É por causa de três irmãs nascidas na República Dominicana na década de 1920 que atualmente se comemora, no dia 25 de novembro, o Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher. A escolha desse dia foi uma homenagem às irmãs Patria, Minerva e Antonia Mirabal, assassinadas neste dia em 1960 a mando de Rafael Trujillo, ditador que presidiu a República Dominicana de 1930 a 1961, e a quem as irmãs Mirabal faziam oposição. A data foi definida no 1º Encontro Feminista da América Latina e Caribe, realizado em Bogotá, na Colômbia, em 1981. E os dados apontam que, desde então, o combate à violência contra as mulheres vem se colocando cada vez mais na ordem do dia. Segundo dados divulgados no início deste mês pelo Mapa da Violência 2015, o número de assassinatos de mulheres no Brasil passou de 1.353 em 1980 para 4.762 em 2013, um aumento de 252%. A taxa de homicídios de mulheres passou de 2,3 para 4,8 vítimas para cada 100 mil mulheres no período, um crescimento de 111%. Treze mulheres foram assassinadas por dia no Brasil em 2013, segundo o Mapa. Isso significa que o Brasil é hoje o 5º país do mundo onde mais se mata mulheres, numa lista de 83 nações cujos dados vêm sendo divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Apenas El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia apresentam taxas mais elevadas do que o Brasil.
Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da área de estudos da violência da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), que coordenou o levantamento, o aumento no número de homicídios de mulheres integra um contexto de crescimento geral da violência no país nas últimas décadas. Mas os assassinatos de mulheres apresentam peculiaridades. “Há um enorme componente familiar nos homicídios de mulheres. Quando é menina, são os pais os principais protagonistas dessa violência; da adolescência em diante, são os parceiros os principais algozes das mulheres. E quando chega a idade avançada, são os filhos os principais responsáveis”, revela Julio. Segundo o relatório, metade dos assassinatos de mulheres em 2013 foi cometida por familiares diretos das vítimas, e 33% por parceiros ou ex-parceiros. “Isso exige mecanismos diferenciados de proteção das vítimas. Há uma enorme carga de reincidência nos registros de violência contra a mulher. O que se depreende de tudo isso é que não se tomam as medidas apropriadas, isto é, não criamos uma estrutura para fazer valer as leis que temos nesse momento, como a Lei Maria da Penha”, afirma Julio. Segundo o Mapa da Violência, em 2007, no primeiro ano de vigência da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir e punir com maior rigor a violência doméstica contra a mulher, houve uma redução no número de homicídios de mulheres, de 4.022 em 2006 para 3.772 em 2007. A partir de 2008, no entanto, os números voltaram a crescer, chegando a 4.762 em 2013. “Nós achamos que essa subida é produto de uma reação ao maior enfrentamento da mulher contra a violência. Há uma reação conservadora dos homens para voltar ao status anterior”, defende.
Para Sônia Coelho, da coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres, ainda há vários obstáculos para a implementação da Lei Maria da Penha. “Nos pequenos e médios municípios há uma dificuldade de se implementar os equipamentos previstos na lei. As mulheres no Brasil, principalmente as mulheres negras, têm muita dificuldade de acesso à Justiça. E a articulação das políticas públicas para que se tenha um atendimento integral às mulheres em situação de violência é um desafio muito grande ainda, principalmente nos pequenos e médios municípios do Brasil”, diz Sônia. Outro aspecto da lei que ainda encontra dificuldade para sair do papel é o enfoque dado à prevenção da violência contra a mulher. “Esse aspecto é dos mais importantes da lei, mas é pouco trabalhado. São poucas as ações educativas, poucas políticas preventivas. Nós vimos toda a discussão sendo feita no Brasil em torno dos planos de educação nos municípios, nos estados, como determinados setores vêm barrando que se faça essa discussão da igualdade de gênero e da questão da violência na escola, que está prevista na lei Maria da Penha. Hoje há todo um movimento contrário a que os currículos escolares incorporem isso”, lamenta.
Mulheres negras são as principais vítimas
Não é de hoje que os números apontam que os negros são as maiores vítimas da violência no Brasil, e no caso dos homicídios femininos isso não é diferente, como mostrou a reportagem ‘Racismo em números e cifras’, publicada na semana passada, no Dia da Consciência Negra, no site da EPSJV. A matéria mostrou que, de acordo com o Mapa da Violência, o número de mulheres negras assassinadas no país aumentou 54% de 2003 a 2013. Foram 2.875 vítimas em 2013, contra 1.864 em 2003. No mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013. Para Jurema Werneck, da Ong Criola, os números expressam a dupla vulnerabilidade das mulheres negras no país. “O fato de ter altas taxas de violência contra a mulher negra não é novidade. O Brasil é uma sociedade racista, e o tipo de racismo que a gente vive é um racismo patriarcal, que faz uma divisão desigual onde o gênero tem importância na violência”, diz. Para ela, a explicação para o fato de que a taxa de homicídios de mulheres negras vem aumentando na última década e não caindo, como vem acontecendo no caso das mulheres brancas, é o racismo que se encontra institucionalizado no Brasil. “As políticas de combate à violência não incorporaram o fator racismo, então elas se constituíram sob a lógica do privilégio racial da população branca. Todas as suas lógicas, mecanismos, instituições, profissionais entendem a violência a partir do tipo de violência que atinge as mulheres brancas, negligenciando a forma com que a violência incide sobre nós negras”, avalia Jurema. Ela dá um exemplo. “Boa parte das ações de prevenção da violência contra a mulher passam pela polícia. A mulher tem que denunciar, a polícia tem que ir lá, e isso não é suficiente para fazer muitas das mulheres negras se moverem porque na nossa experiência a polícia é um outro foco de violência, não é só o companheiro. Então, vou correr da violência do companheiro para um outro perpetrador da violência? Com a polícia do jeito que ela é hoje, não dá”.
Dados de uma pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) divulgada esse ano reforçam o argumento de Jurema. A pesquisa analisou as 301 mortes violentas de mulheres ocorridas no Distrito Federal entre 2006 e 2011 para avaliar os efeitos da Lei Maria da Penha, e identificou 96 casos considerados pelas autoras como feminicídios – quando o crime é fruto da violência doméstica ou familiar ou por discriminação pela condição de mulher. Um em cada dez destes homicídios foi cometido por uma autoridade de segurança pública, como policiais militares, civis e rodoviários. De acordo com a pesquisa, uma mulher tem três vezes mais chances de ser morta por seu companheiro se ele for uma autoridade de segurança pública. A pesquisa traz à tona também outro aspecto do racismo institucional no Brasil, apontando que os homicídios de mulheres negras têm seis vezes mais chances de não serem esclarecidos pelo Estado do que os de mulheres brancas.
Violência contra a mulher no SUS
O Mapa da Violência também traz dados do Sistema de Informação de Agravo de Notificação (Sinan) que apontam que os homicídios são o encerramento brutal de um ciclo de violência que vitima milhares de mulheres no Brasil ao longo de suas vidas. Duas em cada três vítimas dos mais diversos tipos de violência atendidas pelo SUS em 2014 foram mulheres. A violência física é a mais frequente, presente em 48,7% dos atendimentos. Em segundo lugar está a violência psicológica, constatada em 23% dos atendimentos, seguida pela violência sexual, identificada em 11% dos atendimentos. A reincidência acontece em metade dos casos de atendimentos, o que mostra que a violência contra a mulher tem um caráter sistemático e repetitivo, segundo o Mapa. Em 67% dos casos, os agressores são parentes imediatos, parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
A qualificação dos profissionais de saúde que fazem o atendimento das mulheres vítimas de violência é um fator central na reversão do quadro revelado pelo Mapa da Violência. Lançado recentemente pela Editora Fiocruz, o ‘Dicionário Feminino da Infâmia’ é um esforço nesse sentido, segundo Elizabeth Fleury-Teixeira, tecnologista do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR/Fiocruz Minas) e coorganizadora da publicação. O livro, com 187 verbetes elaborados por mais de 100 pesquisadores de diversos campos do conhecimento, tem o objetivo de ser uma obra de referência para as equipes multiprofissionais de saúde, assistência social, segurança e justiça que atendem mulheres em situação de violência. “Havia uma grande demanda por uma qualificação desses profissionais para que eles pudessem compreender a dimensão do problema da mulher que é levada para uma delegacia para fazer um registro de um estupro, de uma violência sexual, de uma agressão, de violência psicológica continuada, que trazem desdobramentos gravíssimos. Muitos de nós não estamos preparados para atender isso. E para diagnosticar de maneira correta é preciso compreender melhor o problema”, explica Elizabeth, e complementa: “Por exemplo, há um verbete no dicionário que de ‘mulheres poliqueixosas’, que são aquelas que vão frequentemente ao sistema de saúde pedir atendimento e que muitas vezes estão sofrendo processos gravíssimos de violência doméstica e não conseguem dizer. Mas se os profissionais estão devidamente qualificados, vão poder fazer essa leitura em dado momento e entender que de fato esta mulher está vivendo um quadro que precisa ser diagnosticado e tratado adequadamente”.