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Conferência coloca em pauta o fortalecimento do SUS como Escola

Documento defende maior integração entre formação e sistemas locais de saúde e o fortalecimento da Educação Permanente
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 01/10/2024 11h29 - Atualizado em 01/10/2024 11h42
Profissionais da Escola Técnica do SUS Professora Ena de Araújo Galvão em atividade de formação de Agentes Indígenas de Saúde e Saneamento Foto: Acervo ETSUS Ena Galvão

Em seu terceiro e último eixo, o documento orientador da 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CNGTES) se dedica à Educação nos mais diversos níveis. O papel da Educação Profissional e do Sistema Único de Saúde (SUS) como espaço de formação ganha destaque em item específico, em que o texto defende o “estímulo à integração da formação técnica, tecnológica e profissional com os sistemas locais de saúde, constituindo o SUS como uma escola”. Embora não se restrinja a esse nível de ensino, a concepção do SUS-Escola tem guiado a formação de técnicos em saúde desde a criação do sistema, numa perspectiva que abrange tanto a educação formal quanto estratégias variadas de Educação Permanente. Nos dois casos o foco está nos trabalhadores já inseridos no serviço e se dá a partir da problematização da prática cotidiana no espaço de trabalho orientados pelos princípios do SUS.

ETSUS como referência de SUS-Escola
Na Educação Profissional, o modelo da integração ensino-serviço, com processos de educação formal que se dão majoritariamente nas próprias unidades de saúde e tendo outros profissionais dos serviços como tutores, produziu muitos exemplos de práticas associadas a essa concepção de SUS-
Escola. Entre os mais reconhecidos programas que atuaram neste modelo estão o Larga Escala, o primeiro destinado a qualificar os trabalhadores da saúde que já atuavam nos serviços, na metade da década de 1980, antes mesmo da criação do SUS. No começo dos anos 2000 veio o Profae, o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem, destinado à formação de técnicos de enfermagem e, em 2010, o Profaps, Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde, que ampliou para nove o número de cursos técnicos ofertados sob a mesma perspectiva. E, em todos eles, a instituição que protagonizou o desenvolvimento dessa concepção de SUS-Escola foram as Escolas Técnicas do SUS (ETSUS), criadas pelo primeiro e responsáveis principais pelos outros dois.

Com o fim desses programas e outras iniciativas financiadas pelo Ministério da Saúde, a falta de recursos dificulta a continuidade do trabalho dessas instituições, que são, em sua maioria, vinculadas às secretarias estaduais de saúde – embora haja também algumas municipais ou ligadas às pastas de Educação e Ciência e Tecnologia – e sem orçamento fixo. “A maioria dessas escolas está ligada à gestão estadual. Então, se você tem uma gestão estadual comprometida, pode haver maior aporte de recursos. Mas a grande questão é a descontinuidade de recursos para que elas existam. O corpo docente é muito pequeno, muitos docentes são trabalhadores dos serviços de saúde e com alta rotatividade e, com isso, os esforços de capacitação acabam se perdendo”, analisa a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, Márcia Valéria Morosini. Ela acrescenta que é necessário conferir maior autonomia a essas escolas, um orçamento constante para um planejamento de mais longo prazo, aumentar o corpo de profissionais e a capacidade de retê-los.

A diretora da Escola Técnica de Blumenau, Cláudia Lange, por exemplo, considera que, com o fim dos grandes programas formativos nacionais, as escolas ganharam mais autonomia para elaborar cursos para as especificidades regionais e descentralizar sua atuação. Mas a falta de recursos fez com que, em pouco tempo, as ações fossem paralisadas: desde 2017 a Escola encerrou os cursos técnicos de saúde bucal, enfermagem e vigilância sanitária oferecidos diante da falta de repasses. “Precisamos de recursos para manter as capacitações e também a infraestrutura das escolas, porque não adianta querer fazer se não há como. E sabemos que há escolas muito sucateadas. Com a proximidade da Conferência, estamos trabalhando nesse planejamento das demandas”, afirma, pontuando que essas instituições poderiam servir de apoio à comunidade em que estão inseridas também com outras estratégias, como aulas de alfabetização ou o retorno da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que conseguiram oferecer no passado.

Ana Melhado / SES / SCA preocupação com a reativação de cursos técnicos está na SGTES, Secretaria está se articulando para retomá-los, não apenas em relação às ETSUS, mas às instituições que oferecem cursos na Educação Profissional em Saúde como um todo. “A SGTES tem fortalecido e ampliado o diálogo com a Rede de Escolas Técnicas do SUS e demais Escolas de Saúde Pública no sentido de estabelecer parceiras com estas e demais instituições de notório saber para ampliação da oferta de formação técnica e profissional em todo país”, informou a Secretaria, em nota enviada pela assessoria de imprensa. Entre os cursos que o Ministério da Saúde pretende financiar ainda este ano estão o de Técnico em Saúde Bucal, inicialmente para 2,6 mil trabalhadores em 15 estados, e em Órtese e Prótese, com previsão de apenas 300 vagas. Já o documento orientador da Conferência não cita diretamente as ETSUS, principais exemplos do modelo SUS-Escola, apenas defende a integração entre formação e sistemas locais de saúde. Mas o debate sobre o SUS-Escola está também associado à Educação Permanente e seu fortalecimento consta como preocupação no texto, que defende ser preciso valorizar a troca de saberes entre os trabalhadores para formar ou consolidar redes de cuidado e padronização do atendimento. “É necessário enfrentar o reducionismo na construção do conhecimento dos territórios e a burocratização formalista dos modos de pensar e realizar a educação no trabalho e no ensino da saúde, de tal forma que os recursos financeiros da educação permanente em saúde sejam aplicados em todas as formas de fortalecer a capacidade de aprender a aprender no cotidiano do trabalho no sistema de saúde e na formação técnica e profissional em saúde, contribuindo para promover a reflexão crítica nos processos de trabalho”, diz o texto.

Formação privada
O documento orientador da Conferência trata ainda da precarização da formação dos trabalhadores da saúde e defende uma maior fiscalização dos cursos, por parte de estados e municípios, que em sua maioria são oferecidos por instituições privadas. Entre as consequências dessa concentração está uma formação de nível médio e superior em pouco diálogo com o SUS.  Um levantamento realizado pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fiocruz mostra que embora 88% dos trabalhadores técnicos em saúde atuem no SUS, sua formação é feita em 80% dos casos na rede privada de ensino. Para a também coordenadora do Observatório, Márcia Valéria Morosini, os currículos desses cursos preocupam. “Nosso questionamento é em que medida esses planos de curso estão incorporando os princípios e diretrizes do SUS, um sistema que pretende ser universal, com atendimento integral, e que se orienta pela diretriz da equidade e um cuidado humanizado”, diz. Em resposta a essa concentração no ensino privado, a proposta da professora-pesquisadora é que haja uma maior destinação do dinheiro público para instituições públicas para que se fortaleçam todos os níveis de formação em saúde, desde os técnicos de nível médio até o ensino superior, passando pela educação permanente e cursos de especialização. “Gostaria que tanto estados quanto municípios e União oferecessem escolas públicas de forma articulada em quantidade suficiente para atender esses trabalhadores”, opina.

Em relação aos trabalhadores técnicos, Morosini defende que, junto ao fortalecimento das Escolas Técnicas do SUS, que se dedicam aos trabalhadores já inseridos nos serviços de saúde, é preciso investir também em outras instituições públicas que atuem na formação de jovens e novos profissionais, incentivando, principalmente, a implementação do Ensino Médio integrado à Educação Profissional em Saúde. “A rede que nos parece ter a melhor estrutura atualmente para oferecer essa formação é a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Entretanto, ela ainda atua pouco na área da Saúde”, diz. A pesquisadora explica que historicamente as escolas técnicas federais estiveram ligadas à formação para a indústria e para a agricultura e que, para essa mudança ser efetivada, é preciso uma ação conjunta entre os ministérios da Educação (MEC) e da Saúde. Com o anúncio da criação de 100 novos Institutos Federais pelo governo federal, a expectativa da professora-pesquisadora é de que parte dessa estrutura possa incorporar cursos da área. “A gente gostaria que essa Rede, que tem capacidade de disputar com o setor privado e modificar a realidade daqueles jovens que estão em busca de formação profissional, tenha a opção de realizar sua formação na área da saúde”, diz.