realizassem o isolamento e estavam sendo monitorados, caso os sintomas viessem a aparecer. E essa é uma das nossas indicações de nosso plano: um maior monitoramento da população. A gente está agindo às cegas.
O Brasil entrou nesse cenário da pandemia com uma enorme vantagem pelo fato de dispor desse sistema unificado, o sistema único, de cobertura geral, que é o SUS. Mas essa vantagem foi logo perdida.
A orientação da China é diferente do que estamos fazendo no Brasil?
O que o Brasil fez até agora, na minha opinião, tem uma sequência de erros que trouxe, inclusive, uma ideia na opinião pública de que isolamento social não é efetivo. As pessoas não têm consciência sobre as ações tomadas em relação ao isolamento social. Qual é a natureza do fechamento? Qual é a natureza da abertura? O que era para ser uma orientação clara, a partir de dados e orientações científicas, virou disputa política sem embasamento. Parece simplesmente uma regra estabelecida: agora todos podem sair, agora devem ficar em casa. Deixando de acionar a identificação de dados, controle de contatos, bloqueio dos controles e isolamento desses sujeitos. Isso é epidemiologia básica, e aquela, inclusive, mais clássica até. E aí apareceu ainda o discurso do grupo de risco. Não faz sentido falar de grupo de risco em processo de transmissão. Não é probabilístico. É um processo mecânico. O Brasil, especificamente, adotou em toda sua extensão uma abordagem que a OMS [Organização Mundial de Saúde] chama de fragmentária. Tão ruim quanto a gente nesse aspecto estão os Estados Unidos. Não por acaso somos os dois países que não têm controle sobre sua pandemia.
E teríamos condições, diante de nossa estrutura do SUS, de garantir esse enfrentamento de maneira adequada?
Teríamos plenas condições de atuar nesse enfrentamento a partir do SUS. Inclusive uma área extremamente estratégica nesse sentido e que está sendo desprezada é a atenção primária à saúde. É exatamente onde é garantida uma cobertura nacional pelo Sistema Único. O programa Saúde da Família, apesar de todos os seus problemas e dificuldades no Brasil, por conta de negligência de investimentos nos últimos anos, ajudaria a garantir esse tipo de abordagem em todo o território nacional. E é isso que o nosso plano indica como ponto central: a atenção integrada da saúde aplicada às estratégias e técnicas da epidemiologia em doenças transmissíveis, que é o que caracteriza a vigilância epidemiológica, onde já provamos em diversas ocasiões que somos referência. Basta acionar, pensar estrategicamente.
Teríamos plenas condições de atuar nesse enfrentamento a partir do SUS
Como você avalia o papel do setor privado diante desse contexto?
O que aconteceu foi a consolidação de algo que já é tendência no SUS e é sempre uma ameaça, que é diferenciar a cobertura a partir desse recorte público-privado, entre quem tem a cobertura mínima, que são todos os cidadãos e cidadãs brasileiros e quem pode pagar um plano [de saúde]. E aí entramos na discussão: saúde é um bem? É uma mercadoria ou é um direito? Essa questão persiste na pandemia. O setor privado fez o seguinte: deu cuidado da melhor natureza para aqueles que podem pagar, seja um hospital específico, um seguro saúde ou empresa que oferece serviços. E se absteve do restante da população, uma vez que não tem responsabilidade jurídica. Se, de um lado, tem uma parcela da população com atendimento garantido e suas vidas preservadas, de outro lado, direciona o SUS para os pobres, para aqueles que não têm esses aportes complementares. A responsabilização da iniciativa privada para o enfrentamento da pandemia não foi garantida em nenhum lugar do Brasil. Não foi possível uma articulação capaz de lidar com essa questão de modo mais orgânico e mais justo. O máximo que se conseguiu foi aluguel de leitos ou compras de espaços, repasses por terceirização dessa fração do sistema de saúde da pandemia. E isso dentro de um cenário em que muita gente perdeu a vida em função dessa condição de ter ou não leito num curso agudo da doença.
Uma das grandes pautas que esteve em debate durante a pandemia é o papel da ciência. Como você vê a importância dela hoje no enfrentamento da crise sanitária? E como é fazer ciência no Brasil?
Há todo um esforço e um conjunto de recomendações para que se realizem e instaurem instâncias de assessoria de base científica. Daí que uma das recomendações do plano é que em todos os níveis haja comissões e comitês científicos mas, também, que representações de usuários [dos serviços de saúde] e profissionais sejam acionadas. Isso está destrinchado no documento. E também, há uma demanda pela retomada do investimento. O cenário atual é de que o sistema brasileiro de ciência, tecnologia e inovação vem enfrentando no último quinquênio a mais grave crise de sua história. Não só pelo corte de recursos, mas também por conta de ataques às instituições de fomento, de pesquisa, de tecnologia, além do enfraquecimento do fomento industrial. Mas isso é menos importante do que outro fator que consideramos crucial, que é a retomada do controle social do SUS.
O controle social distingue o sistema único brasileiro de outro.
Qual é a importância da participação e controle social no enfrentamento da pandemia? Que cenário temos?
É um dos pontos mais fortes que deveriam ser usados nesse período. O controle social distingue o sistema único brasileiro de outro. E não foi usado, inclusive, por decisão política, como parte do desmonte político do SUS, na sua força de representatividade que é a rede de conselhos. São conselhos que, com todas as suas dificuldades, produzem uma democratização do sistema. A gente sabe que a prioridade política na conjuntura do país não é a democracia. Pelo contrário, a democracia está sob ataque. Então, está muito claro que o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19 tem uma mensagem forte de recuperar o controle do sistema de saúde pela população, basicamente pelos usuários e pelos profissionais de saúde. E é um traço do autoritarismo querer acabar com esse controle popular. Portanto, o braço assimétrico é a democratização dos processos de decisão para que as decisões possam ser locais, que possam ter controle de si próprias, o que caracteriza, por exemplo, o processo de municipalização do SUS. Sem dúvida, a questão do controle social, para nós, é um ponto estratégico assim como a vigilância epidemiológica. São quase dois grandes braços de atuação. E se a gente tivesse isso consolidado, certamente teríamos um outro cenário. Podemos ver isso em um passado recente no enfrentamento da H1N1, que ficou localizada. Porque tínhamos uma rede de vigilância em saúde que, por ter sido ativada, atuou e deu resposta. Mas, também, na época existia um financiamento mais amplo e conselhos [de saúde] mais fortalecidos. E aconteceu o oposto do que está acontecendo agora. Os países vizinhos, como Argentina e Uruguai, sofreram grandes consequências com a H1N1 e o Brasil conteve [a epidemia]. Nossa atuação foi muito elogiada internacionalmente. Hoje vemos o contrário. De lá para cá, o que estamos vendo é o desempoderamento dos conselhos, em todos os planos federal, estadual, municipal, além das comissões tripartites. Houve um gradual desempoderamento especial no aspecto financeiro também, o que é uma forma de enfraquecimento. O próprio planejamento participativo de alocamento de recurso foi retirado de debate.