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A quem atende a nova saúde digital?

Nova Política Nacional de Informação e Informática em Saúde está sob consulta online e abre discussões sobre a necessidade de uma nova versão e a forma como isso tem sido debatido
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 27/08/2020 14h27 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Arquivo Fiocruz/Raquel Portugal

Até o dia 31 de agosto está aberta a consulta pública para a revisão da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS). No total, são 25 artigos a serem avaliados com duas categorias: “concordo” e não “concordo” - esta última demandando justificativa e proposta de nova redação, numa plataforma online disponibilizada pelo Departamento de Informação do Sistema Único de Saúde desde o início do mês. Tanto a redação com teor mais focado na informatização quanto a forma de consulta pública sem debate, em plena pandemia, causaram polêmicas entre pesquisadores e entidades que debatem o tema.

A PNIIS norteia as ações de tecnologia da informação e comunicação (TIC) de todo o sistema de saúde brasileiro, além de estabelecer determinada padronização dos procedimentos para obtenção e tratamento dos dados em saúde. Historicamente, a PNIIS é formulada com a participação das três instâncias gestoras do SUS (município, estado e União), de entidades vinculadas ao Ministério da Saúde - como a Agência Nacional de Saúde Suplementar, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Fundação Nacional de Saúde, Fundação Oswaldo Cruz e Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia - e do controle social, por exemplo, a partir das Conferências Nacionais de Saúde.

Para o pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (LIS/Icict) Josué Laguardia, todos foram surpreendidos com a consulta sobre a nova política. Não foi possível, até o momento, como era de costume nas edições anteriores, criar debates e consensos sobre o texto. “A única forma de participação é ir lá e preencher se você concorda ou não e se não, justificar e propor uma nova redação. A opinião do pesquisador da área, ao que parece, terá o mesmo peso de um usuário comum ou de um empresário da área de TI. Não está claro como esses dados serão consolidados, o que terá mais peso na hora de incluir na redação final. É a individualização da política. Cada um dá sua opinião, balizada ou não.”, avalia Laguardia. 

Em nota assinada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde (AbrES), Associação Brasileira Rede Unida, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) entre outros, é criticada a forma que está sendo conduzido o debate. “Tema de alta relevância e complexidade, a presente minuta é apresentada sem um cuidadoso e prévio debate, diferente das duas edições anteriores da PNIIS (2004 e 2015), publicadas após ampla discussão e participação de diversos setores da sociedade. Por conseguinte, há graves equívocos e lacunas, além de desconsiderar as necessidades que se apresentam no momento atual”, afirma.

De acordo com a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Angélica Baptista Silva, a Política em vigor, que foi aprovada em 2015, ainda não havia sido implementada por completo e construir uma nova cria descontinuidade ao processo. “Essa nova política vem atender a uma demanda extremamente política, ligada à indústria e que se afasta dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde”, avalia.

Segundo os pesquisadores ouvidos nesta reportagem, há um movimento que não começa de agora para que o setor privado possa administrar os dados do SUS por detrás desse processo de digitalização. digitalizar os dados do SUS e inserir, como o texto sob consulta deixa exposto, a possibilidade de o setor privado administrar esses dados fornecidos pelo Sistema Único de Saúde. “Isso faz parte de ações de um governo centralizado e não transparente. E muito influenciada pelo complexo econômico industrial das telecomunicações e da informática, que vê no SUS um grande mercado em escala”, avalia a pesquisadora.

José Mauro Pinto, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), questiona ainda o conteúdo apresentado que, segundo ele, não deveria ser chamado de política, devido ao seu teor. “Ela poderia ser um plano, um programa, uma estratégia, como a que já existe de saúde digital, mas não política. Ela rompe com o que estava sendo historicamente montado, de maneira devagar, mas com discussão de diferentes frentes, como a academia, os trabalhadores e a sociedade. Isso é rompido e aparece algo completamente diferente que sequer faz menção à outra [política]”, reflete.

Articulações

No final do mês de julho, foi publicada a portaria 1.839/2020, em que se estabelecia a disposição de ações que envolvam o uso de dados e indicadores para saúde pública no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e sobre o Módulo de Gestão de Dados e Indicadores (MGDI). Angélica Baptista avalia que, além dessa nova portaria, a política, que antes era debatida na Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa) formada, por diferentes entes, agora também  foi decidida de forma hierárquica. , o que antes era debatido na Rede Interagencial de Informações para a Saúde formada por diferentes entes. “Agora temos uma Ripsa onde o interagencial virou intra-agencial, tudo definido integralmente pelo Ministério da Saúde”, aponta.

Numa ação também que se articula em outros setores, no mês de abril, como foi noticiado pela imprensa especializada, a Assespro (Federação das Associações das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação) encaminhou um ofício ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para questionar a parceria assinada com a Cisco, empresa multinacional de soluções para redes, no desenvolvimento do projeto de avanço da digitalização no Brasil. O acordo foi feito no dia 27 de maio. A Cisco também gerencia projetos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) do Ministério da Saúde.

“O que se busca por parte da iniciativa privada não é a melhoria do sistema, mas arrancar o dinheiro do sistema para um nicho de mercado, que é a informática. As informações estão lá, o sistema existe. Pelo que entendi da rede que está sendo criada, trata-se do uso de uma plataforma que vai canalizar todos os sistemas que já existem para um determinado lugar. O que a gente vê é uma destruição do que já estava sendo construído, construindo algo que já existe com outro nome e com outras finalidades”, alerta o pesquisador José Mauro Pinto.

Para Angélica, esse movimento trouxe jargões e demandas do setor privado para o serviço público, que são, por exemplo, as metodologias ágeis para desenvolvimento de aplicativo e de produtos para o cidadão. “Mas o que acontece, como os próprios especialistas em transformação digital apontam, é que não traz a transparência das questões, das ações dos governos e o accountability [prestação de contas]. Eles ficam só na retórica porque essa metodologia é focada no produto e no desejo do dono do produto, que tem a palavra final. O que a gente vê na literatura e nas experiências que levam esse modelo como referência, para uma implementação de transformação digital, é que todas as partes de uma organização são ouvidas para desenvolvimento do produto, mas a palavra final é do dono. Que vai ao encontro de políticas que temos visto. E isso vai ao encontro de um governo com decisões centralizadas e não transparentes. O que a gente tem visto como uma tônica da atual gestão”, explica.

 

Informatização e big data

Lançado no dia 1º de abril, o Telesus, sistema de teleatendimento a consultas do SUS, realizou, em apenas uma  semana, 471,6 mil atendimentos à distância, como informa o site do Ministério da Saúde. Acelerado o processo por conta do cenário pandêmico, as teleconsultas passaram a ser alternativas para atendimento em casos de doenças e sintomas menos graves.

Angélica afirma que este processo pode ser alvo de big data, sistema que trata, analisa e obtém informações a partir de conjuntos de dados para serem utilizados posteriormente com fins diversos, entre eles a venda de produtos farmacêuticos e seguradoras de saúde. “Não sabemos como isso vai ser utilizado. Falta transparência e é sabido que a mineração de dados é hoje o negócio de ouro das empresas de telecomunicações”, reflete.

José Mauro concorda: “Pela LAI [Lei de Acesso à informação], o Estado pode usar as informações pessoais para pesquisa. A LGPD [Lei geral de proteção de dados] preconiza que isso seja feito com anonimização. Mas o que sabemos a partir de experiências com aplicativos e desenvolvimento de dados é que dá para ter acesso dos dados de quem os fornece. Os dados não podem ser capturados sem autorização, mas após a captura dos desses pode ocorrer a manipulação e uso para outros fins diferentes da autorização dada inicialmente. Uma vez que a LGPD não foi implementada, não há o decreto normatizador, nem a agência que está prevista na LGPD, que será responsável pela fiscalização”, alerta.

De acordo com José Mauro, tanto seguradoras de saúde como a indústria farmacêutica têm interesse em ‘minerar’ esses dados. “Porque aí você direciona o que as pessoas precisam e  vão poder fabricar remédios que interessam e direcionar para os lugares certos. A indústria farmacêutica não vai precisar fazer propaganda para todo o Brasil, vai direcionar o marketing. Se o remédio não der dinheiro em determinadas regiões, ele sai da prateleira. Esses são alguns pontos por trás da venda de dados, dessas informações tão preciosas. Não temos discutido esse tipo de questão”, aponta.

 

Vazios digitais

Apesar de um dos princípios da Política ser a democratização da informação, o processo de digitalizar toda a rede e informatizar os processos não leva em consideração o cenário diverso e de falta de acesso à internet no Brasil. Segundo a pesquisa TIC Domicílios, do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), 28% dos domicílios brasileiros e 19% dos brasileiros não têm acesso à internet. Destes, 47 milhões estão nas áreas urbanas e pertence às classes D/E (quase 26 milhões de pessoas). Em áreas rurais, são cerca de 12 milhões.

“Às vezes a gente pensa na Amazônia, mas nos grandes centros urbanos as pessoas têm dificuldades com acesso à internet. A gente tem visto isso nas teleaulas agora nesse contexto pandêmico. A política nacional das telecomunicações não foi direcionada para a universalização do acesso. Nós tínhamos até um Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações], que não foi utilizado em sua totalidade, foi usado para tapar déficit orçamentário da administração federal. Esse fundo foi criado com a venda das estatais das telecomunicações”, relembra Angélica. 

Para Laguardia, não é um modelo único que vai trazer a solução para todos os problemas. “A gente já tem a tecnologia e o que precisamos é atrelar com a infraestrutura que permita utilizar aquela tecnologia adequadamente. A questão é: de que modelo de saúde estamos falando? Um tipo de saúde digital que é utilizado em contextos muito específicos, como, por exemplo, nos hospitais de ponta, e que agora se coloca como padrão para todo o Brasil?”, indaga.