Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Agentes comunitários de saúde relatam dificuldades para o exercício da profissão

Categoria luta pelo reconhecimento e regulamentação da profissão; cumprimento da lei 11.350 é hoje a principal reivindicação dos ACS.
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 27/11/2009 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Uma categoria que tem orgulho do que faz, mas que não tem seu valor reconhecido e sua profissão regulamentada. Essas são algumas das conclusões do relatório produzido a partir dos trabalhos de grupo realizados no Seminário ‘A luta pelo reconhecimento e pela regulamentação do trabalho do Agente Comunitário de Saúde (ACS) no contexto nacional e da legislação vigente’. O evento foi realizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), nos dias 24 de outubro e 14 de novembro.



O cumprimento da lei 11.350/2006 é hoje a principal reivindicação dos ACS, pois eles reconhecem que a luta por outros direitos está subordinada a esta. Essa lei, que não é cumprida no Rio de Janeiro e em muitas outras cidades brasileiras, regulamenta a Emenda Constitucional 51, que estabelece, dentre outras coisas, que esses trabalhadores devem ter vínculo direto com o município. No Rio de Janeiro, como em muitos outros lugares, os ACS são contratados por organizações não-governamentais (ONG) que, a partir de 2010, serão substituídas por Organizações Sociais (OS).



Questionado pelos ACS sobre a contratação dos profissionais por meio das OS, no lugar da efetivação definitiva, tendo em vista que muitos ACS em atividade já passaram por processos seletivos públicos, Gert Winner, coordenador da Estratégia Saúde da Família (ESF) da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, disse que as OS “não são a contratação dos seus sonhos”, mas são o possível neste momento. “Estamos tentando legalizar o cargo de ACS no município do Rio, esse processo está no gabinete do prefeito. Quando o cargo for criado, vai ser feita a contratação direta dos ACS, sem os intermediários, mas ainda não definimos qual será o regime”, afirmou Gert, referindo-se à indefinição sobre o vínculo celetista (regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas) ou estatutário. Ele acrescentou que a previsão do governo municipal é que a mudança dos ACS das ONGs para as OS comece em janeiro e seja concluída em março de 2010.



De fato, a falta de garantia dos direitos trabalhistas é uma questão comum entre os ACS do Rio de Janeiro. Como são contratados por meio de diversas ONGs para prestar serviços para o governo municipal, os contratos de trabalho variam de acordo com o contratante e são inclusive desconhecidos por muitos deles. Dessa forma, há diferenças nos valores de salários e na concessão de benefícios.



Outra luta dos ACS atualmente é pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 391/2009, que estabelece um piso salarial e plano de carreira para a categoria. Segundo a assessora jurídica da Confederação Nacional dos ACS, Elaine de Almeida, o texto prevê que o governo federal repasse o dinheiro necessário para financiar integralmente o pagamento do piso salarial.



Formação técnica e condições de trabalho



A falta de qualificação profissional dos ACS também é um problema identificado, não só no município do Rio de Janeiro como em quase todo o Brasil. Muitos não fizeram nem a primeira etapa do curso técnico e, de acordo com o coordenador da ESF no município, não há previsão para que essa formação mais completa seja oferecida aos ACS do Rio. Além do aspecto propriamente formativo, a assessora jurídica da Conacs destacou outro aspecto importante dessa luta. “Quando o plano de carreira estiver aprovado, o curso técnico será ainda mais importante para a categoria”, destacou Elaine Alves. No município, está acontecendo um projeto-piloto de formação técnica completa (1200 horas) dos ACS que trabalham no Centro de Saúde - Escola Germano Sinval Faria da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (CSEGSF/ENSP/Fiocruz), atuando com a população de Manguinhos. A iniciativa é da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e o próprio Centro de Saúde.



De acordo com o relatório, os ACS se queixam também de questões como a falta de segurança, tendo em vista que muitos atuam em áreas de conflito, dificuldades de relacionamento com os contratantes e excesso de famílias atendidas por um mesmo ACS. A Portaria 648, do Ministério da Saúde, determina que cada agente deve atender até 150 famílias ou 750 pessoas, mas, no município do Rio de Janeiro, há casos em que um ACS atende até 280 famílias. Os desvios de função, que acarretam sobrecarga de trabalho, também são comuns na rotina de muitos ACS.



Outra queixa comum dos ACS são os problemas de saúde causados pelas más condições de trabalho. Hipertensão, depressão e tendinite são algumas das doenças relatadas por eles, que também reclamam de não receberem atendimento nas unidades de saúde em que trabalham.



O relacionamento com a equipe de trabalho também é um problema para a maior parte dos ACS. Eles relatam que em algumas unidades os ACS participam das reuniões de equipe e se sentem bem integrados com os outros profissionais, mas em outras eles se sentem excluídos por não participarem das reuniões ou não terem direito à fala quando participam. O assédio moral e a ‘política do medo’, com ameaças aos ACS para que não reivindiquem melhores condições de trabalho ou participem de atos de mobilização da categoria, também são freqüentes, segundo eles.



Para melhorar as condições de trabalho da categoria no município do Rio de Janeiro, os ACS reivindicam a criação do cargo no governo municipal, além do investimento em qualificação profissional, recebimento de benefícios, acompanhamento psicológico, melhora no fluxo de informações sobre as questões relacionadas ao seu trabalho e recebimento de equipamentos adequados para o trabalho. Eles também querem participar das reuniões de equipe e ter acesso a informações sobre cursos e palestras voltados para a categoria, além da liberação para a participação nesses eventos, assim como acontece com os médicos e enfermeiros.



Articulação da associação dos trabalhadores



Para os ACS, de acordo com o relatório, a Associação Municipal dos Agentes Comunitários de Saúde (Amacs), criada em janeiro de 2007, tem a função de articular, organizar, reivindicar, lutar, representar, mobilizar, defender os direitos, reivindicar a formação profissional e buscar a melhoria das condições de trabalho da categoria. Manter a categoria informada sobre seus direitos também é apontado pelos ACS como uma das atribuições da associação.



Os ACS entendem que é necessário fortalecer a Amacs e, para isso, propõem que a associação faça reuniões nos diversos módulos com os ACS para que os trabalhadores se sintam mais envolvidos na luta e sejam estimulados a aderir à associação. Os ACS também reivindicam que a representação da Amacs seja escolhida de forma democrática, por eleição, de forma a assegurar a representatividade da categoria.



Os representantes da Amacs, por sua vez, relatam que a associação encontra dificuldades para a organização dos ACS e a associação dos trabalhadores à entidade. Entre as causas desses problemas estão o tamanho do município do Rio de Janeiro, as dificuldades de locomoção e de conciliação entre o trabalho e o movimento, a passividade de muitos agentes, a falta de recursos da associação e de interesse da categoria pelo movimento. Como os grupos de ACS estão localizados em diversos locais da cidade, a dificuldade de comunicação entre os módulos também é frequente.



Os ACS reconhecem que deve haver maior organização da categoria para, futuramente, constituírem uma federação no Rio de Janeiro. Eles entendem que devem estar unidos para fortalecer a Amacs e a categoria, resistindo à precarização com uma mobilização coletiva.



Ao refletirem sobre o papel de cada profissional na luta coletiva, os ACS indicaram a necessidade de buscar mais informações sobre seus direitos e deveres e promover a divulgação dessas informações, além de buscar maior integração com os outros colegas de trabalho para conhecer a realidade da categoria em outros locais.



Outras realidades



Durante o seminário, representantes das associações de ACS de São Gonçalo e Itaboraí fizeram um breve relato sobre a realidade da categoria em seus municípios. Francisco Vilela, presidente da Associação de ACS de São Gonçalo, contou que, após muita luta dos ACS, o município criou, em 2008, o cargo de Agente Comunitário de Saúde. Em novembro deste ano, por meio de uma intervenção do Ministério Público, todos os ACS que foram contratados após a participação em um processo seletivo tiveram sua carteira de trabalho assinada. Francisco reafirmou a importância da união da categoria para conquistar seus direitos. “É importante a união de todo o estado do Rio de Janeiro e também do Sudeste, que não é unido e não briga pela mesma coisa”, finalizou.



Em Itaboraí, os ACS conseguiram se tornar estatutários, com todos os direitos dos servidores públicos, após a aprovação da Lei Complementar 66, em 2008, que criou o cargo de Agente Comunitário de Saúde no município com dotação orçamentária para o pagamento dos profissionais. “É necessário querer e buscar seus objetivos. A luta deve ser construída e a Conacs é muito importante para isso. Queremos que todos os ACS tenham seus direitos respeitados”, disse o presidente da Associação de ACS de Itaboraí, Carlos Albuquerque.



Organizações Sociais na Saúde



A pesquisadora da EPSJV, Valéria Castro, fez uma apresentação sobre Organizações Sociais na Saúde. “Na década de 1990, houve uma redução do papel do Estado, transferindo responsabilidades para o conjunto da sociedade. Com isso, surgiram muitas formas de novos vínculos trabalhistas, inclusive as ONGs, que se tornaram mediadoras de mão-de-obra terceirizada, no lugar do Estado”, explicou.



Segundo ela. o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare) elaborou o anteprojeto de lei e o Decreto de Regulamentação das Organizações Sociais em 1995. Dois anos depois, a Medida Provisória nº 1591 estabeleceu critérios para definir, sob a denominação de Organizações Sociais (OS), as entidades que, uma vez autorizadas, estariam aptas a serem “parceiras do Estado”, na condução da “coisa pública”. Em 1999, a Lei Federal nº 9790 instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), na esfera federal de governo.



Na cidade do Rio de Janeiro, a Lei Municipal nº 5026, de 19 de maio de 2009, decretou a aprovação do Regulamento Geral de Qualificação e Contratação das Organizações Sociais no âmbito da Administração Direta e Indireta do município.



Vínculos trabalhistas – As diferenças entre os tipos de vínculos trabalhistas também foram abordadas pela pesquisadora durante sua apresentação. Valéria explicou as diferenças entre estatutários, celetistas e outros tipos de vínculos.



Os estatutários são regidos pelo Regime Jurídico Único e são trabalhadores efetivos (servidores públicos), com estabilidade no emprego após três anos de admissão e que passam por avaliações de desempenho. Têm direitos como férias, décimo terceiro salário, afastamento para tratamento de saúde, insalubridade, licenças sem vencimento e para estudo e aposentadoria. Além disso, só são demitidos em virtude de sentenças judiciais, processos administrativos ou insuficiência de desempenho.



Os celetistas são regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e são empregados públicos ou trabalhadores terceirizados, que podem ser demitidos a qualquer momento e não passam por avaliações periódicas. Têm direitos como férias, décimo terceiro salário, licença para tratamento de saúde, insalubridade e aposentadoria pelo INSS. Em caso de rescisão do contrato de trabalho, têm direito ao FGTS e ao auxílio desemprego.



Já os outros tipos de vínculos trabalhistas, como cooperativas e ONGs, por exemplo, no qual se encaixam os ACS do município do Rio de Janeiro, não garantem aos profissionais os direitos trabalhistas e oferecem uma vinculação provisória.