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Brasil Sem Fome

Especialistas avaliam que plano lançado pelo Governo Federal pode ser indutor de outras políticas públicas de produção, distribuição e consumo de alimentos.
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 21/09/2023 12h07 - Atualizado em 21/09/2023 13h42

O Plano Brasil sem Fome, lançado pelo Governo Federal, precisa garantir o direito à alimentação adequada e pode servir como indutor para outras políticas públicas de produção, distribuição e consumo de alimentos na sociedade brasileira. A avaliação é compartilhada pelas professoras Silvia Miranda e Dirce Marchioni, do Grupo de Trabalho Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome, da Universidade de São Paulo (USP).

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a segurança alimentar tem quatro dimensões: disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade. O Brasil sem fome está estruturado em três eixos: Acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania; Segurança alimentar e nutricional: alimentação saudável da produção ao consumo; e Mobilização para o combate à fome. “Para cada um deles há a proposição de programas, estão listadas ações em todas estas áreas. O desafio será implementar e articular entre os entes federativos, tendo em vista que o plano é muito abrangente”, avalia Silvia.

Dirce, também coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Combate à Fome, elogiou a estratégia do Governo Federal de buscar essa articulação com estados e municípios, criando uma espécie de "pacto federativo" em torno do assunto. “É fundamental a articulação dos entes federativos, para execução dos programas e ações. Está explicitada a integração, em nível local, entre as unidades do Sistema Único de Saúde, Sistema Único de Assistência Social e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional para identificação, atendimento e encaminhamento das situações de insegurança alimentar, além da articulação de ações em 50 grandes centros urbanos, que engloba a agricultura urbana e periurbana, as cozinhas solidárias, o Programa de Aquisição de Alimentos e a utilização de equipamentos públicos e sociais de Segurança Alimentar e Nutricional”, ressaltou.

Diante desta interlocução entre diferentes esferas de governo, Silvia, que coordena o GT da USP, defende uma atenção especial na implementação das ações. “Muitas vezes, os gargalos e as dificuldades de atingir as metas não estão relacionados ao desenho dos programas e definição das ações, mas aos entraves para sua execução e operação, que acabam por depender da estrutura e da gestão administrativa em nível de municípios e estados”, ressalta.

Para ela, a realização de Caravanas do Brasil Sem Fome nos municípios, envolvendo a sociedade local, como está previsto no programa, é apenas uma das estratégias que o Plano precisa para mobilizar as comunidades em prol da iniciativa. “Perseguir o Brasil sem Fome requer um conjunto de ações e estratégias, tendo em vista as várias nuances da fome e o perfil da insegurança alimentar e da vulnerabilidade social em cada região, de modo que, certamente, uma caravana contribui para disseminar as informações relevantes para as populações locais, para angariar o apoio de governadores, prefeitos, vereadores e deputados estaduais e, sobretudo, contribuir para a aproximação com a sociedade civil, cuja sensibilização e mobilização para um esforço conjunto com o poder público é essencial”, diz Silvia.

Dirce avalia que há uma janela de oportunidade, diante do prazo previsto pelo Plano para a eliminação da fome no Brasil, em 20230, para que o país adote a abordagem de uma produção agrícola sustentável e em conformidade com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. “Mesmo que tenhamos experiências exitosas no passado, que estão sendo reproduzidas, como o Bolsa Família, os desafios colocados neste momento histórico para a humanidade são muitos. As modificações humanas no planeta fizeram os cientistas proporem uma nova era geológica, o Antropoceno. Os limites planetários estão sendo ultrapassados. A ciência e tecnologia tem um papel fundamental na busca de soluções, em articulação com as universidades e institutos de pesquisa, nos temas da transição energética e da crise climática”, defende.

Silvia considera que essa janela de oportunidade precisa considerar os desafios do presente, em especial, o conflito armado na Ucrânia e seus efeitos globais sobre a cadeia de produção de alimentos, que elevou a preocupação de governos com a soberania alimentar, incluindo o do Brasil. “Manter os preços dos alimentos em patamares controlados e mais acessíveis aos consumidores é essencial, principalmente diante da proporção grande de desempregados e da renda achatada de grande parte da população brasileira. É estratégico buscar soluções tecnológicas como biofertilizantes e outras alternativas que contribuam para mitigar os impactos da elevação dos custos de produção e reduzir a dependência das importações de insumos para a produção de alimentos”, avalia Silvia.

Além disso, Dirce defende que o Governo Federal precisa colaborar financeira e tecnicamente para a obtenção de práticas produtivas locais mais adequadas aos desafios do momento. “Outras preocupações se somam ao cenário de guerra, como as mudanças climáticas, que trazem a necessidade urgente de produzir alimentos de forma sustentável e a necessidade de preservar a biodiversidade e a cultura local. Há uma série de ações que podem ser tomadas, que envolvem o acesso ao crédito, a capacitação dos produtores em técnicas agrícolas produtivas e sustentáveis e a formação para uso de tecnologias digitais, além do apoio ao cooperativismo e ao associativismo que contribui para que os produtores tenham acesso mais fácil às informações, créditos e à assistência técnica”, observa a professora.

Para Silvia, essas seriam medidas que poderiam colaborar para tornar o combate à fome uma política de Estado e não apenas de governo. “Precisamos de mecanismos de governança que assegurem a sustentabilidade temporal desses programas. Medidas estruturais de redução da pobreza e da desigualdade social, que estão no âmago do problema da insegurança alimentar, requerem prazos mais longos para mudança e consolidação e, portanto, exigem mecanismos que garantam que sejam atacados de forma estrutural e permanente. É o caso de se assegurar educação básica de qualidade e acesso a serviços de saúde e saneamento básico, todas condições essenciais para que a população mais vulnerável tenha acesso ao emprego e a renda por meio de seu trabalho e consiga independência das políticas de transferência de renda”, aponta.

‘Quem tem fome tem pressa’

Para além de aspectos estruturantes, tanto Silvia, quanto Dirce, destacaram a adoção de medidas imediatas no contexto do Plano, como a aprovação do Novo Bolsa Família e a ratificação de seu valor mínimo de R$ 600,00 por família, com a garantia de um adicional de R$ 150,00 por criança de até seis anos; a criação do Programa Cozinha Solidária, o reajuste do valor per capita da alimentação escolar, no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e a ampliação dos investimentos no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

O Brasil sem Fome prevê o mapeamento e identificação de pessoas em insegurança alimentar para inclusão em políticas de proteção social e acesso à alimentação e a avaliação de suas ações através de um Monitoramento Anual da Fome, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), uma pesquisa domiciliar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com Silvia, a identificação de pessoas em situação de maior vulnerabilidade dependerá da atualização do Cadastro Único (CadUnico), já em andamento. “O apoio do IBGE é muito importante e positivo, mas também está prevista uma busca ativa dos grupos mais vulneráveis. A atualização do CadUnico é uma medida importante e a política de combate à fome no Brasil tem a compreensão da importância do cruzamento das diferentes bases de dados e informações; o uso do cadastro é uma boa maneira de localizar as pessoas no município, onde a execução das políticas acontece prioritariamente. Este é um passo essencial para aperfeiçoar a identificação das pessoas vulneráveis, assim como os esforços descentralizados que são necessários em nível municipal”, ressalta a professora.

Dirce destaca a retomada dos espaços institucionais de interlocução do governo com a sociedade civil, em especial o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em fevereiro de 2023. “Na ausência do Consea, foi interrompido o processo de organização da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e inviabilizada a deliberação sobre as prioridades para o III Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan), no período 2020-2023. É importante que o combate a um problema complexo como a garantia da segurança alimentar, e mais ainda, na perspectiva da garantia do direito à alimentação adequada, articule amplamente com setores do governo e da sociedade. O plano Brasil Sem Fome terá sua coordenação atribuída à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), agora composta por 24 ministérios, tendo o Consea como instância de controle social”, destaca a professora.

Silvia considera que o acompanhamento pelo Consea é fundamental para que as medidas previstas no Plano sejam obtidas no prazo estimado. “O Brasil tem sido exemplo no desenho de políticas e programas sociais, e podemos citar o caso do Programa Fome Zero como um dos mais emblemáticos. Muitas das dificuldades de avançar se devem aos estrangulamentos na implementação desses programas, de modo que é preciso aprimorar mecanismos que garantam a implantação efetiva das medidas e que permitam monitorar seus resultados e retroalimentar o planejamento e a execução. A participação social é fundamental para a garantia da correta utilização dos recursos, acompanhamento da implementação e para as correções de rumo necessárias no período de aplicação do plano”, defende ela.

Garantir uma alimentação saudável

Para Dirce, uma boa medida do Plano é a previsão de garantir uma alimentação saudável. “Os estudos mostram que o brasileiro ainda se alimenta prioritariamente de ‘comida de verdade’, ao contrário do que se vê em países desenvolvidos como o Reino Unido. Embora o consumo de alimentos ultraprocessados tenha aumentado, segundo dados das Pesquisas de Orçamentos Familiares (POFs), também do IBGE, o consumo de alimentos como frutas, legumes e verduras é baixo diante das necessidades de uma dieta saudável, enquanto há um consumo excessivo de carnes, especialmente a bovina. Um estudo recente mostrou que a adesão dos brasileiros a uma dieta simultaneamente saudável e sustentável é baixa. A disponibilidade e o acesso a esses alimentos é fundamental, e o apoio às ações de disseminação do Guia Alimentar para a População Brasileira está previsto no Brasil sem Fome”, afirma.

Além disso, Dirce defende o estímulo à produção de alimentos saudáveis, que sejam disponíveis e acessíveis, e a existência de estratégias de formação para o uso e o preparo destes alimentos, com a culinária possuindo um papel de destaque. “O nosso Guia é um bom caminho para isso, ao enfatizar esses aspectos. As ações de educação alimentar, iniciativas de fomento às hortas urbanas e comunitárias, e o incentivo a ações nas escolas municipais e estaduais podem contribuir para que a população e as novas gerações que estão em formação consigam resgatar hábitos de consumo alimentar mais saudáveis, inclusive, resgatando produtos nativos e de produção local”, defende.

Durante o lançamento do Plano, o Governo Federal anunciou a disponibilização de R$ 25 milhões para a compra de alimentos da agricultura familiar, a fim de abastecer cerca de mil cozinhas solidárias, em 25 estados e no Distrito Federal. Esse recurso seria destinado ao fornecimento de cinco milhões de quilos de alimentos.  Para Silvia, como esses recursos serão destinados à compra de alimentos da agricultura familiar, isso deverá ter um impacto positivo também para a segurança alimentar das populações rurais que vivem do trabalho agrícola.

Sobre a previsão do Governo de estabelecer uma Política Nacional de Abastecimento e Combate ao Desperdício dentro do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Silvia avalia que o desmonte ocorrido no sistema nos últimos anos é um dos elementos que explica o agravamento da situação de vulnerabilidade alimentar. “Em grande parte, as políticas são executadas em nível municipal e muitas cidades carecem de estrutura administrativa e técnica para uma execução eficiente. Há necessidade de que os programas sejam acompanhados de ações de educação alimentar, extensão rural, capacitação de gestores, comunicação com a sociedade civil. Tomando o caso do PAA, é importante identificar as causas que comprometeram seu funcionamento mais eficaz e amplo, atingindo um maior número de beneficiários. Já em relação ao desperdício, certamente, precisamos de mais ações educativas e de sensibilização e de uma estrutura nos municípios que possa amparar o diagnóstico e o combate dessas perdas”, aponta a professora.