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Aprender com o passado

Militantes, pesquisadores e pessoas que vivem com HIV debatem o legado da pandemia de Aids para o enfrentamento da Covid-19
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/12/2021 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h40
Campanha do governo do Rio Grande do Sul

Por semelhança ou diferença, são muitas as comparações que se pode estabelecer entre a crise sanitária que o mundo enfrenta desde 2020 e aquela que foi causada pela chegada do vírus HIV, no começo da década de 1980. Antes que você continue a leitura desta reportagem, no entanto, é preciso fazer um alerta: nenhuma delas tem qualquer relação com a polêmica – e falsa – declaração do presidente da república Jair Bolsonaro que, numa live do dia 21 de outubro, associou a vacina contra Covid-19 ao risco de se contrair Aids.

O que a história e a ciência nos mostram é que, tal como a Covid-19 hoje, exatamente 40 anos atrás, quando foi oficialmente registrada, a Aids também era uma doença nova e sem tratamento conhecido. Não se tinha controle sobre a sua transmissão e diagnosticar os assintomáticos era uma dificuldade adicional. Por contraste, chama atenção a velocidade com que foram desenvolvidas vacinas contra a Covid-19, enquanto, mesmo depois de tanto tempo, com tanto dinheiro e esforços empregados, ainda não se descobriu um imunizante para prevenir a Aids – causada por um vírus extremamente mutante e sem modelo de imunidade natural, logo muito mais difícil de ser controlado do que o Sars-Cov2.

Mais do que isso: as tecnologias que tornaram possível a produção de vacinas contra a Covid-19 em menos de um ano são herdeiras diretas dos estudos de combate à Aids. Marcelo Soares, pesquisador em Aids que trabalha no Instituto Nacional do Câncer (Inca), explica que a plataforma utilizada para as vacinas de RNA mensageiro, por exemplo, foi desenvolvida por pesquisadores de HIV e que as próprias redes de recrutamento de pacientes e voluntários para teste das vacinas de Covid-19 foram aproveitadas da estrutura organizada para os estudos em Aids. Isso sem contar a contribuição para os testes: o RT-PCR, que é padrão ouro para o diagnóstico de Covid-19, foi desenvolvido para detecção de HIV. “E agora a gente pode pegar esses dados testados em milhões de pessoas na pandemia de Covid e levar de volta para a pesquisa de HIV que busca a elaboração de vacinas”, diz Soares.

Estigma e desigualdade

Mas as comparações não são só positivas. A marca do preconceito, que há 40 anos recai sobre aqueles que contraem o HIV, é outra distinção importante: “Uma diferença fundamental é a questão do estigma. Por mais que também se ‘aponte o dedo’ para quem contrai Covid-19, não se prejulgam essas pessoas como escória, como resto. Já o HIV traz isso”, testemunha Eduardo Barbosa, soropositivo, militante e ex-diretor do departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde. Se é possível algum paralelo, vale o registro de que, tal como o Sars-Cov2, causador da Covid-19, chegou a ser chamado de “vírus chinês”, na década de 1980, a Aids era estampada nas páginas dos jornais como a “peste gay”.

A desigualdade geopolítica que expressa e, ao mesmo tempo, reforça preconceitos é outro ponto comum entre a pandemia de Aids e a de Covid-19, na avaliação de Veriano Terto Júnior, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). Ele destaca que as mais de 12 milhões de pessoas no mundo que não têm acesso aos medicamentos para Aids estão nos países mais pobres, da África, Ásia ou mesmo da América Latina. Ele compara: “Na pandemia atual, é a mesma coisa: 3% da população do continente africano está vacinada contra Covid-19 neste momento, o que mostra como a desigualdade é determinante para a vida e a morte de populações inteiras. A Aids já demonstrou isso. É uma pena que a gente veja isso se refletindo na [pandemia de] Covid-19 outra vez”.

Quarenta anos depois, o movimento social de Aids está de novo mobilizado em torno do mesmo tema, agora na relação com a Covid-19

Foi para lutar contra essa desigualdade que o movimento social de Aids pressionou – e conseguiu – a quebra de patentes de medicamentos para o tratamento da doença. A primeira situação se deu em 2001, quando, depois de não conseguir negociar com o laboratório que produzia o medicamento, o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso quebrou a patente do antirretroviral Nelfinavir. Com a decisão, o remédio passou a ser produzido no Brasil, inclusive pelo laboratório público da Fiocruz, Farmanguinhos, por um preço muito mais baixo. Em 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva repetiu a dose, quebrando a patente do Efavirenz.

Quarenta anos depois, o movimento social de Aids está de novo mobilizado em torno do mesmo tema, agora na relação com a Covid-19. Segundo Terto Júnior, entidades e militantes dessa área participaram ativamente da pressão para que o Congresso Nacional aprovasse o Projeto de Lei nº 12/2021, que altera a Lei de Propriedade Industrial (nº 9.279/1996), para tornar compulsórias as licenças de fabricação ou importação de medicamentos e vacinas considerados essenciais para a saúde pública, o que inclui a Covid-19 e a Aids. O texto foi aprovado, tornando-se a lei nº 14.200/2021 que, no entanto, foi sancionada com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro. Até o fechamento desta edição, a derrubada do veto ainda não tinha sido pautada no Congresso.

Também no interior de cada país, a dificuldade de as populações mais pobres conseguirem se proteger das doenças evidencia um paralelo entre as duas pandemias. Na Covid-19, medidas preventivas como o distanciamento social e a regularidade da lavagem das mãos esbarraram em obstáculos concretos, como a falta de água e saneamento básico, além das péssimas condições de moradia em locais como favelas e periferias. Isso sem contar as dificuldades de populações historicamente vulneráveis, como aquelas em situação de rua. Veriano Terto Júnior conta que, por razões distintas, mas sempre tendo a pobreza como determinação social, a adesão ao tratamento contra o HIV também foi um desafio para esses grupos mais vulneráveis, mesmo num país como o Brasil, que garantiu o acesso universal e gratuito ao tratamento. “Quando a combinação de medicamentos antirretrovirais se mostrou eficaz, se dizia que pessoas pobres, em situação de rua, e as populações dos países africanos não conseguiriam fazer o tratamento pelas suas condições culturais, sociais e econômicas. Dizia-se que essas pessoas não teriam condições de fazer a dieta necessária, não teriam a organização temporal para as doses dos medicamentos, coisas assim. E isso se mostrou mais um preconceito contra a África e contra a pobreza, já que nós tivemos países, como o Senegal, que foram muito bem sucedidos. No Brasil, mesmo com a situação de pobreza e desigualdade, nós conseguimos um nível de adesão acima de 70%, parecido com países como a França”, relata.

O vice-presidente da Abia não tem dúvida de que esse sucesso se deveu, em grande medida, à força da organização social que se formou em torno da epidemia de Aids. “Os movimentos sociais dessas populações representativas, mobilizados em torno da identidade do movimento gay, de prostitutas, de pessoas trans, além dos próprios movimentos de pessoas com HIV/AIDS, foram fundamentais no sentido de atrair, aproximar e melhorar a relação entre comunidade e pesquisa. E essa ligação foi muito importante para trazer as pessoas não só para o tratamento, mas também para o circuito de apoio social e psicológico que é muito importante para o tratamento”, explica Terto Júnior. Como conta Cristina Camara, socióloga que estudou o movimento social de Aids, logo em 1985, surgiu, em São Paulo, a primeira Organização Não-Governamental (ONG) criada como resposta à epidemia de HIV, o Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa). No ano seguinte, foi fundada a Abia, que, principalmente a partir da atuação pública de Herbert de Souza, o Betinho, ajudou a pautar a causa dos hemofílicos, ampliando o debate da Aids para além da homossexualidade. Em 1989, surgia o Grupo pela Vida, primeira ONG especificamente de pessoas vivendo com Aids.

“O programa de antirretrovirais chega desde a população de rua até a população ‘classe A’. Eu acho que realmente se conseguiu colocar em prática o princípio da universalidade do SUS. Esse é um grande exemplo de que é possível fazer isso mesmo num país como o Brasil, com tanta desigualdade, disparidade e iniquidade"
Veriano Terto Junior

O fato é que, para o atual vice-presidente da Abia, foi essa “força política” que, exercendo o controle social que está previsto no SUS, conseguiu “cobrar a responsabilidade do Estado, denunciar os abusos e insistir para que houvesse condições políticas e econômicas para que as leis relativas à epidemia de HIV/Aids funcionassem”. Entre muitas outras conquistas jurídicas – como o direito de antecipar o saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o passe livre no transporte público –, ele se refere, principalmente, à Lei 9.313/96, que estabeleceu a distribuição gratuita de “toda medicação necessária” ao tratamento de HIV/Aids pelo SUS. “O programa de antirretrovirais chega desde a população de rua até a população ‘classe A’. Eu acho que realmente se conseguiu colocar em prática o princípio da universalidade do SUS. Esse é um grande exemplo de que é possível fazer isso mesmo num país como o Brasil, com tanta desigualdade, disparidade e iniquidade”, analisa Terto Júnior, que completa: “Acho que esse é um grande exemplo de uma possibilidade que deve ser olhada atualmente no caso da Covid-19”.

SUS e movimentos sociais

Tomaz Silva/ABrDe fato, o cruzamento da história dessas duas pandemias lança luz sobre um ‘personagem’ que foi central tanto no combate à Aids quanto agora no enfrentamento da Covid-19: o SUS. Na verdade, quando a Aids surgiu, o sistema público que garantiu acesso universal à saúde num país continental como o Brasil ainda não existia – sua criação remete à Constituição de 1988, poucos anos depois do primeiro registro da doença. O ‘espírito’ que marcaria o desenho do SUS, de que saúde deveria ser direito de todos e dever do Estado, no entanto, já circulava pela sociedade brasileira. “A história da Aids chega junto com um período de redemocratização no Brasil, quando se está começando a pensar o que veio a ser o processo da assembleia nacional constituinte”, situa Cristina Camara.

Quando, no final da década, o movimento de Aids se amplia e começa a propor medidas mais concretas, o SUS se tornaria fundamental para as conquistas legais e jurídicas que viriam, assim como para a reorganização sanitária de serviços que ofereciam riscos à população, como, por exemplo, os bancos de sangue. “O SUS tem os princípios de justiça social, equidade, universalidade e controle social, que estão garantidos pela Lei 8.080. E isso foi importantíssimo para [a luta contra a] Aids”, explica Terto Júnior, que completa: “A relação da Aids com o SUS é de dupla via, mão e contramão. Ao mesmo tempo em que o SUS foi fundamental para o enfrentamento à Aids no país, o movimento social organizado [de Aids] e também gestores progressistas foram muito importantes porque conseguiram mostrar que o SUS é possível, que a universalidade e a justiça social não são simplesmente uma retórica na cartilha do SUS”.

“A Aids chega com a redemocratização com a estruturação do SUS, e o interessante é que com a Covid é exatamente o contrário. Ela chega num cenário político que exacerbou a crise financeira do SUS e de outros setores sociais, como educação e previdência social"
Cristina Camara

Mais de 30 anos depois, o SUS que enfrentou a pandemia de Covid-19 (na assistência, na vigilância, na pesquisa, na produção de imunobiológicos e no controle de informações, entre outras linhas de ação) já denunciava abalos importantes. “A Aids chega com a redemocratização com a estruturação do SUS, e o interessante é que com a Covid é exatamente o contrário. Ela chega num cenário político que exacerbou a crise financeira do SUS e de outros setores sociais, como educação e previdência social, mas que afeta muito o SUS com a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, em sintonia com essa retórica neoliberal da austeridade fiscal. A gente tinha um momento de abertura democrática e de vislumbre de que a saúde pública iria se estruturar melhor. Aqui é o contrário”, resume Cristina Camara.

Da mesma forma – e não por acaso – a mobilização social que existia nos anos 1980, na esteira da luta contra a ditadura, já não sobrevive. O contexto é outro, mas, tendo como referência a experiência do movimento de Aids, o vice-presidente da Abia ainda aposta que é possível (e necessário) surgir alguma mobilização a partir das ‘vítimas’ da mais recente crise sanitária. “Foi muito importante no caso do HIV a mobilização das próprias pessoas impactadas. É importante que populações afetadas fortemente pela Covid e familiares de pessoas que morreram de Covid venham a se mobilizar política e socialmente para ter uma voz ativa nos destinos dessa pandemia”, opina.

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