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Todos pela Vila Autódromo

Símbola da luta por moradia, a comunidade ameaçada de remoção Vila Autódromo recebe a solidariedade de vários participantes da Cúpula dos Povos.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 21/06/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 

Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz

Franciel e mais dois amigos, todos aparentemente com idades entre 6 e 8 anos corriam pelas ruas da Vila Autódromo entre os manifestantes. "Tem índio na nossa rua!", exclamou um dos meninos em tom de descoberta. "Eles vieram da comunidade deles para apoiarem a nossa comunidade pra gente não ter que sair daqui", comentou Franciel, animado, para logo em seguida sair correndo entre as várias bandeiras, penas, cocares, sotaques, daquela passeata. Os meninos não queriam perder tempo para responder à repórter sobre o nome e a idade deles: o que estava acontecendo ali naquele dia era muito mais interessante. Mas ele foi bastante esperto, o motivo para tanta gente, tão diferente, estar junta na manhã do dia 20 de junho na pequena comunidade de Vila Autódromo era prestar solidariedade àquela população, que, ameaçada de remoção por conta dos empreendimentos da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, insiste em permanecer no local.

Cerca de 1500 pessoas participaram da manifestação, saíram do centro do Rio de Janeiro em vários ônibus para a Vila Autódromo, que fica há poucos quilômetros do Riocentro, onde estão sendo realizadas as reuniões dos chefes de estado na Rio+20. "Diversos movimentos de luta pela moradia construíram esse ato, trazendo a questão dentro da Cúpula dos Povos da desterritorialização, denunciando essa ação que as mega empresas imobiliárias e grandes corporações estão fazendo pelo mundo inteiro. Nesse sentido, essa comunidade é simbólica, porque está há mais de 40 anos para ser removida, alguns espaços dela já foram removidos e sintetiza essas lutas", explica Marcelo Durão, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Coordenação da Cúpula dos Povos. "O que tem de mais comum nas lutas de todos os movimentos que estão aqui, do campo, da cidade, povos indígenas, é a luta por território. É a luta para garantir que a função social da propriedade, que está na Constituição, seja de fato um direito do povo brasileiro. A propriedade não pode ter valor absoluto e incontestável, ela tem que ter sua função social", completa Eduardo Cardoso, da Coordenação Nacional da Central de Movimentos Populares (CMP).

A comunidade de Vila Autódromo está situada em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro. Basta olhar para o outro lado da avenida, onde fica a comunidade, para perceber porque a área é tão cobiçada - bem próximo ao local há vários condomínios novos. Esta região da cidade - Barra, Jacarepaguá, Recreio - vem há alguns anos se consolidando como uma das principais áreas de expansão imobiliária, com empreendimentos de classe média alta. A zona é também palco dos grandes eventos esportivos sediados pelo Rio de Janeiro. "A gente vem em uma luta constante para permanecer na comunidade, temos documentos e mesmo assim corremos esse risco com a Copa do Mundo. Pode ter uma Copa junto com a gente, podemos fazer um trabalho com nossas crianças para a Copa, podemos participar desse evento, nosso objetivo é participar também, e não ser removido por causa dele. Não justifica ter uma Copa no Brasil, no nosso país, e remover a gente do local onde temos um título de posse emitido pelos próprios governantes, isso é injusto", protesta Inácia Passos, moradora da comunidade. 

De acordo com Inácia, a comunidade já foi ameaçada muitas vezes, sempre quando se aproximam grandes eventos. "Começou o Rock in Rio, o evento passou e a gente permaneceu, aí começa outro evento, aí vem a ameaça. Nossa luta é constante, é um lugar onde criamos nossos filhos e nossos netos e queremos permanecer aqui", completa.  Ela conta que moradores de Vila Autódromo e várias outras organizações que estão apoiando a comunidade permaneceram na Associação de Moradores até as três da madrugada para organizarem a manifestação. "Estou achando isso tudo muito lindo, cada um tem uma luta e agora estou percebendo que todos nós lutamos por causas justas: moradia, alimentação, saúde, educação, todos juntos", observa. 

Para Roberto Morales, do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, o caso de Vila Autódromo é emblemático do modelo de desenvolvimento capitalista e um exemplo das lutas de resistência contra as remoções que estão ocorrendo em todas as cidades programadas para sediar a Copa do Mundo. "Esse modelo é extremamente cruel com estas pessoas que estão aqui há 30 anos. Removê-los daqui significa tirá-los de perto de seus trabalhos, as crianças de longe da escola, o rompimento de vínculos de amizade e culturais que construíram durante todo esse período. As pessoas construíram casas ao longo dos anos, algumas menores, algumas humildes, outras um pouco maiores. Outros construíram sobrados, casas para os filhos no seu próprio lote. Isso vai ser trocado por que? Por um apartamento de 38 metros quadrados? É muito pouco", afirma.

Luta de todos

Raquel Júnia - EPSJV/FiocruzEstudantes, quilombolas, indígenas, militantes de diversas organizações de direitos humanos, de outras experiências de resistência como as ocupações urbanas, e pesquisadores somaram forças na manifestação por Vila Autódromo. A luta contra a hidrelétrica de Belo Monte acabou também tendo muito peso no protesto, com várias bandeiras e faixas levadas pelos indígenas. "Essa luta não é só dos povos indígenas e nem só dos movimentos sociais, é de todo o povo do Brasil, uma luta igual, com um processo histórico de muito sofrimento, de perda de território. Nós não admitimos que o governo federal continue nos tratando como se fóssemos um nada, como se não tivéssemos voz. Estamos aqui passamos o recado que nós existimos e precisamos ser respeitados", fala Sheila Juruna, uma das lideranças indígenas presentes no protesto.

Para Alexandre Pessoa, pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz) e do Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc), a questão é também de saúde pública. "Na perspectiva da determinação social da saúde, o que está em debate aqui são as condições de direito à moradia, é a manutenção das condições de renda, das relações interpessoais, o histórico dessa omunidade, que inclusive com a própria construção do autódromo estabeleceu as suas relações de gerações e gerações. A remoção significa uma ruptura dessas relações e o agravamento das condições de saúde dessa  população", afirma. Segundo Alexandre, a comunidade têm plenas condições de ser urbanizada e ter garantido assim um saneamento adequado. Inclusive, de acordo com o professor, essa urbanização ficaria oneraria menos o estado do que uma remoção.

Érica dos Santos, agente da Pastoral das Favelas, uma pastoral da igreja católica que acompanha a comunidade há vários anos, observa que as várias ameaças de remoção da Vila Autódromo têm claros interesses comerciais. "Se a gente olhar ao redor vemos que a Vila Autódromo é a única comunidade pobre no meio de um monte de condomínios de luxo. Houve nos últimos 20 anos na Barra um crescimento considerável desses condomínios ao mesmo  tempo em que as comunidades pobres, que foram as primeiras a ocupar esse espaço, iam sendo retiradas. Quem sempre quis tirar a Vila Autódromo foi o governo municipal, antes na gestão César Maia e agora continua o processo no governo Eduardo Paes, sempre com a justificativa de construção de alguma estrutura para mega eventos, desrespeitando completamente o direito que as pessoas têm de viver aqui", diz.  "Essas pessoas construíram famílias aqui. Temos aqui pais, filhos e netos que cresceram nessa comunidade, onde não tem trafico nem grupo de extermínio. Todos trabalhadores que sustentam os grandes condomínios de luxo ao redor e sofrem esse processo de ameaça constante", complementa. Èrica enumera os empreendimentos que as gestões municipais quiseram construir nos últimos anos no lugar onde fica a Vila Autódromo, entre eles a Vila do Pan, o espaço da mídia para os mega eventos esportivos e a ameaça atual: um parque olímpico.

Crianças da comunidade ganharam bandeira do movimento contra Belo Monte -Raquel Júnia - EPSJV/FiocruzO pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), Carlos Vainer, também presente na manifestação, a resistência da Vila Autódromo evidencia dois conceitos de cidade que estão em disputa não apenas no Rio de
Janeiro, mas no mundo todo. "A cidade das corporações, a cidade-negócio, das parcerias publico-privadas, e a cidade dos cidadãos que querem construir seus destinos e decidir qual deve ser sua cidade. E os mega eventos como a Copa e as Olimpíadas tem sido em varias cidades do mundo um pretexto através do qual a cidade das corporações se impõe de maneira brutal sobre as populações. A Vila Autódromo é parte dessa população que não aceita essa imposição, parte desse povo que resiste contra a cidade das corporações e diz: nos temos uma alternativa", salienta.

Polícia para quem?

Raquel Júnia - EPSJV/FiocruzOs povos indígenas presentes na manifestação e outros movimentos decidiram sair da Vila Autódromo, onde estava sendo realizado o ato e ocupar também a avenida que dá acesso ao Riocentro, que passa ao lado da comunidade. Mas há poucos metros havia uma barreira fortemente militarizada. De um lado, policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da PM do Rio de Janeiro e de outro, o exército, numa verdadeira operação de guerra, inclusive com um tanque. Os manifestantes foram até onde era possível ir e continuaram ecoando as palavras de protesto. O secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, foi até o local e se comprometeu com os indígenas a receber um documento com as reivindicações elaboradas por eles para que chegue até os chefes de estado. "O que eles pretendem é a sustentabilidade do capitalismo corporativo da cidade competitiva, da cidade-negócio. Essa cidade é sustentável sim, mas desde que ela esmague todas as manifestações populares, como estamos vendo aqui [apontando para a tropa de choque que bloqueia a avenida], não há lugar para esse tipo de manifestação ali onde estão sendo tomadas as decisões [no Riocentro]. A única alternativa é tomar decisões em outro lugar e lutar para que nossas decisões sejam cumpridas, com eles, sem eles ou contra eles. Contra a força das armas, nós temos a força da nossa diversidade e da nossa coletividade", protesta Vainer.

Renato Silva, da Associação dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF), uma das organizações que compõe a Via Campesina, o protesto na Vila Autódromo é um exemplo da união dos movimentos do campo e da cidade na reivindicação de direitos. "Se a população do campo e da cidade se unir, nós vamos conseguir ir mais além. Precisamos deixar claro o projeto que queremos para a nossa nação, é um projeto construído pelo povo, não um projeto construído por poucos para bilhões. Os chamados representantes não nos representam. Estamos nesse momento de avançar pelas ruas, junto aos camponeses, quilombolas, indígenas, as mulheres, e várias outras organizações", reforça.