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A justiça que silencia a ciência

Painel traz experiências de pesquisadores da saúde ambiental processados em consequência de suas pesquisas.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 16/11/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Denunciar e ampliar o debate acerca das pressões judiciais a que estão submetidos pesquisadores da saúde ambiental que estudam os impactos de grandes empreendimentos industriais e agrícolas: esse foi o principal objetivo do painel 'A judicialização na pesquisa em saúde ambiental', ocorrido sexta-feira durante o Abrascão. Dois dos expositores do painel foram pesquisadores que sofreram processos judiciais impetrados pela Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) por conta de seu trabalho de levantamento e denúncia dos impactos à saúde das populações do bairro carioca de Santa Cruz causados pelo empreendimento: Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e Hermano Albuquerque, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), ambas unidades da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Hermano lembrou que as tentativas de silenciamento da pesquisa científica que se contrapõe aos interesses econômicos hegemônicos são práticas seculares. “A ciência é o que traz o novo, e quando essa novidade se contrapõe ao velho e coloca em xeque o poder de determinados segmentos da sociedade, esses segmentos se colocam contra os avanços científicos”, colocou Hermano, citando como exemplo histórico o caso de Giordano Bruno, que no século 16 foi perseguido e executado pela Inquisição Católica por defender que o Universo era infinito. “Nós tendemos a achar que isso não acontece na modernidade, mas na verdade existem vários relatos de prisões, perseguições e assassinatos de pesquisadores que ousam se contrapor a poderes hegemônicos”. Hermano citou levantamento da Associação Americana pelo Progresso da Ciência, que acolhe denúncias e investiga casos de pesquisadores perseguidos por conta de seu trabalho. Em 2003, dos 55 casos registrados pela associação em todo o mundo, 11 ocorreram nas Américas, sendo três no Brasil. “Mas grande parte dos casos não entra num banco de denúncias como esse, e acaba que o pesquisador não dá continuidade a sua pesquisa por conta da perseguição, ou então, se obtém resultado, não consegue publicar”, apontou o pesquisador da Ensp.

Inversão

Segundo ele, vêm se tornando comum no Brasil processos movidos contra pesquisadores por empresas prejudicadas quando da divulgação de pesquisas, e a área da saúde ambiental é muito visada. “A empresa vai alegar que teve perda de ações, perdendo disputa de mercado. Aí você passa a ser o agressor. A TKCSA joga uma poeira que causa danos à saúde e os agressores somos nós, que alertamos a população para os problemas que ela causa, inclusive câncer. A própria empresa tenta aliança com a comunidade, pedindo que os pesquisadores paguem os eventuais danos para a comunidade, e não para ela. Além disso, existe a pressão da própria instituição que força pesquisador a se aposentar, o demite... são várias as maneiras de calar a boca do pesquisador”, denunciou. Hermano, que é servidor público, afirma que falta apoio por parte das instituições públicas aos pesquisadores ameaçados judicialmente. “Eu, por exemplo, tive que buscar advogado privado, e contra uma empresa como a TKCSA você não contrata qualquer advogado. De cara, só para conversar, ele pediu R$ 9 mil, e no decorrer do processo poderia ter que gastar de R$ 30 mil a R$ 100 mil. Então você fica inteiramente a mercê de uma empresa que tem uma banca de advogados poderosa. Só depois de muita luta conseguimos que um advogado da Fiocruz acompanhasse esse processo”.

Duelo assimétrico

"Esse debate não causa surpresa”, disse Alexandre Pessoa, e completou: “São diversos os profissionais que estão aqui presentes que já sofreram níveis distintos de intimidações”. No campo da saúde ambiental, disse, esse tipo de conflito é comum devido à transversalidade das questões envolvidas em episódios de contaminação ambiental por empresas ligadas a grandes grupos econômicos. “Quando abordamos da perspectiva da saúde ambiental, temos que avançar para alem do quadro clínico e anterior à exposição, avaliar a situação e estado do ambiente que gera essa exposição e identificar forças motrizes que desencadeiam esse processo de degradação que traz agravos para a saúde. Precisamos discutir os atores que estão por trás desse processo e, se temos setor privado, está estabelecido o duelo, que é assimétrico. Mas não nos colocamos de maneira quixotesca. Somos muitos”.

Segundo Alexandre, a conjuntura aponta para um processo de desmantelamento da legislação e dos órgãos ambientais brasileiros, que se expressa de maneira bem clara na rapidez com que estão sendo concedidas licenças ambientais para empreendimentos altamente impactantes ao meio ambiente, principalmente ligados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “No Rio ainda temos o caso do Comperj, que está sendo implantado sem que sejam considerados os conflitos ambientais e impactos para a saúde das populações do entorno. A pesca artesanal está sendo extinta. É uma lógica em que a Baía de Sepetiba deixa de ter valor ecológico e o ecossistema passa a existir em função da exploração de commodities. Inverteu-se a função, só que não houve consulta às populações afetadas”, reclamou Pessoa. A conivência do Estado, afirmou Pessoa, pode ser exemplificada pela fala do ministro da pesca, durante reunião com a Associação Homens do Mar (Ahomar), que representa os pescadores da Baia de Sepetiba. “Enquanto os pescadores pediram ajuda do Estado na defesa de sua existência, o ministro falou: ‘É o capitalismo!’. Quer dizer, é a naturalização da poluição pelo Estado brasileiro. Além disso, o ministro ainda disse aos pescadores que não tinha condição de enfrentar o Comperj”, revelou Alexandre Pessoa. 

Inquisições de toga

A última fala do painel foi do advogado sindical e membro da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Aderson Bussinger, que chamou atenção para o desafio de colocar a dimensão da pesquisa e defesa dos pesquisadores na ordem do dia. “A pesquisa é um elemento que realmente está na mira dos que não querem o progresso cientifico e querem manter o status quo e seus negócios. A pesquisa não pode ser colocada só do aspecto da ciência mas sim da liberdade da pesquisa cientifica e de expressão que estão na Constituição”, afirmou Aderson, completando em seguida: “Mas embora a Constituição diga que a pesquisa é prioridade do Estado, os pesquisadores não contam com proteção. Isso só vai mudar com o trabalho de todos nós. Quem quer obscuridade é quem tem que temer, foi assim que perseguiram o Galileu Galilei, mas as inquisições modernas estão aí, de toga”, apontou.

‘Comissão da verdade’ do cerceamento da ciência

Ao final do painel, Anamaria Tambellini, doutora em Saúde Pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), informou que está em discussão dentro da Abrasco uma proposta de construção de uma espécie de ‘comissão da verdade’ para pensar constrangimentos de pesquisadores no passado e hoje. “O que queremos é ter um setor dentro da Abrasco que dê luz a fatos, processos e acontecimentos que já aconteceram e que consigamos mapear as várias formas com que esse cerceamento ocorre. Temos casos de pessoas que enlouqueceram, se exilaram e não conseguiram voltar, pessoas que se suicidaram. São coisas que não estão escritas e queremos identificar e colocar a questão dos acadêmicos para que isso possa ser estudado”, disse Ana. “Temos que elaborar dentro da nossa associação formas de mapear como isso acontece para discutirmos dentro da Abrasco e pensar formas de luta para que possamos nos comunicar e construir coletivamente essa área, para combater o assedio da indústria, das próprias instituições e as regras criadas por nós mesmos, pelas quais aceitamos romper com a solidariedade de grupo”.