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Observatório na Mídia

29/07/2015 15h02 - Atualizado em 01/07/2022 09h48

Análise

por: José Roberto, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)

Análise de "O arrocho da classe média"

"Eu era feliz e não sabia", com esse lamento se encerra a matéria da Revista Época "O Arrocho da classe média", que trata de algumas mudanças observadas na sociedade brasileira nos últimos anos e que, de acordo com a reportagem, vem afetando os setores da classe média tradicional brasileira. Com efeito, depois de tanto falar na ascensão de uma nova classe média, saída dos segmentos D e E de renda, ou seja, dos pobres, em direção ao segmento C - na matéria identificada como emergentes e classe média baixa (em verdade se trata de uma classe trabalhadora que melhorou de vida através de jornadas pesadas de trabalho) -, a mídia brasileira resolveu olhar para as conseqüências desse processo na chamada classe média tradicional. Para além do problema de se utilizar tal noção de classe, advinda de uma sociologia voltada para pesquisas de mercado, que toma por critério a renda, o consumo, a escolaridade ou a profissão e organiza a sociedade brasileira numa pirâmide social que vai de A a E (A,B,C,D,E) e não pela forma de propriedade (CHAUÍ), o que a matéria sugere traduz o conjunto de mal-entendidos e preconceitos que sempre cerca o assunto. Causa espanto, pois, o teor de preocupação da reportagem, quando aponta o declínio do acesso a bens e serviços de famílias com renda média de oito a quinze mil reais mensais numa sociedade atravessada por iniqüidades e índices de desigualdade abissais. Note-se o tom quase de injúria com o fato do aumento da renda real dos 10% mais pobres ter sido superior ao dos os 10% mais ricos! 

O cerne do debate é o seguinte: o padrão de consumo deste segmento da sociedade, classes A/B nos termos da matéria, curiosamente com faixas salariais que vão de R$ 7.475,00 a R$ 50,000,00 (indicados num pequeno quadro), está tendo de ser reduzido tendo em vista o peso da "inflação de serviços" no orçamento doméstico, como escolas, planos de saúde, dentistas, oficinas mecânicas, empregadas domésticas, restaurantes, cinemas e viagens em geral. No limite, o que se está dizendo é que a melhora na renda de uma parte da classe trabalhadora brasileira, o que gerou algum tipo de inclusão social, nos marcos do "reformismo fraco" do governo Lula/Dilma identificado pelo cientista político André Singer, estaria sendo a responsável "pelo calvário da classe média tradicional". "É inconcebível a alta de preços dos serviços num país de renda média como o Brasil, com baixa qualidade de mão-de-obra", brada furioso o economista. "A classe média está espremida, nervosa", reclama outro especialista no assunto. Tristeza geral invade a cena: também não é mais possível contar com complemento de renda no mercado financeiro. Com a inflação oficial a 6,5% e a taxa Selic a 8%, "não dá mais para contar com ganhos obtidos com aplicações no mercado financeiro", salientam os autores da reportagem. Como resolver essa equação perversa? Dito de outro modo: como garantir gastos com salão de beleza de 800,00 reais por mês, domésticas cinco dias por semana, jantares regulares em restaurantes caros com a família, freqüência a escolas privadas com preços estratosféricos, viagens de férias ao exterior, com a recusa deste segmento da sociedade em "fazer uso dos serviços públicos" e não aceitar "mudar seu estilo de vida"? Conforme salienta a filósofa Marilena Chauí, a classe média tradicional é aquela que tem por sonho "tornar-se parte da classe dominante" e por "pesadelo tornar-se proletária". 

Eis o dilema. Que fique claro, entretanto: não se trata aqui de identificar tal segmento da sociedade brasileira como a única dotada de hábitos frívolos e egoístas em defesa do seu padrão de vida a qualquer custo, em contraposição, por exemplo, a grande burguesia, os milionários brasileiros, que pouco incomodados estão porque nada perderam em termos de status social com certas mudanças. Apenas constato que a matéria em questão está eivada de preconceito de classe, quando sugere implicitamente que o estilo de vida bastante elevado da classe média tradicional estaria sendo abalado pela ascensão de uma camada de trabalhadores, em boa medida precarizados e que labutam duro "com jornadas de até quatorze horas diárias", em vista de alguma melhora, como observa o sociólogo Jessé de Souza, mas que, de acordo com a reportagem, a permanecer tal cenário, ou seja, economia aquecida e baixa concorrência no mercado de trabalho o que impede que se pressione para baixo valor da mão-de-obra, ademais desqualificada, a "inflação de serviços" que atinge a classe média alta não se alterará. "Se a renda da classe média tivesse acompanhado a alta dos preços dos serviços, ela poderia ser absorvida de forma indolor. Isso não aconteceu. A renda da classe A/B subiu bem menos que a dos emergentes e das classes de menor renda", esclarecem os jornalista. Mas se a questão é essa, desde que o governo deixe de errar (chamada de capa), eis que a saída é possível, como sugere o depoimento colhido de um velho economista conhecido nosso desde os tempos da ditadura: "esfriar um pouco o mercado de trabalho para reduzir a demanda de bens e serviços" e com isso baixar os preços e comprimir os salários. Ou seja, melhorar o cenário de "escassez de mão-de-obra" através do aumento do desemprego. E podemos acrescentar: retomar os patamares estratosféricos das taxas de juros, recuperando, para a classe média tradicional "os ganhos obtidos com aplicações no mercado financeiro, como acontecia até pouco tempo atrás". Infelizmente, complementa a matéria, o atual governo, por cálculos políticos e econômicos, não parece muito seduzido por essa saída e prefere, pasmem, "manter o mercado de trabalho aquecido e o desemprego no menor nível da história". A classe média era feliz e não sabia!

O arrocho da classe média

O mineiro Alan dos Santos Alencar, de 43 anos, responsável pela área de tecnologia de uma revenda da Volvo e professor universitário, teve de promover um ajuste dramático em suas contas para não ficar no vermelho. Depois de analisar em detalhes as despesas com sua mulher, Diane, de 42 anos, e a filha Laura, de 15 anos, ele se deu conta de que os gastos com restaurantes, cinemas e saídas à noite estavam pesados demais. Com uma renda familiar de R$ 8 mil, teve de adotar um remédio amargo, mas inevitável: cortar gastos. As idas semanais a restaurantes foram substituídas por refeições em praças de alimentação de shoppings. O cinema foi trocado por um serviço que oferece filmes e séries de TV pela internet. A viagem de férias da família ao exterior ficou para depois. Agora, Alencar diz que, antes de fazer qualquer compra expressiva, ele e Diane avaliam se o gasto é prioritário - e como impactará as contas e os projetos familiares no longo prazo. Sua filha passou a ter uma mesada de R$ 500 para cobrir suas despesas do dia a dia. "É uma maneira de ela aprender a administrar o próprio dinheiro - e de a gente controlar melhor os gastos", afirma. "Descobri que ter uma adolescente em casa muda muito as contas de uma família."

José Fucs, Isabel Clemente, Thais Lazzeri, Marcos Coronato e Ana Luiza Cardoso, Revista Época 09/06/2013
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