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Observatório na Mídia

24/10/2013 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Análise

por: Flávio Serafini, professor-pesquisador da EPSJV

Pacificação: Integração ao mercado via militarização

Professor-pesquisador da EPSJV comenta reportagem do Globo que aborda as oportunidades de negócio proporcionadas pelas UPPs no Rio de Janeiro

Matéria publicada no caderno de economia do Jornal o Globo, do dia 17 de outubro de 2013 chamava a atenção para a dificuldade de formalização dos diferentes tipos de empreendimentos em áreas de favela. Intitulada “O desafio de empreender nas áreas pacificadas”, a matéria apresentava os resultados de pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) debatidos durante o Seminário Oportunidades do Rio, realizado pelo jornal O Globo, em parceria com o Sebrae-RJ e apoio do Iets. Os resultados da pesquisa em destaque apontam que na comparação entre os microempreendedores das áreas pacificadas e os das demais áreas da região metropolitana, há no geral a existências de condições socioeconômicas piores para aqueles que residem nas áreas de UPP (Unidades de Polícia Pacificadora): “Um em cada cinco microempreendedores das comunidades pacificadas do Rio é considerado analfabeto funcional, ou seja, não terminou quarta série do ensino fundamental e apenas 9% possuem um CNPJ, contra 20% que possuem registro para empresa em outras áreas da região metropolitana da cidade. Quando se considera apenas o grupo de empregadores, a diferença fica ainda maior, 28% dos microempresários das comunidades têm CNPJ, contra 70% no restante da capital. Já a parcela dos microempreendedores nas favelas que não contribuem para a Previdência chega a 70%, índice semelhante ao da média da região metropolitana (67%)” .

Em seguida são apresentados outros números, que mostram como a renda dos microempreendedores residentes em áreas pacificadas é menor que a dos de outras áreas. Na sequência, começam os comentários dos demais participantes do Seminário, como o de Marcelo Neri, Ministro Interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos, que destaca que o número de empreendedores no Brasil tem diminuído embora a renda destes tenha aumentado e do coordenador do Iets, que destacou a importância da qualificação da educação para transformar a vida dos moradores das favelas. Em síntese, uma reportagem superficial, que apresentou os resultados gerais de uma pesquisa voltada para analisar a formalização da economia nas favelas pacificadas. Mas qual a importância disso para merecer destaque de meia página no Jornal O Globo justo na semana em que novas testemunhas confirmaram a tortura e o assassinato de Amarildo pelos policiais da UPP da Rocinha e que um adolescente, Paulo Roberto, morreu na favela de Manguinhos e familiares e amigos apontam a responsabilidade dos policiais da UPP local? Central, eu diria. E é interessante que a matéria tenha sido publicada no caderno de economia, pois deixa mais evidente a expectativa que a UPP gera também neste campo.

Inicialmente as UPPs eram apresentadas no discurso oficial como condição para reversão do quadro de esvaziamento de políticas públicas em áreas degradadas. O discurso era de que uma vez retomado o controle do território anteriormente dominado pelo tráfico armado pelo processo de pacificação, estariam dadas as condições para o desenvolvimento local e a entrada de políticas sociais nas favelas.  Após 5 anos do início da implantação das UPPs, pouco se debate estas tais políticas sociais. Como se não bastasse a crise que este modelo de policiamento tem atravessado por não conseguir romper com a lógica de vigilância, suspeição e desrespeito sobre os mais pobres, o que subentende-se desta pesquisa é que pelo menos no campo educacional, pouca coisa mudou: 20% dos microempreendedores continuam analfabetos funcionais. Realidade que certamente reflete, considerando-se as particularidades de cada localidade, a situação do conjunto dos moradores das favelas do estado do Rio. Isto se dá  porque no plano prático e concreto das ações, não houve até agora nenhuma política pública, em especial na área da educação, que fosse implantada de forma sistemática no conjunto das áreas pacificadas. Temos projetos, programas, mas nada que se aproxime de uma política pública estruturante e presente nas áreas pacificadas.

Com a inauguração do programa UPP Social em meados de 2010, a vinculação entre as UPPs e as políticas sociais passou a se articular com as intervenções desse programa de gestão das políticas sociais e de desenvolvimento. O programa UPP Social visa articular e coordenar a implementação de políticas sociais em favelas pacificadas, assim como organizar informações e levantar as principais demandas da comunidade. Inicialmente desenvolvido no âmbito da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, no início de 2011 foi deslocado para o Instituto Pereira Passos da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, que para a sua implementação busca a parceria com ONGs, empresas e outras esferas governamentais. As UPPs sociais configuram-se como uma tentativa de dar resposta às diferentes críticas de que a política de pacificação se restringia a um processo de militarização do cotidiano, que pouco avançava na garantia de direitos sociais aos moradores de áreas segregadas da cidade. Entretanto, até agora, nem de longe contou com o mesmo suporte governamental dado à UPP policial.

A UPP Social tem dois projetos na área de educação: o programa “Escolas do Amanhã”, que visa reverter o quadro de evasão e desenvolver educação em tempo integral; e o “Espaço de Educação Infantil”, que busca a articulação entre creches e pré-escolas nas áreas pacificadas. O primeiro programa está em apenas dez favelas das 34 pacificadas, o segundo em apenas 6 favelas. Na grande maioria das favelas pacificadas, a propalada paz chegou na forma de policiais, mas não de professores. O único programa educacional que se encontra na maior parte das áreas pacificadas é a oferta de cursinhos profissionalizantes geridos pelo sistema S (Senai e Senac – braços sociais do patronato na indústria e no comércio), que busca formar força de trabalho para atender suas demandas. O significado mais profundo destas políticas é de que não há um esforço de estimular a mobilidade social, a democratização do acesso ao conhecimento, em síntese, a transformação das condições sociais da favela anteriores a pacificação. A preocupação não é promover a escolarização, mas jogar mais gente no mercado de trabalho.

Aliás, outro elemento que a pesquisa ajuda a revelar é a preocupação da relação das UPPs com o mercado. Embora nunca tenha sido reconhecido oficialmente, é muito evidente o papel preponderante que a UPP cumpre de integração aos mercados. Em primeiro lugar, o circuito das UPPs é um circuito que prioriza a realização dos eventos esportivos que a cidade do Rio vai sediar, mas também, as zonas turísticas e de maior valorização imobiliária na cidade. Na Zona Sul, todas as favelas estão pacificadas, e não eram as mais violentas da cidade. A pacificação tem levado à uma requalificação do território, valorizando os terrenos, atraindo negócios, e naturalmente, encarecendo o custo de vida. Segundo o índice FIPE, de agosto de 2010 a agosto de 2012, o preço dos imóveis na cidade do Rio de Janeiro aumentou 68, 3%; enquanto em São Paulo o aumento foi de 52, 4%; em Belo Horizonte de 38,3% e a média no Brasil de 50,9%. Levantamento realizado em agosto de 2009 pelo sítio ZapImóveis especializado no mercado imobiliário, apontava que na Favela Santa Marta com pouco menos de um ano de pacificação o mercado de imóveis estava movimentado, com variações que oscilavam de 30 a 400% .

Além disso, a implantação das UPPs tem sido acompanhada de uma espécie de “choque de ordem” nas comunidades. Serviços públicos passam a ser regularizados, e a maior parte da população que não pagava IPTU, água, luz ou TV a cabo passam a arcar com estas despesas. Para se ter uma ideia, levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas publicado em 2012, apontou que após a pacificação, o número de clientes da Light, fornecedora de eletricidade aumentou 126% na Babilônia; 33% na Cidade de Deus; 2864% no Batan; 35% no Chapéu Mangueira; e 68% no Cantagalo.  Mais um aumento no custo de vida nestas áreas. Sem nenhum programa do governo que busque garantir a permanência dos antigos moradores nestas comunidades, a tendência é que os mais pobres se mudem, indo morar em áreas mais distantes.

Estas favelas, que já estão recebendo negócios, pousadas, passeios turísticos, etc, em breve terão menos pobres, porque a integração ao mercado que a UPP promove, muda o território, mas não aponta para a mudança nas condições sociais de existência dos seus moradores. Na inserção dos moradores de favelas pacificadas no sonho liberal do livre empreendedor que compete em busca de alcançar o sucesso, esqueceram-se de garantir a igualdade de oportunidades. Os 20% de empreendedores analfabetos funcionais, refletem a realidade de uma parcela da população cuja principal política pública continua sendo a polícia.

Uma propaganda institucional veiculada pela televisão no início da implantação das UPPs mostrava um carro de polícia subindo uma favela carioca. Ao estacionar, a porta da mala da viatura se abria e saíam de lá pessoas vestidas como médicos, professores, engenheiros, etc. A segurança era apresentada como porta de entrada da cidadania e da possibilidade de ampliação dos direitos sociais. Hoje, o que se diz em boa parte das favelas, é que do carro de polícia saíram cobradores da LIGHT, da CEDAE, da NET, da prefeitura, etc.

O desafio de empreender nas áreas pacificadas

RIO - Um em cada cinco microempreendedores das comunidades pacificadas do Rio é considerado analfabeto funcional, ou seja, não terminou quarta série do ensino fundamental e apenas 9% possuem um CNPJ, contra 20% que possuem registro para empresa em outras áreas da região metropolitana da cidade. Quando se considera apenas o grupo de empregadores, a diferença fica ainda maior, 28% dos microempresários das comunidades têm CNPJ, contra 70% no restante da capital. Já a parcela dos microempreendedores nas favelas que não contribuem para a Previdência chega a 70%, índice semelhante ao da média da região metropolitana (67%).

Nice de Paula, O Globo, 17/10/2013
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