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Entrevista: 
Leda Paulani

'Sempre soubemos que mais dia menos dia haveria uma crise'

Doutora em Teoria Econômica, Leda Paulani é professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política e conta, no seu currículo, com a autoria e organização de vários livros. Nesta entrevista, ela mostra as origens da crise e confirma que, para os economistas marxistas, não há nada de surpresa nela.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 15/03/2009 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A crise imobiliária foi a única responsável pela crise financeira atual?

Acho que foi nesse momento em que ela apareceu no mercado imobiliário, que se mostrou incontrolável. Mas podia ser em qualquer outro mercado. Podia ter acontecido se o governo não tivesse domado a crise do mercado acionário de 2000/01. Foi no imobiliário. Por trás disso existe uma lógica, uma natureza que o sistema capitalista ganhou ao longo dos últimos 30 anos. É uma crise da forma de funcionamento. Sempre soubemos que mais dia menos dia haveria uma crise. E que, pelo intercruzamento entre os vários mercados por causa da globalização financeira, teria dimensão mundial e seria muito profunda. O mercado imobiliário é muito vulnerável à formação de bolha.

A bolha é essa diferença entre o capital real e o capital fictício?

Pode-se dizer que sim. A bolha decorre do estabelecimento de um preço que não tem muita relação com o preço que seria mais razoável em função do que tem acumulado ou qualquer outra referencia real. Isso não é nenhum acidente, algo que foge à regra. Isso é a regra do capitalismo que experimentamos desde o início dos anos 80. Aa lógica financeira acabou se impondo e dominando todos os espaços, inclusive o da valorização produtiva.

E em que essa crise difere das outras?

Não há episódio de crise em que o setor financeiro não esteja diretamente envolvido. Porque ele, de alguma forma, denuncia, por queda de bolsas etc. A crise dos anos 30 – porque em 1929 caiu a bolsa, mas a crise foi nos anos 30 –, a queda influenciou, mas a crise foi de superprodução. Um dos temores que levou a Bretton Woods era que o fim da guerra poderia levar à recessão de novo. A guerra melhorou. Aquela crise era uma crise da própria dinâmica. Esta de agora é uma crise produzida pelo lado financeiro, mas não por acaso.

Essa é mais difícil de contornar? Por quê?

Ela é inédita pelo domínio da lógica financeira mas também porque o mundo hoje vive num sistema monetário: pela primeira vez na historia do capitalismo, o dinheiro mundial é um papel ou eletrônico. Isso é inédito na historia do capitalismo. O ouro, que é uma mercadoria real, produzida pelo trabalho, bem ou mal sempre esteve condicionado, em última instância, como lastro da moeda mundial. Em Bretton Woods, a moeda mundial já era o dólar, só que tinha sistema de taxa de câmbio fixa baseada no preço do dólar e o dólar americano estava atrelado ao ouro. O ouro, em última instancia, estava lá. Agora acabou. É papel, simplesmente. E isso tem conseqüências para o funcionamento da economia. Mesmo assim, quando aconteceu a crise, o povo correu para o dólar. Parece paradoxal, mas é porque não há nada que possa substituir o dólar, embora se discuta a capacidade de ele ser um dinheiro mundial. Bretton Woods foi o único exemplo de governança global que o mundo já teve. Hoje não sei se temos as mesmas condições de botar todo mundo na mesa e produzir uma nova regulação. Nesse sentido é mais difícil, é inédita pelas condições que se tem.

O discurso neoliberal também consegue amparar o capitalismo de produção?

Se você perguntar a qualquer capitalista/empresário o que ele pensa da relação do Estado com o mercado, ele sempre vai ser liberal. A menos que o Estado sirva para alavancar seu negócio. Quando digo que o neoliberalismo se adequa ao financeiro, não quero dizer que os empresários do setor produtivo sejam necessariamente contra o neoliberalismo. Contudo, uma forma de operar no Estado que não se pauta pelos princípios neoliberalismo é mais adequada à acumulação produtiva do que à financeira.

Quais as saídas para minimizar os efeitos da crise? O aprofundamento da participação do Estado na economia e o retorno a uma idéia de Estado de bem-estar social adiantariam?

O máximo que pode acontecer é uma regulação um pouco maior do sistema financeiro, nos EUA e na Europa. E só. Não sei nem se o controle de capitais vai voltar a ser a regra do comportamento dos mercados nacionais quanto ao balanço de pagamentos. O mundo não volta pra trás, mesmo que mude, não vai ser na direção do que veio antes.

Como essas duas formas de capitalismo – financeiro e de produção - se relacionam e como conceitos como mais-valia e acumulação de capital se aplicam ao capitalismo financeiro?

Eles se relacionam pelo crédito, além de outros mecanismos como a governança corporativa. Existe a governança corporativa, que nada mais é do que uma pressão que os acionistas fazem sobre os administradores da empresa para que ela dê os resultados que se esperam. Há pressão constante — que vem da posição dos ativos das empresas no mercado financeiro — para que a extração de mais-valia — na linguagem deles, a realização de lucro — seja cada vez maior. Então, há mecanismos que relacionam o lado financeiro ao produtivo. E quando há incremento de riqueza, de alguma maneira isso tem conseqüências sobre o consumo, como, por exemplo, quando se cria mercado de alto luxo. O problema são os vários canais de comunicação. Se não houvesse essa comunicação, uma crise financeira que queimasse o capital financeiro só afetaria quem tem capital financeiro.

Hoje, há espaço para diminuir a financeirização no capitalismo?

Há um pouco nessa própria crise. Ainda existe gente que tem riqueza financeira lutando para mantê-la e isso tem conseqüências na manutenção ou não desse sistema. Dependendo das conseqüências da crise, pode haver mudanças nas relações, não sei. Mas não é tão simples assim. De imediato, não existe esse espaço.

Quais as diferenças do impacto da crise sobre economias avançadas e países em desenvolvimento? De que maneira o Brasil é afetado?

É difícil falar dos emergentes de modo geral. Mas os países do centro do sistema — até porque entre 80% e 90% da globalização financeira é devida ao envolvimento deles — estão muito mais diretamente envolvidos que os emergentes. Com exceção da China, porque carrega papéis americanos. A situação da China é diferenciada pelo tamanho e pelo fato de ser o grande credor dos EUA hoje, com uma relação particular, controle de capital, coisa que a maior parte dos países não têm. O Brasil é um exemplo paradigmático, pela radicalidade da nossa política monetária. A combinação dessa política arrochada com o câmbio flutuante e com a liberdade de entrada e saída, fluxo de capital sem controle nenhum, fez com que se produzisse um movimento em que a valorização da moeda brasileira aumenta o retorno em moeda forte dos investimentos aqui efetuados e isso faz com que a perspectiva de valorização aumente mais ainda, atraia mais dinheiro estrangeiro, o que valoriza ainda mais, num processo que se auto-alimenta, e que ficou aqui desde 2004. Muitos viram que esse processo não era bem assim, estava errado. De repente, o cenário se mostrou como estava: o valor da moeda brasileira estava muito elevado sem ter razão para isso. Em outros países emergentes, normalmente as taxas já são mais elevadas, há um controle de risco embutido, e isso acaba fazendo com que o papel desses países na arquitetura capitalista mundial, mais do que ofertar mão de obra a baixo custo e produzir bens primários, seja também o de serem instrumentos para uma valorização de investimentos em moeda forte muito elevada. Por exemplo, os capitais que vinham para o Brasil ganhavam mais em dólar do que se aplicassem em qualquer país do centro do sistema. Por que não na África? Porque lá não existe renda real sendo produzida por trás da renda financeira. É como se fosse o lastro, em última instancia, da valorização fictícia, mas que acaba de fato rendendo mais dólares para quem está aplicando, não está presente lá.

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