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Câmara: PL que altera regras para demarcação de terras indígenas segue para o Plenário

Aprovado sob protestos de organizações indígenas, PL 490/2007 consagra em lei o marco temporal, que estipula que sejam reconhecidos somente os territórios cujas populações comprovarem sua presença na data da promulgação da Constituição Federal
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 02/07/2021 11h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Tiago Miotto/Cimi

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados concluiu na terça-feira (29/06) a votação do Projeto de Lei 490/2007, que altera as regras para demarcação de terras indígenas. O texto-base do projeto havia sido aprovado na semana passada sob protestos de milhares indígenas reunidos em frente ao Congresso Nacional, mas ainda faltava votar destaques que poderiam mudar o texto. Todos as propostas de alteração foram rejeitadas, contudo, sendo aprovado na íntegra o texto do relator, o deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA).


Marco temporal

O projeto é polêmico: além de submeter o processo de demarcação ao Congresso Nacional, o texto  consagra em lei o parâmetro conhecido como marco temporal, que estipula que sejam reconhecidos somente os territórios cujas populações comprovarem sua presença em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal – que garante a esses povos a posse sobre seus territórios tradicionais. O texto ainda proíbe a ampliação de territórios já demarcados e considera nulas demarcações que não atendam ao parâmetro do marco temporal. 

“O marco temporal, na nossa visão, é inconstitucional, porque não existe essa previsão no artigo 231 da Carta Magna. É uma criação jurídica do setor ruralista para impedir a demarcação, a devolução das terras esbulhadas aos povos indígenas em passado recente inclusive”, avalia Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Modesto explica que inúmeras comunidades foram retiradas à força de seus territórios pelos governos militares durante a ditadura civil-militar que se instalou no país a partir de 1964.

“Nesse período muitos territórios tradicionais, ocupados há anos pelos índios, foram cedidos para fazendeiros. Os índios foram colocados em caminhões e levados para pequenas áreas, que chamavam de reservas. Colocavam uma grande quantidade de pessoas em uma área pequena, inclusive clãs inimigos, o que até hoje reflete nas situações de violência nas terras indígenas, principalmente entre os Guarani-Kaiowá”, resgata o assessor jurídico do Cimi. E completa: “Mas os índios nunca perderam o ânimo de voltar a fazer parte de seus territórios. A partir de 1988 eles começaram a voltar para suas terras, fazer retomadas”.


Parecer da AGU de 2017 reforçou tese ruralista

A tese do marco temporal é uma interpretação jurídica usada já há alguns anos por ruralistas em razão de conflitos de terra envolvendo indígenas que reivindicam a demarcação de seus territórios. Mas a tese ganhou força a partir de 2017, quando um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) assinado pelo presidente Michel Temer determinou que todos os órgãos da administração federal deverão observar, nos processos de demarcação de terras indígenas, condicionantes estabelecidas pelo STF no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 2007, o Supremo determinou a desocupação da área, demarcada como TI em 1996, pelos seus habitantes não indígenas, que incluíam criadores de gado e produtores de arroz.  Na decisão, os ministros adotaram pela primeira vez no âmbito do STF a tese do marco temporal restringindo, no entanto, sua aplicação àquele caso específico. Caso aprovado o PL 490/2007, as condicionantes do caso Raposa do Sol passarão a ser utilizados como parâmetro para todos os processos de demarcação.

Rafael Modesto ressalta ainda que há outros dispositivos nocivos previstos no PL 490/2007, além do marco temporal. “A gente pode citar também a implementação no projeto de lei da condicionante 17 do caso Raposa Serra do Sol, que impede reestudo, redimensionamento de terras já demarcadas. Tem muitas terras indígenas que foram demarcadas sem critérios técnicos, processos fraudulentos, que deixaram de fora dos territórios demarcados áreas comprovadamente de ocupação tradicional dos índios”, diz o advogado do Cimi. 

O projeto ainda prevê que terras demarcadas poderão ser retomadas pela União caso o Estado entenda que aqueles povos perderam seus traços culturais. A deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), durante a votação dos destaques – um dos quais pretendia retirar do texto essa possibilidade – criticou essa previsão. “Seria exigir dos brancos que permanecessem dois séculos atrás, com aquelas perucas, com aqueles saiões, andando por aí num dia quente. A cultura é dinâmica. Como a gente vai avaliar se perdeu ou não traços culturais, e mesmo assim, foi pelo processo de colonização. Muitos povos indígenas perderam as línguas, mas não foi por causa dos povos indígenas, foi pelo massacre, pela colonização forçada, pelo genocídio que muitos sofreram", destacou.

Além disso, o PL 490/2007 prevê a possibilidade de que sejam instalados empreendimentos energéticos, de mineração, de expansão da malha viária e também bases e postos militares em territórios indígenas, sem necessidade de que para isso as comunidades ou a Fundação Nacional do Índio (Funai) sejam consultadas.


Última palavra com o STF

Na quarta-feira (30/06) estava na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de uma ação que pode trazer implicações para a aplicação jurídica do marco temporal, mas que foi adiado para 28 de agosto.  Trata-se de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. A decisão tem status de repercussão geral, e poderá ser usada como base para decisões judiciais em casos semelhantes. “O julgamento é extremamente importante porque o Supremo vai dizer se essa tese ruralista do marco temporal é constitucional ou não. A última palavra está no Supremo, que vai regular por meio de análise de constitucionalidade, por uma ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo, caso o Congresso Nacional aprove o PL 490”, afirma Rafael Modesto.