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Agenda controversa

Ministro interino da Saúde abre as portas para entidades médicas, grupos pró-impeachment e associações do setor privado antes de se reunir com o Conselho Nacional de Saúde ou representantes da Reforma Sanitária
Redação - EPSJV/Fiocruz | 03/06/2016 14h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Agnaldo Azevedo, da Ordem dos Médicos do Brasil, lê propostas em reunião com o ministro interino da Saúde Ricardo Barros Foto: Thamyres Ferreira / MS

No mesmo dia da criticada reunião entre o ministro interino da Educação, Mendonça Filho, e membros do Revoltados online, como o ator Alexandre Frota, outra pasta social da Esplanada abria suas portas para grupos com pautas conservadoras. Em uma audiência pública realizada na quarta-feira (25/05) no Ministério da Saúde (MS), o ministro interino, Ricardo Barros, recebeu o movimento pró-impeachment Vem Pra Rua, a Ordem dos Médicos do Brasil, a Associação dos Estudantes de Medicina (Aemed), o Conselho Federal de Medicina, Associação Bahiana de Medicina, dentre outras entidades – todas ligadas à categoria dos médicos. Segundo divulgou o MS, as entidades apresentaram “sugestões para a melhoria do SUS” e “ações voltadas à formação e atuação dos médicos no país”.

Contudo, as pautas de algumas dessas ‘entidades’ parecem ir não ao encontro da “melhoria do SUS”, mas da sua extinção. É o caso da Aemed, que no dia 18 de maio divulgou em sua página no Facebook que estava “estabelecendo negociações e contatos” com o governo federal no sentido de promover “um debate sério e franco acerca da insustentabilidade econômica do Sistema Único de Saúde”. “Estamos convictos de que um novo sistema de saúde deve nascer no Brasil, mais eficiente, racional e justo, para que atendamos os brasileiros, especialmente os que mais precisam, com maior dignidade”, diz o texto publicado na rede social. Entre outras pautas divulgadas pela Aemed, se encontram o ‘desarme’ do que a associação considera uma “verdadeira bomba-relógio construída pelo último governo” e a mudança em programas como o Mais Médicos, o Provab, a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem).

Outra pauta cara à Aemed atende pelo nome ‘Liberdade na saúde’. Membros da direção nacional da associação têm procurado parlamentares para apresentar o ‘projeto’ que pretende aprovar regras para que os profissionais da medicina que atuam na iniciativa privada ou mesmo no serviço público escolham se querem atender ou não pacientes. As justificativas para a desassistência podem ser, inclusive, diferenças ideológicas. Em um vídeo publicado no Facebook, a Aemed articula com o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP-RS), segundo a associação, uma “referência do movimento liberal brasileiro”, “rumos e projetos”: “Medicina, saúde e liberdade. Essa é a agenda!”, escrevem. 

Um texto publicado pela think tank liberal ILISP assinado pelo médico Leonardo Blume dá mais clareza sobre os argumentos que sustentam o Liberdade na saúde. Segundo ele, “um médico contratado, funcionário privado ou público, não há a obrigação de atender eletivamente” e “definir a saúde como direito é uma das piores distorções sociais e positivistas do estado (sic.)”. Embora não tenham ligação formal, a Ilisp tem sede em São Paulo e foi criada em junho de 2014. Um mês depois, foi a vez da criação da Aemed, com sede na capital paulista, ligada como departamento científico acadêmico da Associação Médica Brasileira (AMB).
A AMB, junto com o Conselho Federal de Medicina, foi rápida em se posicionar sobre o governo interino. No próprio dia 12 de maio, as entidades publicaram uma carta saudando o “novo presidente da República, Michel Temer”. “A AMB e o CFM colocam-se à disposição para discutir um projeto de saúde para o Brasil, que contemple o Estado brasileiro, e não somente um Governo, ou um Partido”, diz o texto divulgado pela assessoria do Conselho, assinado pelos presidentes do CFM, Carlos Vital, e da AMB, Florentino Cardoso.

Outro grupo que comemorou a abertura das “portas do diálogo” pelo MS foi a Ordem dos Médicos do Brasil. Segundo texto publicado no dia 26 de maio pela OMB, o ministro interino “garantiu que não só ouvirá as entidades médicas, como pactuará suas decisões”. A expectativa, porém, seria uma novidade no SUS, que já tem uma instância formal de pactuação de decisões – o Comitê Intergestores Tripartite (CIT) –, formado pelos gestores da saúde das três esferas de governo, além do Conselho Nacional de Saúde, que é o órgão formal de controle social do Sistema. Não há previsão de preferência das entidades médicas – em detrimento das outras categorias profissionais da saúde – no CNS ou assento para qualquer entidade profissional na CIT.

A OMB também divulgou algumas das pautas debatidas na reunião. Dentre elas, o estímulo às parcerias público-privadas caracterizadas como “estímulo à interação entre estado e sociedade” e a atualização de tabelas de procedimentos pagos a prestadores de serviços para o SUS. Outra demanda é a de que médicos tenham preferência em relação a outras categorias na gestão de estruturas ligados ao MS. Pedem, por exemplo, a reformulação dos critérios de escolha de 1/5 da diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que passaria a ser feita a partir de uma lista tríplice apresentada pela “classe médica” por eleição nacional. O Ato Médico, bandeira antiga da categoria, foi novamente levantada: as entidades querem garantir ao profissional médico a prerrogativa do diagnóstico, tratamento, prognóstico e procedimentos invasivos. A pauta é motivo de disputa no campo da saúde entre os médicos e outras categorias, como enfermagem, psicologia, odontologia, fisioterapia, farmácia, fonoaudiologia, etc. Segundo a Ordem, também esteve na mesa o pleito de que o Ministério da Saúde crie uma carreira de Estado só para os médicos, “com remuneração e que incentive a interiorização, em similaridade com o que hoje ocorre na carreira jurídica”.

A maior parte das pautas visa mudanças em políticas e programas implantados ao longo da gestão dos governos petistas, como a abertura de escolas de medicina, o Programa Mais Médicos – que deve ser “revisado” –, a exigência de que todos os médicos estrangeiros se submetam ao Revalida, exame que foi flexibilizado para que os estrangeiros vinculados ao Mais Médicos tivessem licença para atuar no país. "A Ordem dos Médicos do Brasil não aceita o acordo do Ministério da Saúde com a OPAS que negocia os recursos dos ‘Médicos Cubanos’ onde a maior parte dos ‘Recursos’ ficam com Cuba. São ‘Bilhões de Dólares’ desviados do nosso país e o Acordo deve ser Interrompido Imediatamente”, teria dito ao fim da reunião o presidente da OMB, Dhiogo Seronni segundo o texto publicado pela entidade.

Coalizão Saúde

Na mesma quarta-feira (25/05), o Ricardo Barros participou de outra reunião, em São Paulo. Os interlocutores da vez foram as entidades privadas que se organizam em torno do Instituto ‘Coalizão Saúde’. Tendo à frente Claudio Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, a iniciativa reúne entidades como a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp) – que teve atuação preponderante na defesa de projetos polêmicos, como a autorização da abertura do capital estrangeiro na saúde –, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), a Associação Brasileira do Atacado Farmacêutico (Abafarma), totalizando 17 entidades e empresas. Criado em outubro de 2014, o Instituto tem um “manifesto” em que as entidades defendem “maior segurança jurídica” para as parcerias público-privadas (PPPs), parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDPs) e organizações sociais (OSs).

O encontro com a Coalizão Saúde não consta na agenda do ministro, divulgada no site da pasta. Na data, consta apenas uma “reunião com a diretoria do Hospital Israelita Albert Einstein”. Contudo, matéria publicada pelo MS informa em linhas gerais que o ministro se reuniu com a Coalizão Saúde e na ocasião “foram colocadas questões relacionadas à empregabilidade e oportunidades para melhorar o sistema de saúde brasileiro”.

Críticas

Os encontros do ministro interino com movimentos pró-impeachment, entidades médicas e representantes do setor privado está sendo avaliada por pesquisadores e entidades como uma abertura da pasta à agenda liberal e conservadora na saúde. “Não surpreende que o ministro com os posicionamentos que vem apresentando viesse a dialogar com eles. É o equivalente à conversa que o ministro da Educação teve com Alexandre Frota. MBL [Movimento Brasil Livre], Revoltados online, Vem pra Rua”, afirma Danilo Amorim, coordenador geral do Diretório Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), instância formal de representação dos alunos do curso no país. “É previsível que ele se reunisse com esses apoiadores do golpe, as entidades que apoiaram o golpe. Ele está fechando o ciclo”, diz Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Com o contexto político que a gente tem vivenciado, a Denem tem se colocado fortemente na defesa dos direitos, principalmente na defesa do direito universal à saúde e pela democracia. Não é à toa que enquanto a Aemed se reúne com o ministro golpista para levar projetos que desestruturam e comprometem gravemente o direito universal à saúde, a Denem na terça (24/05) se mobilizou com estudantes de outros cursos em um ato em Brasília que teve mais de mil participantes. Foi uma iniciativa do movimento estudantil para mostrar para o ministro – que tinha dito na semana passada que o SUS era inviável, que o SUS era muito grande, que não dava para garantir o direito universal à saúde – que a gente está na rua em defesa do Sistema Único e que, ao contrário, o SUS ainda é pequeno frente às necessidades da população brasileira. Precisa ser ampliado, com garantia de financiamento adequado para que efetivem os direitos constitucionais”, completa Danilo.

Procurado pela reportagem, o Conselho Nacional de Saúde afirmou que o ministro tinha uma reunião marcada com o presidente do CNS, Ronald Santos no dia 18 de maio que, no entanto, foi desmarcada sem justificativa. A assessoria de comunicação afirmou que o Conselho tiraria uma posição sobre as agendas do ministro com entidades médicas e privadas durante a reunião ordinária do pleno, que acontece dias 2 e 3 de junho em Fortaleza no âmbito do XXXII Congresso do Conasems. O ministro interino esteve presente no evento, onde foi alvo de protestos e vaias dirigidos por parcela dos participantes. Foi somente na quarta-feira, que Ricardo Barros se encontrou pela primeira vez com os conselheiros do CNS.

Outra crítica dirigida a Barros nesta última semana partiu de dentro do próprio Ministério da Saúde. Em carta aberta de demissão Fábio Mesquita, ex-diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, afirmou que áreas técnicas vêm perdendo espaço na pasta em eventos internacionais importantes. Ele afirma que assessores do ministro interino argumentaram que seria importante enviar uma delegação menor a dos anos anteriores à Assembleia Mundial de Saúde – evento anual da Organização Mundial da Saúde (OMS) que acontece na Suíça – o que impediu que os técnicos diretamente envolvidos com a política de Aids, por exemplo, participassem da reunião de alto nível sobre o tema, que define políticas globais para a área –, mas que, contraditoriamente, escreveu Mesquita, a esposa do ministro Ricardo Barros compôs a delegação. O ex-diretor também afirma na carta que o atual secretário Executivo, Antonio Nardi, atuando interinamente como ministro, despachou um documento proibindo a participação do diretor ou de qualquer outro funcionário, consultor ou colaborador do Departamento de DST no Encontro de Alto Nível das Nações Unidas em HIV/AIDS, que será realizado entre os dias 8 e 10 de junho, nos Estados Unidos. O Portal EPSJV questionou a assessoria de comunicação do Ministério sobre o assunto, mas não obteve resposta sobre os dois pontos.

Desde a posse do ministro interino e em meio a declarações polêmicas repercutidas pela imprensa, diversas entidades e movimentos têm se posicionado contra o que consideram uma tentativa de desmonte do SUS. Na última quinta-feira (02/05), o Fórum de Coordenadores de Pós-Graduação em Saúde Coletiva publicou uma nota expressando preocupação com os rumos que o governo interino pode tomar na saúde. “Nós que dedicamos nossa produção intelectual à formação de pesquisadores, docentes e profissionais de Saúde Coletiva não podemos aceitar o desmonte do SUS. Somos francamente favoráveis à manutenção do Programa Mais Médicos em todas as suas faces de interferência na expansão de cobertura da atenção básica, ampliação do acesso à educação e formação de profissionais em equipes de saúde e construção de laços interprofissionais na integralidade do cuidado; somos francamente favoráveis às políticas de gênero e de diversidade sexual na composição do trabalho em saúde, em todas as ações intersetoriais com a saúde e na saúde escolar. Defendemos a expansão e qualificação da universidade pública com a máxima democratização do acesso, assim como a expansão dos programas de residência em saúde, uni e multiprofissionais, para o conjunto dos egressos da educação superior nessa área e sua radical manutenção como critério de credenciamento aos hospitais de ensino, assim como na efetiva construção de uma rede SUS-escola.”, reforça a nota.

Na mesma linha, o Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), critica as ações do governo interino de extinguir ministérios e impor restrições a direitos sociais. “Cabe destacar também a manifesta intenção de revisar o direito universal à saúde, o que implica acentuar o subfinanciamento público do SUS e a precarização dos seus serviços, beneficiando os interesses da iniciativa privada na saúde, transformando o inalienável direito humano à vida em mercadoria. Quando o Estado renuncia à sua obrigação de garantir os direitos sociais, delegando tais atribuições às leis do mercado, o resultado só pode ser o aumento da exclusão e da injustiça social e ambiental, que como todos e todas sabemos, se expressa no sofrimento dos setores mais vulneráveis da população.”, destacam os pesquisadores.

Posição do Ministério da Saúde

A assessoria de comunicação do Ministério da Saúde foi procurada na segunda-feira (30/05) pelo Portal EPSJV, que apresentou 13 perguntas para a pasta, dentre elas, pedidos de esclarecimento sobre pautas e temas que foram debatidos nas reuniões. Na tarde desta sexta-feira, o MS encaminhou uma nota em que afirma que “reuniões como estas, com diversas categorias profissionais e entidades, continuarão acontecendo para melhorar a gestão, satisfação, acesso e resultados diretos nos indicadores de saúde da população”, embora na agenda do ministro não conste nenhuma outra categoria profissional além dos médicos. A nota diz também que Ricardo Barros “tem dialogado com diversos atores e com a sociedade de modo a promover uma gestão transparente e participativa”.

O ministro interino, segundo a nota, “tem assegurado que o Ministério não tomará qualquer decisão sem antes consultar e pactuar com todos para construir uma gestão com ampla participação social no Sistema Único de Saúde” e “buscará ferramentas de sucesso implantadas nos estados e municípios que possam ser incorporados na gestão federal, a fim de possibilitar uma melhoria na gestão dos recursos disponíveis”. A nota diz ainda que “não haverá extinção de ações já consolidadas, e programas como o Mais Médicos serão mantidos e aprimorados” e que “os médicos brasileiros serão estimulados a participar do programa”, embora não detalhe em termos esse estimulo se daria. Por fim, diz que “as parcerias com o setor privado, as PDPs, serão aprimorados de forma trazer o melhor benefício ao SUS e aos cidadãos”.