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Aulas presenciais: é hora de voltar?

Atividades presenciais são retomadas em alguns estados, principalmente na rede privada, cujas entidades representativas vêm pressionando pela volta há meses. Especialistas alertam para o risco de novos surtos da Covid-19 no país, e ressaltam que o retorno antecipado das escolas particulares aprofunda desigualdades educacionais
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 17/09/2020 12h23 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Pixabay

Em meio à flexibilização das medidas de isolamento social no país, o retorno das atividades escolares presenciais permanece foco de controvérsia. Em um momento em que a maioria dos estados segue com as escolas fechadas, entidades representativas do setor privado vêm pressionando governos municipais e estaduais a permitirem que as escolas particulares reabram antes das públicas, alegando que esses estabelecimentos de ensino têm mais condição de cumprir protocolos de biossegurança necessários para evitar o surgimento de novos focos de transmissão da doença. De outro lado, sindicatos de professores da rede privada e especialistas da área da saúde defendem que, em boa parte do país, os dados epidemiológicos apontam que o retorno nesse contexto seria arriscado, e ainda alertam que permitir o funcionamento das escolas particulares antes das públicas significa agravar ainda mais as desigualdades educacionais entre os dois segmentos em meio à crise sanitária que vem aprofundando disparidades sociais no Brasil.

Disputa judicial

Em alguns estados, a disputa envolve o Judiciário. É o caso do Rio de Janeiro, onde um decreto do governo estadual permitiu a retomada das aulas na rede privada a partir de 14 de setembro. Detalhe: para a rede pública, a volta foi prevista somente para 5 de outubro. No entanto, uma liminar da Justiça do Trabalho, em resposta a uma ação do Sindicato dos Professores do Rio e Região (Sinpro-Rio) – que representa os docentes do setor privado no estado – proibiu o retorno das aulas no estado “até que se demonstre, de forma concreta, por meio de estudo técnico ou de outro modo, que não há risco aos alunos, professores e à sociedade”. Na véspera, uma reviravolta: uma nova decisão judicial – desta vez em resposta a uma ação do Sindicato dos Estabelecimentos de Educação Básica do Município do Rio de Janeiro (Sinepe-RJ), que representa o setor patronal da educação privada – cassou parte da liminar, permitindo novamente que as aulas retornassem no dia 14 de setembro na rede privada.

No momento em que essa reportagem é escrita, a situação permanece em aberto na capital fluminense, já que uma decisão do Tribunal de Justiça do estado suspendeu um decreto municipal que autorizava a reabertura das escolas privadas a partir do dia 3 de agosto. Ao que tudo indica, a indefinição sobre o retorno das aulas presenciais na rede particular no Rio não deve acabar tão cedo. Em assembleia realizada no dia 12 de setembro, o Sinpro-Rio aprovou a manutenção do que chama de Greve em Defesa da Vida, contra o retorno das atividades presenciais sem uma “garantia das autoridades de saúde” e à favor da continuidade do ensino remoto nas instituições particulares do estado. 
Patronato defende o retorno antecipado

“Temos uma grande insegurança jurídica no Brasil, juiz se mete a entender de tudo. O que mais a gente tem hoje é gente falando de volta às aulas sem ouvir as escolas”, critica Ademar Batista, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep). E completa: “À medida que você vai liberando o comércio para funcionar, a escola deveria ser liberada. Temos um protocolo de saúde e pedagógico divulgado há quatro meses”. Segundo ele, a reabertura das escolas privadas seria importante para estancar a crise financeira que afeta o setor por conta das medidas de isolamento social adotadas em decorrência da pandemia.

Segundo dados da pesquisa ‘Megatendências – As escolas brasileiras no contexto do coronavírus’, divulgada em junho e realizada pela União pelas Escolas Particulares de Pequeno e Médio Porte, organização sem fins lucrativos criada na pandemia, entre 30% e 50% dos colégios de pequeno e médio porte do país estavam sob risco de falência, diante de uma perda de 52% em suas receitas.

“A pandemia está chegando a lugares em que demorou para chegar pelo tamanho do Brasil. Mas a curva de contaminação do país está caindo, bastante gente já pegou. Está todo mundo na praia, no bar, viajando, e a escola fechada? Só se pega coronavírus na escola? É falta de seriedade isso”, reclama Ademar, para quem muitos colégios particulares têm condições de garantir protocolos de segurança adequados. “Os protocolos de segurança não têm grandes investimentos. É muito mais questão de organização, de gestão: ter álcool em gel, tem que pedir para a família mandar três máscaras para a criança, um tênis para trocar, coisas assim. O investimento da escola não é muito grande”, afirma. E sentencia: “A escola que tiver condições de atender abre; as que não têm não abrem. Assim que tinha de ser. E se o setor público tem dificuldades, que faça do jeito deles, no tempo deles”.

A separação entre as redes privada e pública nas decisões sobre o retorno é um ponto criticado por analistas ouvidos pela Poli. Madalena Guasco, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), discorda da leitura de que as escolas privadas têm mais condições de implementar protocolos de segurança. “Tem escola privada que não está preparada para nada. Há muitas escolas de bairro que não têm condição de cumprir metade do protocolo exigido e pior: são escolas que em geral não têm fiscalização do município”, aponta.

Para Oswaldo Teles, presidente do SinproRio, essa separação aumentaria ainda mais as desigualdades entre os alunos das escolas públicas e privadas “Isso é muito ruim, ainda mais tendo em vista que o aluno da escola pública já está sendo prejudicado pela desigualdade digital, porque muitos têm acesso precário à internet, não têm celular. E o Estado não deu essas condições para eles”, critica Oswaldo, que também concorda com o ponto levantado por Madalena.

“Não dá para dizer que a escola privada tem uma gestão melhor do que a escola pública; é relativo. Tem escolas privadas muito mal organizadas e instaladas em espaços físicos pequenos. Muitas escolas não têm grandes espaços abertos. Pelo contrário, a maior parte não tem, com exceção daquelas grandes escolas tradicionais”, defende Oswaldo, que lembra ainda que muitos estudantes e professores da rede privada utilizam o transporte coletivo para chegar às escolas.

Panorama dos estados

Segundo levantamento realizado pela Fenep, além do Rio de Janeiro, seis estados já autorizaram o retorno das atividades presenciais, a maioria prevendo a volta antecipada das redes privadas: São Paulo, Amazonas, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará e Rio Grande do Sul. O primeiro foi o Amazonas, onde o sistema de saúde chegou próximo ao colapso no auge da pandemia. Creches, escolas e faculdades da rede privada do estado foram autorizadas a funcionar desde o dia 3 de julho. Ali, as escolas estaduais retornaram no dia 10 de agosto, sob protestos do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Amazonas (Sinte-AM) que temia um surto de novos casos entre os professores. Foi o que acabou acontecendo.

Duas semanas depois do início das aulas, testes realizados pelo governo estadual nos professores da rede estadual identificaram 342 casos de contaminação entre os profissionais da rede. Para o pesquisador Diego Xavier, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), o caso do Amazonas deveria servir como lição para o restante do país. “Se a reabertura for feita nos outros estados da mesma forma como foi feita no Amazonas, inevitavelmente vamos ver uma explosão no número de casos e de óbitos”, alerta. Já para Ademar Batista, o caso ilustra como as escolas privadas estão mais bem preparadas do que as públicas para uma retomada. “No Amazonas não teve nenhum problema na rede privada, que reabriu em julho”, destaca, contemporizando em seguida: “E mesmo na rede pública foram somente 340 contaminações, de 22 mil professores testados. Isso não é nada estatisticamente”.

Em outros estados onde a rede privada foi autorizada a reabrir antes da pública, contudo, não foi bem assim. No Maranhão, as aulas presenciais no 3º ano do ensino médio foram retomadas nos colégios particulares no dia 3 de agosto, sob críticas da Associação de Pais e Alunos de Instituições de Ensino do Estado do Maranhão (Aspa-MA), que alegou que o retorno foi anunciado sem a participação dos pais e responsáveis e que ainda não havia segurança sanitária para a retomada das atividades presenciais no estado.

Uma semana após o retorno, várias instituições privadas da capital São Luis voltaram atrás e decidiram pelo ensino remoto, depois que uma instituição registrou um caso de Covid-19 entre seus trabalhadores. As aulas na rede estadual, previstas inicialmente para serem retomadas no dia 10 de agosto, foram suspensas pelo governo estadual, que ainda não definiu uma data para a retomada.

No Rio Grande do Norte, as aulas presenciais na rede pública devem voltar apenas em 2021, enquanto a rede privada foi autorizada a reabrir a partir de 11 de setembro. Na capital, Natal, um decreto da prefeitura autorizou o retorno mediante a assinatura, pelos pais e responsáveis, de um termo de responsabilidade que isenta o poder público e a instituição de ensino caso o estudante venha a se contaminar por Covid-19.

No Paraná, que ainda não definiu uma data para o retorno das atividades presenciais, o governo estadual prevê uma medida similar. “Isso é uma loucura”, protesta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Anamaria Corbo. “É a gestão pública se desresponsabilizando do seu papel”, complementa. Diego Xavier concorda. “Isso aconteceu durante toda a pandemia: o governo federal transferindo a responsabilidade ao estado, o estado para o município e o município para a população. O que a gente está vendo agora é as prefeituras e os estados transferindo a responsabilidade para as escolas e para os pais, mas não são eles que têm que fazer teste e rastreio dos casos de Covid-19, por exemplo”, diz, complementando em seguida: “Eu não vejo hoje em lugar nenhum uma estratégia coordenada para que se dê esse passo tão fundamental em uma pandemia que é a volta às aulas”.

Em São Paulo, estado que registra o maior número de casos e de óbitos por Covid-19, a reabertura foi anunciada ainda em julho pelo governo estadual, com autorização para atividades presenciais de reforço e acolhimento de estudantes a partir do dia 8 de setembro, e das atividades presenciais, em regime de rodízio de estudantes a partir do dia 7 de outubro. Dos 645 municípios do estado, 128 deram autorização para o retorno. O número não inclui a cidade de São Paulo, onde a prefeitura proibiu a reabertura de escolas, tanto públicas quanto privadas, com base em um inquérito sorológico de alunos e professores da rede, cujos resultados iniciais, divulgados em agosto, apontaram que 16,1% dos estudantes haviam tido contato com o novo coronavírus, sendo que 64,4% dos casos foram assintomáticos. Além disso, se constatou que 25,9% deles vivem com pessoas com mais de 60 anos de idade, um dos grupos de risco para a doença.

“A escola vai virar um cavalo de Tróia”, alerta a diretora do Sindicato dos Professores de São Paulo (SinproSP), Silvia Barbara. “Mesmo que haja um controle na entrada das escolas, os alunos são assintomáticos, não tem como impedir que entrem e acabem contaminando professores, colegas e familiares. Esse é o problema”, completa. Para ela, não há “sentido pedagógico” para uma retomada das aulas presenciais nesse momento, uma vez que faltam poucos meses para o fim do ano letivo. “Se as aulas voltarem em outubro, no modelo híbrido, com os alunos indo à escola uma vez por semana, quantas vezes os alunos vão para a escola? Cinco? Seis?”, critica.

O presidente da Fenep tem visão distinta. “Isso é uma besteira. Um dia por semana presencial melhoraria 100% o aprendizado, o desenvolvimento humano dos alunos”, defende Ademar Batista.

Situação desconfortável

“O que a gente está vendo, de forma geral, é o começo de uma diminuição no número de casos e óbitos, mas precisamos lembrar que a epidemia tem tempos diferentes em lugares diferentes. Onde ela chegou primeiro, a gente tem uma situação um pouco mais confortável hoje. No Norte e alguns lugares do Sudeste, a gente observa isso”, avalia Diego Xavier. No entanto, ele destaca que boa parte da população ainda não foi exposta ao vírus. “A disseminação do coronavírus leva em conta principalmente o número de pessoas circulando e a proximidade dessas pessoas. Quando a gente fala em volta às aulas, estamos falando de um contingente populacional muito grande circulando nas ruas. Para se ter uma ideia, no Brasil, temos cerca de 10 milhões de adultos que apresentam um ou mais fatores de risco, ou idosos, que vivem com uma criança em idade escolar. A gente não sabe, desses 10 milhões, qual é o volume de pessoas que já foi exposta ao vírus”, assinala o pesquisador do Icict/Fiocruz, que lembra ainda que em algumas cidades a flexibilização das medidas de isolamento social levou a uma explosão no número de casos.

“No começo de setembro saiu uma pesquisa do Imperial College, do Reino Unido, apontando que o Brasil voltou a ter uma taxa de transmissão acima de 1”, lembra Diego.  Isso quer dizer que cada 100 pessoas infectam 101, que infectam 102,1 que infectam 103,3 e assim por diante. “Ou seja, a gente não está em uma situação confortável”, destaca. Ele ressalta também que um retorno das atividades presenciais nas escolas, nesse momento, aconteceria em paralelo a uma “desmobilização de recursos” na saúde que haviam sido disponibilizados para o enfrentamento da pandemia. “Muitas das cirurgias eletivas ficaram paralisadas. Eram recursos extras que a gente tinha e não vai ter mais, a partir do momento em que se começa a retomar o serviço de saúde de rotina, as cirurgias de rotina. O nosso sistema de saúde passa a ter o desenho que tinha antes da pandemia, que não era confortável: tínhamos UTIs lotadas, déficit de funcionários, de equipamentos, de recursos. Uma volta às aulas presenciais, mesmo que só na rede privada, vai gerar um aumento da circulação de pessoas e um provável aumento do número de casos em um momento em que a gente não tem mais essa retaguarda. A gente pode ter um cenário bem complicado que pode, sim, acabar trazendo um colapso no sistema de saúde”, alerta. E completa: “Nesse sentido voltar às aulas presenciais é um risco que, na minha opinião, a gente não deveria correr”.

A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Anamaria Corbo, que integrou o grupo de trabalho que elaborou o ‘Manual de biossegurança para reabertura de escolas no contexto da Covid-19’, lançado pela Escola em julho, argumenta que a maior parte dos protocolos divulgados por governos e entidades privadas da educação no contexto das discussões sobre a retomada das atividades presenciais nos estabelecimentos de ensino não leva em conta a complexidade que um processo como esse exige, ainda mais em um contexto em que ainda são registrados dezenas de milhares de novos casos e centenas de mortes por Covid-19 diariamente no país.

“Tem depoimentos de secretários municipais de saúde que diziam que é só botar álcool gel na entrada, medir temperatura e obrigar o uso de máscara. Mas a gente sabe, por exemplo, que a febre não está presente em todos os casos sintomáticos. Você tem que saber também se aquela pessoa teve outros sinais e sintomas. Tem que ter equipe na porta de entrada, tem que separar os alunos e trabalhadores com sintoma. Tem que ter um espaço para isso, tem que ter força de trabalho para ficar na porta fazendo a triagem. São vários pontos ignorados em alguns planos de retomada”, opina Anamaria.

Segundo ela, a retomada das aulas presenciais exige um acompanhamento de perto do poder público, e uma articulação entre várias áreas, não apenas na educação, mas também no transporte, na saúde, na assistência social, entre outras. “É preciso saber qual é a estrutura de serviços de saúde no território, identificar qual unidade básica é responsável por aquela escola, seja ela pública ou privada, para que se faça o rastreamento de um eventual caso e de seus contatos. No âmbito da assistência social, é preciso garantir que aquele caso e seus contatos vão permanecer isolados; todo o sistema de transporte precisa estar organizado para que esses estudantes e trabalhadores não se contaminem no caminho até o ambiente escolar”, enumera a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Uma vez definido um protocolo de retorno, que segundo Anamaria precisa ser discutido com toda a comunidade escolar, é preciso ainda que a vigilância sanitária acompanhe a implementação das medidas relativas à biossegurança. “Você não pode esperar que a direção de uma escola, sozinha, consiga adequar o seu espaço segundo essas medidas. Tem que ter medição, adequar o sistema de fluxo de ar, água, esgotamento sanitário. Então são várias medidas que têm que ser tomadas e, uma vez tomadas, têm que ser fiscalizadas”, ressalta.

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