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Ameaça de impeachment atravessa 15ª Conferência Nacional de Saúde

Conjuntura política cai no colo dos delegados reunidos em Brasília e influencia os rumos da Conferência.
André Antunes, Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 10/12/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Plenária de abertura da Conferência se transforma em 'ato' Foto: Maíra Mathias/EPSJV

Tinha uma crise no meio do caminho. E ela atingiu em cheio o curso da 15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada entre 1º e 4 de dezembro deste ano, exatamente em Brasília. Mal tinha se encerrado o segundo dia do encontro quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, anunciou a aceitação do pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Para o bem ou para o mal — dependendo de quem faz a análise —, a partir daí a rotina dos mais de quatro mil participantes — principalmente dos quase três mil delegados — da 15ª nunca mais foi a mesma. Da organização de um ato “em defesa da democracia” até a ida não programada da presidente da República à Conferência, formou-se para o controle social um novo enredo, que se expressou principalmente em sucessivas manifestações de apoio à Dilma — em geral, com adesão massiva. Para alguns, o que aconteceu na conferência foi um ato de defesa do mandato presidencial e, consequentemente, da democracia; para outros, assistiu-se a uma explícita e incondicional defesa de um governo que a conferência deveria ter autonomia para criticar. Entre uma versão e outra, essa verdadeira ‘invasão’ da conjuntura trouxe para a 15ª Conferência muita festa — com canto, dança e palavras de ordem —, mas, de forma mais silenciosa, também críticas, protestos e até confrontos físicos.

A verdade é que o grito de “Fora Cunha” já tinha ecoado alto na cerimônia de abertura do encontro, acompanhado por uma salva de vaias ao ministro da Saúde, Marcelo Castro, do mesmo PMDB do presidente da Câmara. Na ocasião, no entanto, a presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Maria do Socorro Souza, ‘tomou as rédeas’ da mesa fazendo com que se diferenciasse a crítica. Sobre Cunha, ela alegou que a “institucionalidade” a impedia de repetir as palavras de ordem que vinham do auditório, mas garantiu que aquele era também o “seu grito”. Já com Marcelo Castro — que ‘recebeu’ o ministério da Saúde cerca de dois meses antes numa negociação que visava contornar a crise política ainda em curso —, o tom foi de cortesia: numa clara tentativa de diminuir o constrangimento do ministro, Socorro quebrou o protocolo pegando o microfone do mestre de cerimônias para, “com satisfação”, anunciar pessoalmente sua fala. “O ministro Marcelo Castro tem sido respeitoso com o controle social. E a gente coloca aqui na condição de presidente dessa conferência a sua fala”, disse, fazendo com que as vaias iniciais dividissem espaço com alguns aplausos.

O que mudou com a notícia da aceitação do pedido de impeachment foi que a rejeição a Cunha — justificada, inclusive, pela sua atuação legislativa em pautas que dizem respeito à saúde — se tornou grito casado de apoio à presidente Dilma. E, na opinião dos militantes que, em clara minoria, se indignaram com os rumos que a conferência tomou, foi-se junto a “institucionalidade” que o Conselho Nacional de Saúde deveria manter para garantir a manifestação democrática de diferentes opiniões e visões políticas e partidárias. “A presidente do Conselho Nacional de Saúde conseguiu manchar a gestão dela nessa conferência, quando trouxe para dentro a política partidária que tem que ser resolvida no Congresso e não aqui”, protestou Frank Lima, delegado eleito como representante do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do Acre, que, junto com outros participantes do estado, manifestava verbalmente sua indignação. “A presidente da República pode ir aonde quiser. A presidência do Conselho é que não podia politizar a conferência. Ontem [3 de dezembro] a mesa diretora do Conselho ficou aqui dentro fazendo campanha pró-Dilma. A mesa tem que se posicionar de forma independente”, criticou.

A presidente do CNS nega que tenha havido “partidarização” da conferência ou mesmo qualquer defesa do governo. Segundo Maria do Socorro, entre a mesa de abertura — quando ela freou sua manifestação pessoal em nome da institucionalidade — e a plenária final, o que mudou foi a conjuntura. “Entre os dias 1º e 3 de dezembro, nós tivemos um agravamento da agenda que está tramitando, em especial, no Congresso, com uma ameaça concreta de golpe à democracia brasileira”, justifica. E completa: “A gente não tinha outra escolha ali”. Segundo ela, embora tenha tentado “dar um tom político à conferência” desde o começo, a mesa de abertura não era um espaço adequado para “colocar todas as radicalidades”. “Tinha um público novo ali. Era importante também que a gente conhecesse melhor o posicionamento da maioria do público para ver se o que tínhamos como posição política era a posição da maioria”, explica.

‘Democracia e saúde’

André Antunes/EPSJV

O volume dos gritos de repúdio a Eduardo Cunha e apoio à presidente, que ecoaram na plenária na noite de quinta-feira e na manhã de sexta, não deixa dúvidas de que se expressava ali, de fato, uma maioria. Mas, seja em protestos silenciosos — principalmente do lado de fora do auditório —, em barulhentas reações à condução dos trabalhos ou mesmo com tímidas vaias, delegados de diferentes estados criticaram os rumos que a conferência tomou.

Tudo começou quando, depois de um dia inteiro de trabalho de grupos, os delegados, convidados e participantes livres se dirigiram ao auditório para a abertura oficial da plenária final da 15ª Conferência Nacional de Saúde. Na tarde daquele mesmo dia, militantes e movimentos sociais ligados à saúde já tinham organizado um ato contra o impeachment em frente ao centro de convenções. Com uma faixa em destaque que dizia “Saúde é democracia. Não vai ter golpe”, o movimento não reuniu muitas pessoas — entre 150 e 200, num universo de mais de quatro mil participantes — mas também não gerou reações contrárias. Foi lá, no entanto, que Maria do Socorro lançou a expectativa de que a presidente Dilma talvez comparecesse ao encontro. E fez um apelo: “Se a nossa grande líder chegar aqui na 15ª Conferência, eu quero que toda a classe trabalhadora, que todo usuário, que todas as autoridades abracem a presidente Dilma e a carreguem para dentro da 15ª Conferência Nacional de Saúde”. Questionada sobre as críticas à participação do CNS no movimento, ela se defende: “No ato do lado de fora [do centro de convenções], eu estava como cidadã. Ali sou eu, Socorro, e disso eu não abro mão”.

O fato é que pouco depois se divulgou a informação de que a conferência receberia a visita da presidente Dilma no final da tarde daquele mesmo dia. Quando acabaram os trabalhos da maior parte dos grupos, uma pequena multidão de pessoas se aglomerou na porta do auditório, disputando um lugar para ver a chefe de Estado. Naquele espaço, naquele horário, de acordo com a programação, deveria ter início a plenária final da 15ª Conferência. “Está aberta a plenária final mais popular desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde”, disse Socorro, de cima de um palco tomado de gente, em meio a muitos aplausos e algumas poucas vaias. Naquela noite, nenhuma discussão ou votação aconteceu: com muitos gritos de “Fora Cunha”, “Não vai ter golpe” e “Olê, olê, olá, Dilma, Dilma”, militantes de diversos movimentos sociais e participantes da conferência subiram no palco, conformando uma verdadeira festa de cantos e bandeiras. Do plenário, uma parte cantava junto; outros apenas aguardavam, observando; e, de alguns pontos mais isolados, ainda era possível ouvir gritos que perguntavam: “cadê a conferência?”.

Do lado de fora do auditório, um grupo de delegados — nesse momento, principalmente do estado de São Paulo — reclamavam indignados. “Eu também não sou a favor do golpe. Mas não é disso que se trata. O Conselho Nacional de Saúde tinha que se posicionar porque nós viemos aqui para a conferência discutir uma política de Estado, não o apoio ao governo. Isso está se transformando num palanque, num ato político-partidário”, criticou Paulo Luis de Souza, delegado de São Paulo. Socorro reage: “Dizer que a questão do impeachment é partidária é não compreender o que está em disputa. E ali nós tínhamos dentro do plenário todas as representações político-partidárias e ideológicas. Agora, quem diz que é partidário é porque tem posição a favor do impeachment a princípio”. Em seguida, ela relativiza essa análise lembrando que havia “gente que foi pela primeira vez” à conferência e que “não está na militância”. “Tem gente que não tem militância em movimento social, movimento sindical ou mesmo partidos políticos. E com certeza essa crítica, para essas pessoas, tem todo o sentido. E eu vou respeitar quem tem esse olhar”, diz, argumentando que há governadores de todos os partidos políticos — inclusive do PSDB — que têm se posicionado contra o impeachment.

André Antunes/EPSJV

“Cadê a conferência?”

A caracterização dos que expressaram críticas à 15ª como defensores do golpe ou de uma pauta de direita foi um dos principais incômodos manifestados pelo movimento estudantil presente na Conferência. Reunindo representantes de Executivas Nacionais de diversos cursos da área da saúde, o grupo, que criou a hashtag #Ocupa15CNS nas redes sociais, espalhou cartazes pelo centro de convenções e exibiu, no meio do discurso da presidente da República, uma faixa perguntando: “Cadê a conferência?”. “Não tem como a gente não ser associado aos ‘coxinhas’, a essa galera fascista. Porque essa é uma condição confortável do pessoal governista: colocar que todas as críticas são à direita”, queixa-se Priscila Alves, delegada pelo estado da Paraíba, integrante do Fórum de Saúde do estado e do Coletivo de Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Suelen Nunes, da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem) e também delegada da Conferência, denuncia o que considera uma “falsa dualidade” que teria se expressado no encontro. “Eu acho importante começar falando dessa dualidade porque muitas pessoas nos olham e acham que somos um movimento de direita, contra a Dilma. As pessoas acham que o fato de a gente estar se colocando a favor da conferência é se colocar contra a presidenta ou a favor do impeachment. Não é nada disso. O que a gente faz é questionar o quanto o controle social está sendo valorizado, priorizado no processo da conferência”, esclarece a estudante, cujo grupo criou o mote “Cunha sai. Conferência fica”.

Reivindicar a “conferência” naquele momento não significava, na avaliação de Suelen, uma defesa de que a saúde deve ser discutida descolada da conjuntura. “Essa é a confusão que não pode ser feita”, alerta Suelen. “Saúde é indissociável da compreensão do sistema capitalista em que a gente vive, do sistema econômico, político, social, da crise ideológica e política que o país vive neste momento”, reconhece. A questão, diz, é que a conjuntura entrou na conferência como afirmação de uma posição e não como oportunidade de debate. Na avaliação da estudante, perdeu-se uma grande chance de discutir, de fato, a relação da conjuntura com as políticas de saúde. “Ontem [3 de dezembro], quando deveria ter acontecido o início de uma plenária, poderia ter sido aberto um espaço de debate sobre a conjuntura atual. A gente não iria ferir a conferência e, com certeza, haveria uma pluralidade de opiniões, desde que elas fossem ouvidas e respeitadas. Ao invés de determinar simplesmente que a gente passaria o início da plenária cantando músicas da Dilma, a gente poderia ter debatido de fato, com clareza, trazendo elementos conjunturais para o debate nacional e para o debate em saúde, sobre como isso dialoga dentro de uma conferência nacional. Isso seria um ganho político muito grande”, lamenta. “Não era esse o objetivo da conferência”, responde a presidente do Conselho Nacional de Saúde, defendendo que discussões aconteceram nas plenárias populares e livres e nas pré-conferências realizadas e que, mesmo na etapa nacional, o “contraditório” esteve presente, por exemplo, com a vinda de convidados internacionais de 12 países com realidades muito distintas — que participaram também do I Encontro Latino-Americano de entidades e Movimentos Populares pelo direito universal à saúde, realizado dias antes da conferência.

Agilidade X debates

No início da Conferência Nacional de Saúde, os delegados da 15ª CNS tinham pela frente 625 proposições do relatório consolidado da etapa estadual para discutir e decidir quais entrariam no relatório final. De acordo com o Conselho Nacional de Saúde, apenas 7% delas foram levadas para a plenária final. Durante dois dias, os grupos de trabalho reunidos em torno dos oito eixos da conferência aprovaram 80% das propostas e rejeitaram 13% com mais de 70% dos votos, em metade mais um dos grupos. Isso significa que 500 proposições foram diretamente para o relatório final da conferência sem ter que passar pela plenária final.

A agilidade na votação das propostas foi destacada como um dos pontos positivos da Conferência em um artigo em que a presidente do CNS, Maria do Socorro, fez um balanço do evento. Para alguns participantes, no entanto, o custo da rapidez foi uma metodologia que priorizou a agilidade do processo em detrimento da qualidade dos debates. “Não houve um equilíbrio entre a agilidade e a valorização do debate”, resume Geandro Pinheiro, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que participou da 15ª como convidado. Mas ele contemporiza: “Eu sei que é um desafio para a organização de um evento dessa magnitude garantir agilidade para terminar nos quatro dias de trabalho sem atrapalhar o debate”. Ele acredita, no entanto, que isso prejudicou o que deveria ser o principal objetivo da conferência. “Conferência não serve só para ter relatório final. Ela é um espaço de formação, articulação, apropriação de debates. Deveria ter havido mais equilíbrio entre a discussão política e a agilidade necessária”, reitera.

Entre os aspectos da metodologia considerados problemáticos estava a regra que permitia apresentar nos grupos de trabalho apenas destaques de supressão parcial ou total das propostas apresentadas, sem a possibilidade de que fossem feitas alterações na redação. As propostas que não apresentassem destaques de delegados para supressão iam diretamente para uma votação sobre se permaneciam ou não no relatório. “Isso esvaziava a possibilidade de que você se pronunciasse. Se a ideia é só aprovar proposta, tudo bem. Mas se a ideia é construir uma consciência sobre o SUS, debater com todos que vêm das diversas regiões do país, acho complicado”, avalia Paulo César Ribeiro, diretor da EPSJV/Fiocruz, que também foi convidado da conferência. Para ele, esse formato não favorece a discussão política. “Acaba ficando mais um modelo de legitimação de algumas propostas do que de discussão e disputa de posições”, opina. Para ele, isso fez com que eventuais divergências que poderiam aparecer ficassem escondidas. “Fica tudo parecendo consensual demais. Por exemplo: a posição de ser contra a privatização da saúde me pareceu quase que consensual, mas não é. Claramente há grupos ali que defendem a Ebserh [Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares] e as fundações estatais de direito privado que, para a linha de pensamento à qual me filio, são modelos privatizantes da saúde. Mas todo mundo diz que é contra a privatização”, explica.  

André Antunes/EPSJVRecém-eleita reitora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Maria Valéria Correa considera que a escolha das mesas de abertura do evento foi outro aspecto que contribuiu para que houvesse um falso consenso em torno das questões debatidas, diferente do que ocorreu na 14ª Conferência, quando esteve mais presente nas mesas o debate de posições dissonantes. “As mesas estão muito governistas”, resume e complementa: “Tem uma blindagem do governo Dilma muito grande, o que omite o fato de que vários retrocessos, como a Ebserh e a proposta da entrada do capital estrangeiro, são obra deste governo”, critica. Para ela, o foco no “Fora Cunha” durante a Conferência explicitou essa contradição. “Existe um centralismo na acusação do Cunha, que, de fato, é a expressão de tudo o que existe de pior na política. Mas se esquece que existe uma política governamental de corte e de contingenciamento de recursos, de pagamento da dívida pública, de ampliação de subsídios ao setor privado”, critica.

A presidente do CNS discorda de que se tenha adotado postura acrítica em relação ao governo federal. “Nós fizemos críticas o tempo inteiro. O conselho se posicionou contra o ajuste fiscal, se posicionou em relação ao capital estrangeiro, se posicionou em relação à pauta do Ato Médico. Colocamos também uma crítica ao corte de R$ 16 bilhões na PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] que está no Congresso Nacional”, enumera Socorro, que afirma que o Conselho vem travando embates com o governo por um projeto nacional que defende pautas como a reforma agrária, tributária e dos meios de comunicação. “Em alguns aspectos fomos respondidos, em outros não”, conclui.

Confusão em torno do regulamento

O fato de o regulamento não ter sido votado em plenária durante a conferência é outro ponto que para os delegados acarretou problemas durante as discussões nos grupos de trabalho. Na edição anterior da conferência, em 2011, a votação do regulamento levou praticamente um dia inteiro de trabalho. Desta vez, para evitar atrasos nas votações, optou-se por chegar à Conferência com o regulamento, elaborado pelo CNS e submetido à consulta pública em outubro, já pronto. “Essa foi outra tentativa de agilizar o processo. Por outro lado, não houve uma apropriação do regulamento nem pelas pessoas que coordenavam os grupos e muito menos pelos participantes”, diz Geandro, apontando que isso acabou prejudicando ainda mais o debate. “Teve grupo em que os coordenadores definiram que ali não ia poder ter questão de ordem e nem questão de esclarecimento. Chegou a ter grupo que votou para que convidado não tivesse voz. Tudo isso ao arrepio do regulamento”, revela. Para Paulo César, a inexperiência de muitos delegados também contribuiu para esvaziar os debates na conferência. Segundo Maria do Socorro, cerca de 40% dos delegados e convidados da 15ª CNS participavam de uma conferência pela primeira vez. “A renovação traz ganhos, mas também traz algumas perdas”, admite. Entretanto, ela discorda da leitura de que faltou debate na Conferência. “Eu não aceito essa crítica. É um equívoco na análise olhar só a etapa nacional, distanciada do conjunto do processo. Eu acho que a gente inovou, e muito, em espaços de participação. Tivemos muitas conferências livres: estudantes, farmacêuticos, mulheres, negros, população de rua, rural. Então não dá para dizer que não houve debate”, avalia. A presidente do CNS afirma ainda que “gostaria muito” que fosse possível colocar propostas novas e promover mais debates na etapa nacional, mas acredita que para isso seria necessário ter mais tempo de conferência. “Temos a responsabilidade de fechar a conferência. Se nós fossemos acolher propostas novas ali, por exemplo, a gente não concluiria a conferência e em vez de 300 ou 400 propostas, teria duas mil”, ressalta.

Propostas e pauta política

Uma das preocupações manifestadas pelos estudantes organizados na 15ª Conferência era com o comprometimento das propostas que traziam críticas ou cobranças ao governo federal. “Se a gente assume uma defesa cega do governo num espaço de controle social, corre o risco de não fazer essas críticas”, diz Suelen Nunes, da Denem. Como apenas 7% das propostas foram para a plenária, ainda não se conhece o teor do relatório final. A reportagem da Poli entrou em contato com o Conselho Nacional de Saúde para confirmar a aprovação ou não de algumas propostas que não foram à plenária final, mas não conseguiu resposta. Socorro, no entanto, adianta que, entre as propostas aprovadas, a “principal mensagem” da sociedade reunida na 15ª Conferência para o governo federal foi dada. “A gente defendeu taxar as grandes fortunas e taxar mais as grandes movimentações financeiras. Tem uma proposta também de redução da taxa de juros para enfrentar uma política econômica recessiva”, afirma, listando ainda a priorização da atenção básica e da rede pública estatal como alvos do financiamento da saúde e a recusa do repasse de recursos públicos para Organizações Sociais (OSs) e Organizações da Sociedade Civil para o Interesse Público (Oscips) como pontos que constarão do relatório da conferência.

Sobre financiamento — tema sempre urgente nas discussões do Sistema Único de Saúde —, a única decisão que ficou para a plenária final foi a retirada da referência ao investimento de 10% da Receita Corrente Líquida da União em saúde. A principal frente de atuação da militância neste momento, materializado no movimento ‘Saúde + 10’, defende que o governo federal aplique 10% da Receita Corrente Bruta (e não líquida). Como a metodologia da Conferência não permitia que houvesse substituição nem parcial de propostas na etapa nacional, a votação acabou sendo por retirar esse trecho da proposta, que ficou sem qualquer referência à participação da União – que é um dos grandes debates do movimento sanitário.

Apesar dos problemas relatados na organização e na condução da Conferência, a avaliação dos entrevistados pela Poli é de que da 15ª deve sair um relatório final sintonizado com as propostas que vinham sendo aprovadas nas últimas conferências nacionais. “Eu acho que temos um bom acúmulo de sucessivas conferências a nosso favor. O relatório deve reiterar aquilo que já vínhamos aprovando: a necessidade de fortalecimento da atenção básica, das equipes multiprofissionais em saúde na perspectiva de superação do modelo centrado no médico, a proposta de fortalecer a rede pública em substituição à rede privada”, enumera Francisco Batista Júnior, ex-presidente do CNS. Geandro Pinheiro concorda, mas alerta que a qualidade do relatório nunca foi um problema nas últimas conferências. “A 14ª também teve um relatório bom, mas quando se faz um balanço, a gente vai ver que muito pouco foi implementado. E boa parte está novamente no relatório da 15ª. A pauta da esquerda está colocada ali”, avalia. Para ele, as últimas conferências vêm sugerindo que há um certo consenso em torno de um projeto para o sistema de saúde entre os militantes do SUS. “Todo mundo defende mais dinheiro, plano de cargos, é contra a privatização. Mas na real política você acaba defendendo governos que definem o inverso em função desse aparelhamento, dessa burocratização, de um conjunto de questões que destituem o controle social do seu elemento de participação popular”, diz.

Isso não significa, no entanto, que não houve polêmicas nos grupos de trabalho, algumas delas em torno de questões que se imaginava consensuais entre os militantes da saúde. “No meu grupo rejeitou-se uma proposta que era contrária à redução da maioridade penal. Ou seja, o grupo se expressou favorável à redução”, exemplifica Paulo César Ribeiro.  Geandro Pinheiro resume a contradição: “Gritam ‘Fora Cunha’, mas tem muita gente aqui votando nas pautas do Cunha”.