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A pandemia em foco

Pesquisadores debatem os erros, desafios e lições da pandemia de covid-19 no Brasil
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 29/03/2021 14h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Discutir erros, acertos, desafios atuais e possíveis legados do enfrentamento da pandemia do novo coronavírus – justamente em um contexto em que o Brasil volta a apresentar recordes de casos – foi o objetivo da mesa redonda ‘Prospecções no enfrentamento da Covid-19 no Brasil’, realizada no dia 24 de março durante o 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Para isso foram convidados como palestrantes o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Esper Kallas, o pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP Gonzalo Vecina e a ex-diretora do Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde, Carla Domingues.


Vacinação

Segundo Kallas, o Brasil adotou, no início da pandemia, medidas que contribuíram para conter a disseminação do vírus causador da covid-19, de tal modo que, em 2020, o país apresentou resultados melhores do que em muitos países em termos de número de mortos e  de casos no auge da pandemia. Mas o momento é outro, alertou Kallas. “O que vemos agora não é isso. Estamos chegando a um momento de colapso da maioria dos lugares. Estamos vivendo infelizmente dificuldade de arrumar leitos, seja na medicina pública ou privada, em todas as regiões do país. Inclusive na região metropolitana de SP, que tem uma das maiores relações leitos de terapia intensiva por habitante do mundo. A gente tem 43 leitos por 100 mil habitantes, que chega a ser mais alta do que a média alemã. E nosso sistema não deu conta”, disse Kallas.

Para o pesquisador da USP, o governo brasileiro perdeu a oportunidade de negociar estrategicamente junto às empresas farmacêuticas que, a partir de junho, começaram a procurar o país para desenvolver testes de vacinas contra a covid-19. “Éramos o centro das atenções, porque vivíamos o pior momento pandêmico, éramos o mau exemplo da época, embora muito abaixo do que vivemos hoje. Vários desses projetos começaram a ser implementados no Brasil. A vacina da Pfizer, a Astrazeneca, a Sinovac.  Era a grande oportunidade de negociação estratégica.  A gente poderia ter chegado de uma forma coordenada aqui no Brasil quais seriam salvaguardas para que a gente pudesse ter acesso logo que esses resultados ficassem prontos, afinal demos contribuições significativas para todos esses protocolos, principais vacinas. Nos faltou essa capacidade”, lamentou Kallas.

De acordo com o professor da USP, uma das grandes preocupações atualmente é quanto à eficácia das vacinas contra a covid-19 em relação às novas variantes que surgiram na África do Sul, na Inglaterra e no Brasil. Sobre a variante V3, ou P1, que atualmente é a prevalente em circulação no Brasil, ainda há poucos dados, segundo ele. “Um dado preliminar da vacina da Johnson&Johnson sugere eficácia de 68%, o que seria um alívio. Precisamos ainda de mais informações sobre a AstraZeneca e da Coronavac”, disse Kallas, complementando que um estudo realizado na USP apontou que a porcentagem de voluntários imunizados com a Coronavac que apresentaram capacidade neutralizante contra a P1 foi igual a dos que apresentaram para a variante original do vírus. “Os resultados ainda estão saindo, e serão importantes para o delineamento das estratégias de vacina no futuro”, concluiu Kallas.


A questão da desigualdade na oferta de leitos

Para Gonzalo Vecina, a pandemia deixou clara a falta de investimento na ampliação do número de leitos de UTI no Brasil, principalmente no SUS. “O Brasil há muitos anos não vem se preocupando com a pressão tecnológica para oferecer um número maior de leitos para atender as patologias que hoje em dia necessitam de uma cobertura melhor de leitos. Tivemos uma mudança no perfil epidemiológico e demográfico da população nos últimos 30 anos.  A população envelheceu rapidamente, por um lado, e por outro lado o mix de doenças que levam ao processo de adoecimento mudou radicalmente, saímos das infectocontagiosas para as crônico-degenerativas. Há muita demanda por leitos de UTI que não tiveram acompanhamento particularmente na rede do SUS”, destacou Vecina. Ele destacou ainda o papel da pandemia na exposição das desigualdades no Brasil. Enquanto no início da pandemia o número de leitos de UTI para cada 100 mil habitantes no SUS era de sete, no setor privado era de 32. “Essa doença e suas mortes tem CEP, que fica na pobreza;. 75% das pessoas em extrema pobreza no Brasil são negros. E do total de vacinados no Brasil até agora só 19% são negros”’, exemplificou o pesquisador da USP, complementando em seguida: “O SUS é um instrumento de transformação da desigualdade. A questão da falta de leitos de UTI tem significado importante, principalmente em relação ao atendimento médico voltado a pobres e negros. Ao final da primeira etapa da crise, chegamos a ter 15 leitos por 100 mil habitantes no SUS, hoje voltamos para trás. Saímos dos 15 leitos por 100 mil habitantes para 10, 11 leitos por 100 mil. O Ministério da Saúde parou de financiar esses leitos. Isso teve como consequência a redução do número de leitos que foram incorporados”, criticou.

Para concluir, Vecina defendeu o lockdown como forma de redução da pressão sobre os leitos de UTI. “Uma coisa que temos que evitar no futuro é esse negocio de melhorar o atendimento da demanda com aumento da oferta. Sem aumentar o isolamento social e diminuir a necessidade de leitos, essa corrida entre oferta e demanda vai nos levar ao desastre. Temos que garantir oferta adequada de leitos sim, mas com uma demanda sob controle. Não tem outro jeito de fazer a demanda ficar sob controle que não fazendo o lockdown, que nós não fizemos até hoje”, defendeu.