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A fome invisível

Nas aldeias e nas cidades, população indígena sofre os efeitos da pandemia na segurança alimentar, embora não haja dados para retratar essa realidade
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 07/07/2021 09h07 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Felipe Abreu

Planta, mas não vende. Não come, nem troca alimento. Não consegue plantar novamente. Sem as sementes, não produz artesanato. Também se produzisse, não haveria mais feira para comercializar. Sem renda, não tem mais roça. Tem fome. E o ciclo começa novamente. Sim, as dificuldades que a pandemia trouxe para a segurança alimentar dos povos indígenas não parecem tão diferentes da tragédia que se abateu sobre as populações do campo e da cidade no Brasil. Mas aqui existe um elemento a mais: a invisibilidade.

A começar pela falta de dados. Um exemplo claro é que nenhuma das duas recente pesquisas divulgadas sobre a situação de insegurança alimentar no país traz um retrato preciso da fome nas populações indígenas. No estudo da Universidade de Berlim em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Brasília (UnB), 1,2% dos entrevistados se declararam indígenas, mas, além de esse ser um contingente muito pequeno – menos de 30 pessoas –, as informações coletadas não permitem conclusões específicas sobre essa realidade. Segundo Inara Tavares, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), a última pesquisa com informações sobre a segurança alimentar dessa população foi o Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, realizado em 2009. Antes dele, os últimos dados eram de 1994, quando, no contexto do Movimento Ação pela Cidadania contra a Fome, produziu-se um Mapa da Fome dos Povos Indígenas no Brasil.

E a invisibilidade tem ainda outras formas. Vanda Ortega, técnica de enfermagem e integrante do povo Witoto – originário da Colômbia, que tem apenas 270 famílias no Brasil–, destaca essa como uma particularidade das populações indígenas que vivem fora das aldeias. “Essas populações que estão em contexto de cidade são extremamente invisíveis, não têm o reconhecimento da sua identidade. E isso deixa os nossos povos em extrema vulnerabilidade e marginalidade”, diz.

Na ‘selva’ da cidade

“A maioria dos nossos parentes estão em periferias nos centros urbanos, não concluíram estudo, não têm trabalho e não têm dinheiro para comprar alimento. A maioria também produz o seu artesanato, que é de onde vem uma renda muito pouca para se garantir alimento na cidade”, descreve Ortega. A semelhança não é mera coincidência. E, tal como para os trabalhadores informais dos grandes centros urbanos, com a necessidade de isolamento social, essa fonte praticamente secou. Por essa e outras razões, ela conta que na comunidade onde vive, em Manaus, chamada Parque das Tribos, “a fome chegou antes do vírus”. A sobrevivência veio da mobilização social, da qual Ortega participou ativamente.

"E não é proteína, é só arroz e feijão. Não tem outra coisa para comer"
Vanda Ortega

Na medida do possível, a crise foi sendo contornada com doações de cestas básicas que garantiram alguma comida na mesa, mas sempre de forma descontinuada. “E não é proteína, é só arroz e feijão. Não tem outra coisa para comer”, ressalta, lembrando que, “uma única vez” durante toda a pandemia eles receberam doação de peixe. Diante do empobrecimento, diz, a “base alimentar dos parentes que estão na cidade” são os enlatados, de baixa qualidade nutricional, que, no entanto, são mais baratos. “É criança que na hora do café e na hora do almoço [carrega] uma sacolinha cheia de salsicha, cheia de ovo, uma lata de conserva ou um quilo de farinha para tentar sobreviver na cidade”, relata.

A partir do vínculo que mantêm com suas raízes, de tempos em tempos muitos indígenas da cidade se deslocavam para os territórios de origem para buscar frutas e outros alimentos ou simplesmente os recebiam de quem fazia o caminho inverso. Ortega explica que, como era esporádico, isso nunca foi suficiente para garantir a segurança alimentar dessa população, mas mesmo essa prática foi atingida pela crise sanitária. “Antes da pandemia a gente sempre recebeu peixe, banana, farinha, semente, tudo vem dos nossos territórios. Com a pandemia se proibiu a circulação dos barcos, poucas coisas a gente conseguiu manter”, diz.

Mobilizada pela carência coletiva, a profissional de saúde diz que passou a circular mais entre as casas dos “parentes” e pode observar mais de perto o “tamanho das suas necessidades”. A responsabilidade aumentou em maio do ano passado, quando o cacique da sua comunidade morreu de Covid-19 e a deixou com a tarefa de tocar um conjunto de ações de mobilização local. Agora, por exemplo, eles estão criando uma associação e um grupo de mulheres para tentar retomar a produção de artesanato.

Foi também depois da morte do cacique, a partir das denúncias feitas pela comunidade, que o Parque das Tribos recebeu o que Ortega considera a “primeira ação de saúde” voltada para populações indígenas no município. Lá foi instalada uma Unidade Básica de Saúde (UBS) móvel, com médicos, enfermeiros e testagem rápida para Covid-19. Pouco depois, Manaus criou uma ala hospitalar específica para indígenas – uma população que, segundo ela, totaliza cerca de 35 mil em todo o município. “Mas na questão de alimentos, sempre foram instituições não governamentais e pessoas físicas que se mobilizaram em prol da comunidade”, diz.

Ortega reconhece que, em todos os lugares, a vida não tem sido fácil para os povos indígenas, mas acredita que, mesmo com todas as dificuldades, nos territórios originais o fantasma da fome ainda seja menor. Ela justifica: “Eu penso que existe uma segurança maior dentro dos nossos territórios, pelo que eu consigo observar. Porque lá a maioria faz roça ainda, lá ainda se planta macaxeira, banana...”.

Na ‘roça’

De acordo com Inara Tavares, no entanto, plantar também não tem sido tarefa fácil para os povos indígenas. E os problemas podem ter ou não relação com a pandemia. Ela conta que, neste ano, por exemplo, no Amazonas está acontecendo uma cheia que periga ser a “maior do século”. Como se não bastasse toda a crise sanitária e econômica, um fenômeno como esse significa que, provavelmente, “a produção de alimentos vai ser escassa”. “Roçados inteiros que ficam debaixo d’água se perdem. E isso tem uma relação muito direta com as mudanças climáticas”, explica.

“A garantia de terra, sem dúvida, é fundamental para a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas”
Inara Tavares

No que diz respeito à pandemia, as dificuldades também têm sido muitas. Primeiro, os territórios originais também contam com uma complementação de alimentos que vêm da cidade. Com a circulação de pessoas limitada, essas trocas ficaram prejudicadas. Em segundo lugar, Tavares destaca que, para as populações indígenas, a produção de alimentos demanda “trabalho coletivo e contínuo”, o que ficou profundamente impedido no contexto de uma doença que exige o distanciamento social. O fato de a Covid-19 ter chegado às aldeias, matado e adoecido parte dessa população, muitas vezes deixando sequelas, é outro golpe no trabalho agrícola que caracteriza a vida dessas comunidades.

Felipe AbreuMas um dos problemas mais graves apontados pela professora tem a pandemia como conjuntura, embora não propriamente como determinante. Trata-se da intensificação dos conflitos territoriais envolvendo as terras indígenas. “A garantia de terra, sem dúvida, é fundamental para a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas”. As violentas tentativas de garimpeiros de invadir terras ianomâmis em maio deste ano, amplamente noticiadas, compõem um entre outros capítulos dessa ameaça frequente, que, como explica a pesquisadora, interfere diretamente na segurança alimentar desses povos. “A produção dos povos indígenas não é baseada em monoculturas, são culturas de vários alimentos: num pequeno espaço se produz macaxeira, milho, feijão, leguminosas, hortaliças ou mesmo temperos”, descreve, completando: “Se a gente está num território que está sofrendo diversas ameaças e invasões, a produção alimentar que eu distribuía no território inteiro vai se reduzir a uma parte, porque eu já não vou para uma área onde pode ter eventuais conflitos".

Por tudo isso, ao analisar o papel do Estado nesse cenário, ela destaca a importância das políticas ambientais – e avalia criticamente o momento atual. “A gente tem, desde antes da pandemia, um cenário de desmonte e ameaça às políticas públicas indigenistas”, resume. E acrescenta: “As políticas ambientais são de favorecimento do garimpo e abertura de grandes territórios para monocultura. Tudo isso cria pressão nos territórios e gera consequências em relação à produção alimentar”.

Em meio à pandemia, foi criada uma Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas que, entre outras coisas, batalhou pela aprovação da lei 14.021, de julho de 2020, que cria um Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas. Entre outras medidas, a lei estabelece que a União garantirá “suporte técnico e financeiro à produção” e ao escoamento dos produtos desses povos e que a “distribuição de cestas básicas” e outras ações semelhantes devem ser “preferencialmente” realizadas pelo poder público. Alguns artigos importantes do projeto que deu origem à lei (PL 1.142) foram vetados pelo presidente da república. Entre eles, o que criava uma linha de crédito e financiamento específica para populações indígenas dentro do Plano Safra. Outro veto – este derrubado pelo Congresso – foi aos pontos do projeto que exigiam dos três entes federados ações para garantir o acesso desses povos à água potável e a materiais de higiene, limpeza e desinfecção nas aldeias.

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