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Observatório na Mídia

13/09/2013 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Análise

por: Felipe Gonçalves Pinto, professor-pesquisador da EPSJV

O papel da educação contemporânea em disputa

Professor-pesquisador da EPSJV analisa entrevista em que filósofa critica educação brasileira por não formar lideranças e empreendedores

Nesta entrevista, a filósofa Viviane Mosé discorre sobre o tema do seu recém-publicado livro “A escola e os desafios contemporâneos” (Civilização Brasileira, 2013). Trata-se de um conjunto de entrevistas realizadas com alguns educadores brasileiros (Rubem Alves, Moacir Gadotti, Cristovam Buarque, Celso Antunes, Maria do Pilar, Madalena Freire, Tião Rocha) e portugueses (José Pacheco e Rui Canário), precedido por ensaios da própria Viviane Mosé.

A autora, conhecida também pelos programas em que esteve à frente tanto no Canal Futura quanto na TV Globo, retoma o ataque ao chamado modelo tradicional de educação, apontando-o como causador da exclusão social e da impotência dos indivíduos frente à tarefa de transformar nossa sociedade em uma “mais justa e sustentável”. Para Viviane Mosé, esta tarefa – a transformação da sociedade – só pode ser levada a cabo por “pesquisadores”, isto é, “empreendedores e lideranças”, capazes de “desenvolver soluções para este mundo que desaba, que está em crise”. Consequentemente, a educação no mundo contemporâneo deveria ter como objetivo formar tais pesquisadores-empreendedores-lideranças. Segundo Mosé, tal objetivo não vem sendo alcançado devido ao “modelo lógico-racional de pensamento” adotado na gestão de políticas públicas e na gestão de sala de aula, como também pelos professores (embora Mosé não os culpabilize) em razão do sistema universitário que os formou, sistema esse que é “horroroso, fragmentado, feito como uma linha de montagem com centros de saber separados uns dos outros”.

Semelhante diagnóstico, que coloca o chamado modelo tradicional de educação como causa das mazelas do mundo contemporâneo, foi feito recentemente pelo projeto audiovisual “La Educación Prohibida ” , vinculado ao projeto Reevo,  uma rede de financiamento coletivo para mapear e promover iniciativas “não convencionais” em educação; na década de 70 pela Escola da Ponte (Porto, Portugal); e já no final do século XIX, pela Escola Nova (sobre o movimento escolanovista, cabe sempre revisitar o clássico “Escola e Democracia ” de Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp. Em consonância a essas três iniciativas, Viviane Mosé desloca o problema da educação (no Brasil ou no mundo?) da dimensão econômico-política – da sociedade na qual se encontra a escola – para a dimensão técnica-pedagógica, isto é, para o que se passa dentro da escola. As condições de universalização da educação básica também parecem ser tema marginal para a filósofa, bem como a luta por uma escola pública de qualidade. Se o termo “pública” aparece apenas uma vez em sua entrevista (“gestores de políticas públicas”), não faltam referências ao empreendedorismo, à liderança e às empresas. É significativo que a autora preocupe-se em alertar-nos – e não nos esqueçamos que estamos a tratar de educação – para o fato de que “o principal problema das grandes empresas hoje não é em [sic] contratar funcionários pequenos”, mas “ter quem ocupe sua presidência”.

Ao que parece, portanto, o atual sistema de educação é satisfatório para formar “funcionários pequenos”, mas não para formar presidentes de grandes empresas. Para isso, precisamos de uma pedagogia do “um a um”, do indivíduo abstraído da sociedade em que se encontra. Se a crítica se volta à educação dos “funcionários pequenos” não é para que se emancipem da opressão, mas para destacar a necessidade de uma pedagogia alternativa que forme os oprimidos-opressores do alto escalão empresarial.

O ataque à Universidade, “instituição velha, que vive isolada e se recusa a ler o presente”, repousa sobre o mesmo princípio de que o problema está na dimensão técnico-pedagógica e não na estrutura privatizante de programas como o Prouni e o Fies. Sem discriminar quais instituições tem em mente, o diagnóstico de Viviane se dissolve em verborragia abstrata, capaz de capturar e formar a opinião do leitor incauto, mas incapaz de “ler o presente” (para uma leitura da educação pública no Brasil nas últimas três décadas, vale conferir a análise de Roberto Lehrer , professor da Faculdade de Educação da UFRJ.

Temos que  admitir que a educação entendida como transmissão de conteúdo é insignificante e que é fundamental que o educando aprenda a pesquisar pesquisando e, portanto, seja também um pesquisador. Contudo, não é insignificante que a escola seja um espaço onde circulam informações às quais temos livre acesso potencial. Pois, se todas as informações estão supostamente acessíveis na rede, não estão dispostas do mesmo modo. Não somos bombardeados com informações sobre a relação de um empresário com determinado partido político na mesma intensidade em que o somos pela propaganda dessa mesma empresa. Além disso, imaginar que uma informação apresentada e discutida pelo professor equivale a essa mesma informação disponível na rede pressupõe que a relação entre forma e conteúdo seja tal que a forma não altera o conteúdo, deixando de lado, portanto, que o modo de produção é determinante do produto e que a forma de veiculação da informação determina a informação veiculada. Se a produção produz não apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto, a “revolução tecnológica” não coloca em disputa apenas a memória externa, mas, sobretudo, aquela “memória viva, presente”. A informação disponível na rede é mediada por toda a maquinaria com que a acessamos, bem como pelos responsáveis pela sua hospedagem e divulgação, pelos donos dos sítios de busca e seus algoritmos. Essa “sociedade globalizada” não apenas “abre perspectiva para um raciocínio[...] que aceita contradição”, como enseja a naturalização das contradições – históricas, diga-se de passagem – que lhe são constitutivas.

E o que dizer da afirmação: “Não temos nem mais meios de comunicação de massa”, no momento em que há uma disputa sobre a concessão de rádio e TV para políticos – concessões que interessam tanto aos políticos quanto às emissoras?

Nos moldes vagamente propostos pela entrevistada, a reivindicada inclusão a ser promovida pela educação deixa intacta a lógica do capital que orienta as políticas públicas de educação no Brasil. Caberia voltar ao método genealógico de Nietzsche e perguntar: qual a natureza do ato avaliativo pelo qual se localiza na gestão o mal da educação brasileira? De onde provém a necessidade de formar “empreendedores e lideranças”? Quais os valores que estão na origem dessa avaliação?

‘Nossa educação hoje é castradora e elimina líderes’, diz filósofa

Qual foi seu objetivo ao escrever o livro ‘“A escola e os desafios contemporâneos”?

Sou professora há 30 anos. Logo que entrei na universidade, já dava aula para professores de maternal e jardim de infância, sobre psicologia do desenvolvimento. Recentemente, visitei mais de 50 municípios, fazendo palestrar para professores em espaços que às vezes reuniam mais de mil deles para trocar ideias. Fiz uma série de programas sobre educação, que foi ao ar no Canal Futura, em que abordava questões como o que é educar, o que é aprender ou de que maneira incentivamos o ser humano a ter um tipo de cognição mais ampla. Esta abordagem combinou com minha linha de pesquisa na Filosofia, na qual eu faço uma crítica, que vem de Nietzsche, ao modelo lógico-racional de pensamento, à linearidade, por achar que ela produz exclusão social, por só aceitar o que é certo ou errado, o bem ou mal.

Antônio Góis, O Globo, 09/09/2013
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