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Conferência Nacional defende carreira única e se opõe à privatização do SUS

Educação Permanente ganha protagonismo, enquanto Educação Profissional e trabalhadores técnicos têm pouco espaço na discussão
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 19/12/2024 14h32 - Atualizado em 19/12/2024 15h46
Foto: Erika Farias/EPSJV

A 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CNGTES), ocorrida entre os dias 10 e 13 de dezembro em Brasília, reafirmou valores defendidos ao longo das últimas conferências de saúde, como o SUS (Sistema Único de Saúde) público, com carreira única e a garantia de recursos para a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS). Mas, também reafirmando uma longa história de invisibilidade, a Educação Profissional de nível técnico e esse segmento de trabalhadores praticamente não tiveram espaço no evento.

A reportagem da Poli esteve na Conferência e vai tentar resumir quais foram os desdobramentos do Grupo de Trabalho criado pela Secretaria de Gestão da Educação e do Trabalho na Saúde (SGTES), do Ministério da Saúde, para a elaboração de uma proposta de carreira para os trabalhadores da área e os principais debates e decisões tomadas ao longo dos quatro dias de encontro.

Carreira Única

Uma carreira única, com financiamento compartilhado em fundo por municípios, estados e União, multiprofissional, com piso salarial nacional, ingresso por concurso público, jornada de 30 horas semanais, previsão de reajustes e gratificações por desempenho. Esta é a síntese de duas propostas relativas à carreira dos trabalhadores de saúde aprovadas pela Conferência. A pauta da carreira única é uma demanda antiga, que foi referendada na 17ª Conferência Nacional de Saúde e reiterada pela maioria dos 2.391 delegados, observadores e convidados que participaram da 4ª CNGTES.

O teor dos textos aprovados na Conferência está também alinhado com a discussão de um Grupo de Trabalho instituído pela SGTES no começo de 2024 para produzir um documento sobre o tema. Ambos preveem uma carreira multiprofissional, com financiamento tripartite e criação de um fundo para seu custeio. De acordo com documento que ainda está em elaboração pelo GT, ao qual a Revista Poli teve acesso, a carreira deve englobar trabalhadores que ingressaram por concurso público, seja por Regime Jurídico Único (RJU) ou Empregado Público (CLT). O texto propõe a organização da carreira por divisões por nível de escolaridade, cargos e profissões a serem definidos. A adoção do modelo por parte de estados e municípios seria feita por adesão. Indica, ainda, que “concomitantemente serão estabelecidas diretrizes nacionais de Proteção Social para a força de trabalho contratada por modelos alternativos à gestão direta do SUS”, referindo-se aos trabalhadores contratados pelas diversas formas de terceirização que hoje existem na Saúde.

Em entrevista à Poli, a secretária da SGTES, Isabela Pinto, explicou que a proposta de carreira em elaboração pelo GT, criado no começo de 2024, será finalizada em fevereiro de 2025 e, a partir daí, será necessário buscar diálogo com outras esferas de governo. “O trabalho dessa comissão já está bem avançado em relação às diretrizes dessa carreira única, mas esperamos também por esta Conferência para ter elementos para consolidar a proposta. E agora começa um processo de discussão com outros setores, além da Saúde, para que a gente possa discutir questões para viabilizar a existência da carreira no SUS, como a criação de um fundo”, diz.

A conselheira nacional de saúde e recém-eleita presidente do Conselho Nacional de Saúde, que representa a Federação Nacional dos Psicólogos, Fernanda Magano, destacou essa pauta da carreira única, prevista desde a lei de criação do sistema (8080/1990), como uma das bandeiras da próxima gestão. Para torná-la realidade, ela entende que é preciso estar em diálogo com o Congresso Nacional para garantir financiamento e com estados e municípios para a garantia da lógica interfederativa e o tratamento igualitário aos trabalhadores.

“Não há no Brasil nenhuma categoria que tenha uma carreira envolvendo as três esferas de governo. E se a gente está querendo uma carreira nacional, o primeiro desafio é esse”, defendeu Francisco Batista Júnior, farmacêutico hospitalar no Rio Grande do Norte e ex-presidente do CNS (2006-2011), que participou da 4ª CNGTES como convidado. Além de colocar em diálogo os três entes federativos para a necessária construção de um fundo, que em seus cálculos giraria em torno de R$ 25 bilhões por ano, para viabilizar uma iniciativa como essa será preciso, segundo ele, superar a lógica corporativista em que só é reconhecido o trabalhador de saúde que atua na área fim. “O recepcionista que está na recepção do hospital é trabalhador da saúde, o vigilante, os trabalhadores da limpeza... Tem que abarcar todo mundo e nivelar a remuneração nacionalmente”, argumenta o também integrante do GT instituído pela SGTES.

A ideia de carreira única foi bem recebida na Conferência, enquanto propostas que vislumbravam planos de carreiras específicas foram vetadas. Esse é o caso da proposta em que se defendia uma carreira de técnicos e auxiliares em saúde bucal. Para Batista Júnior, esse modelo de carreiras segmentadas é estratificante e repete o que já existe. “O SUS tem que ter regras únicas”, diz. No entanto, propostas que tratam da necessidade de planos de cargos e salários sem especificações de profissões e áreas foram aprovadas. A coordenadora da relatoria da Conferência, Priscila Viegas, vê a necessidade de uma maior discussão sobre a pauta. “Eu tenho visto que tem se constituído uma resistência aos planos de cargos e salários em prol da construção da carreira única. Não é que as pessoas sejam contra os planos de cargos e salários, mas elas querem que se sobressaia a unificação, questão que ficou num limbo de 18 anos”, diz.

Fernanda Magano pontua que a estrutura da carreira também precisa levar em conta o dimensionamento da força de trabalho do SUS, tema de outro Grupo de Trabalho organizado pela SGTES, mas que ainda não concluiu o trabalho. “Não podemos pensar em uma carreira sem pensar também na necessidade de ter todos os trabalhadores em uma lógica coletiva de saúde”, diz, citando como um exemplo contrário a essa perspectiva a criação de um programa específico para profissionais de medicina pelo governo federal. “Tínhamos grandes expectativas quando esse governo foi iniciado de que viesse a proposta do ‘Mais Saúde’ em vez de ‘Mais Médicos’. Corrigir a defasagem do número de médicos é fundamental, mas pensar em outras profissões da saúde também é necessário”, opinou.

Privatização

Erika Farias/EPSJVContra todas as formas de privatização. Essa foi uma das principais mensagens passadas pela 4ª CNGTES, numa posição que englobou a oposição não apenas à privatização ‘clássica’, expressa na venda de instituições e serviços públicos, mas também às formas de contratação de profissionais e modelos de gestão baseados na lógica e no direito privado. Mesmo propostas que defendiam o fortalecimento do SUS mas flexibilizavam algum aspecto do seu caráter público – como aquelas que estabeleciam um percentual mínimo de concursados na força de trabalho em saúde, abrindo brecha para outros vínculos – foram recusadas, mantendo, nesse caso, a determinação de obrigatoriedade de concurso como forma de ingresso.

De acordo com Francisco Batista Júnior essa não é uma novidade. “Quando analisamos os relatórios de todas as conferências nacionais, mesmo sem ser as temáticas, como é o caso desta, nós percebemos que a posição contra as diversas formas de privatização sempre foi majoritária. No entanto, se formos avaliar a correlação que existe entre o produto da conferência e o mundo real, a gente, de forma triste, vai perceber que não há correlação, porque acontece exatamente o inverso”, diz.
E completa: “A cada pós-conferência, a privatização avança. Então, se por um lado não dá para minimizarmos a importância das deliberações, que são manifestações políticas importantes, nós temos que admitir que é necessário fazer algo mais do que somente aprovar nas conferências”.

Outro posicionamento que chamou atenção como parte da oposição a todas as formas de privatização na Conferência foi em relação aos hospitais federais do Rio de Janeiro. Heranças do tempo em que a cidade era capital federal, os seis hospitais viveram sucessivas crises financeiras e de gestão nos últimos anos e, mais recentemente, tiveram sua administração transferida para outros entes pelo Ministério da Saúde. O destino de quatro deles já foi definido. Dois foram transferidos para a gestão da prefeitura do Rio de Janeiro, um para o Grupo Hospital Conceição (GHC) e outro para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
(EBSERH). O destino dos outros dois ainda não está oficializado. Embora não haja propostas sobre isso no documento da Conferência, por tratar-se de um caso recente, o tema motivou manifestações, principalmente da Frente Nacional Contra a Privatização, durante a cerimônia de abertura da 4ª CNGTES. Denunciando o que consideram um desrespeito por parte do governo federal em relação às decisões tomadas pelos conselhos de saúde municipal, estadual e federal, as palavras de ordem entoadas eram “Controle social na negociação, fatiamento não”.

Os críticos às decisões tomadas pelo Ministério da Saúde em relação aos hospitais federais identificam o processo em curso como um exemplo da tendência à privatização do SUS. Isso porque, de um lado, acredita-se que os hospitais que passarão a ser administrados pelo município do Rio serão geridos por uma Organização Social da Saúde (OS), como já é a realidade da maioria das unidades de saúde da cidade. Já no caso do GHC, trata-se de uma empresa de Sociedade Anônima que, embora seja considerada pública porque tem o Ministério da Saúde como principal acionista, tem outros proprietários minoritários e conta com um modelo de gestão de direito privado em uma estrutura que inspirou a EBSERBH. Batista Junior reconhece que não se trata de uma privatização clássica, quando o governo de fato vende uma empresa estatal para uma empresa privada, mas considera esse empresariamento da gestão ainda mais perverso. “Não há regras claras, nem um padrão seguido nacionalmente”, diz, apontando a falta de publicização dos contratos e pouca transparência na destinação dos recursos nesses processos.

O farmacêutico defende ainda que se o modelo de gestão direta estabelecido entre os governos e essas organizações fosse adotado pelo setor público, o gerenciamento seria feito com maior rapidez sem a necessidade de terceirização dos serviços. “No hospital onde eu trabalho, não temos autonomia financeira. Queremos um contrato de gestão entre esse serviço e a gestão em que iremos assumir responsabilidades e obrigações, como um número determinado de atendimentos ou exames de tomografia, gastos com medicamentos, e teríamos na nossa conta, todo início do mês, o dinheiro que é suficiente para fazer aquilo funcionar, para consertar os [aparelhos de] ar-condicionado, para trocar as lâmpadas, coisas básicas que não conseguimos fazer, porque não temos autonomia”, exemplifica.

Trabalhadores Técnicos e Educação Profissional

As propostas relacionadas aos trabalhadores técnicos de forma específica e à Educação Profissional de nível médio estiveram pouco presentes na Conferência. A maioria das propostas foram feitas pela Conferência Livre ‘Formação e trabalho em saúde: por uma concepção ampliada dos técnicos no Sistema Único de Saúde – SUS’, realizada na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) como preparatória para a etapa nacional. Embora o relatório final ainda não esteja disponível, o documento debatido faz várias referências a não utilização da modalidade de ensino a distância (EaD) em todos os níveis de ensino e há várias outras propostas que pedem o fortalecimento da formação para cuidadores e doulas. Para Geandro Pinheiro, um dos coordenadores da conferência livre, essa presença restrita evidencia o acerto em ter se proposto uma Conferência específica. “Se a gente não fizesse isso, seria uma reiteração dessa invisibilidade”, diz.

Uma das propostas oriundas da conferência livre que foram aprovadas na conferência trata da implementação da gestão participativa por meio dos conselhos locais de saúde com incentivo à participação dos técnicos. Na votação da plenária final, foi retirada da versão original a referência a se manter uma proporcionalidade de técnicos em relação aos profissionais de ensino superior. Outra proposição aprovada destacava a desprecarização dos trabalhadores técnicos, enfatizando a contratação via concurso público e o vínculo estatutário. Também foram aprovadas sem modificações três propostas que defendiam o fortalecimento da Educação Profissional de nível médio e da Educação Permanente, propondo maior financiamento e nomeando especificamente as Escolas Técnicas do SUS (ETSUS), as Escolas de Saúde Pública e a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que envolve os Institutos Federais.

Para representantes de Escolas Técnicas do SUS ouvidas pela reportagem, o que mais chamou a atenção foi a pouca presença de propostas relacionadas a essas instituições, o que parece expressar o desconhecimento em relação ao papel que elas desempenham. “A maioria das propostas está voltada para a graduação e achei propostas muito distantes de nós”, avalia a diretora da ETSUS da cidade de São Paulo, Cláudia Abreu. Colabora para essa invisibilidade, diz ela, a pouca definição do que é uma escola do SUS, muitas vezes citada de forma homogênea, enquanto há instituições focadas no ensino técnico, como é o caso das ETSUS, e outras no ensino superior, como as Escolas de Saúde Pública. Essa falta de conhecimento tem contribuído para a interrupção de formações e recebimento de recursos, segundo Abreu.

Por outro lado, a aprovação de revisão da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) pela conferência é vista como uma possibilidade de ampliar o papel das ETSUS e garantir uma melhor estrutura das instalações. Outro ponto que favorece o trabalho dessas escolas é a aprovação de uma diretriz relacionada ao fortalecimento do SUS como Escola, modelo pedagógico diretamente relacionado ao trabalho desenvolvido por estas instituições. Um dos caminhos para que essa perspectiva de ampliação das atividades se concretize, na visão de Abreu, é a descrição detalhada, na nova versão da PNEPS das funções das Escolas Técnicas, tradicionalmente responsáveis pela formação de trabalhadores técnicos para o SUS, prevendo um percentual do orçamento destinado a essas escolas. “O financiamento não deveria depender de programas, mas vir de forma direta para as Escolas Técnicas do SUS, para que a gente pudesse executar aquilo que o território pede, aquilo que são as necessidades locais”, defende.

Josenam Costa, diretora da ETSUS de Vitória, no Espírito Santo, concorda que é preciso garantir um maior aporte de recursos e que isso poderia estar na revisão da Política de Educação Permanente, mas defende também iniciativas do governo federal que não se limitem a programas pontuais, como foi feito no passado. Assim como em São Paulo, a unidade coordenada por ela deixou de oferecer cinco cursos técnicos nos últimos anos e hoje atua apenas com educação permanente e cursos de pós-técnico sobre doenças crônicas.

A diretora do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges), Lívia Mello, comemorou a decisão sobre o fortalecimento da PNEPS nas propostas aprovadas pela Conferência e entende que este é um espaço de protagonismo político que pode auxiliar em uma maior destinação de recursos para a área. “Precisamos reorientar o modelo de atenção para que ele seja de cuidado efetivamente, de trabalho em equipe, interprofissional, interdisciplinar. É preciso reorientar modelos de atenção, e não é possível fazer isso sem processos de educação permanente”, avalia. Em relação às ações relacionadas à Educação Profissional, ela informa que a SGTES acaba de fechar um acordo para a oferta de curso técnico em órteses e próteses, que será articulado com as obras do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). “Precisamos saber onde serão construídas oficinas de ortopedia e os CER [Centros Especializados em Reabilitação] e isto ainda está sendo delimitado pelo PAC”, diz.

Diretrizes Curriculares

A necessidade de criação e revisão das diretrizes curriculares dos cursos da área da saúde apareceu em diversas propostas da conferência, em especial voltadas para segmentos do ensino superior, como cursos de farmácia e educação física. No entanto, na plenária final os textos foram modificados para abarcar a totalidade das formações, sem especificar profissão nem nível – de graduação ou médio. Em relação aos cursos técnicos, o apontamento dessa necessidade de revisão também esteve presente, mas sem demandas por cursos específicos.

De acordo com a diretora do Deges/SGTES, há 15 cursos de graduação em processo de revisão curricular atualmente, sendo a mais avançada a de enfermagem. Durante a cerimônia de abertura, a conselheira e coordenadora adjunta da 4ª CNGTES, Francisca Valda, cobrou do Ministério da Educação (MEC) a aprovação das diretrizes curriculares aprovadas pelo CNS relativas aos cursos de graduação em enfermagem. Em relação aos cursos técnicos, há duas diretrizes curriculares em fase de elaboração por parte da SGTES. Uma delas é a do técnico em saúde bucal, anteriormente chamado de técnico em higiene dental e a segunda é a dos técnicos em enfermagem. Ambas devem ser apresentadas em 2025. Integrante da comissão de elaboração das diretrizes para técnicos de enfermagem criada pela SGTES e da Comissão Nacional de Técnicos e Auxiliares de Enfermagem da Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), Chelley Tonini, técnica na Estratégia de Saúde da Família (ESF), espera que esse processo gere mudanças importantes na formação dos profissionais. “A formação do profissional técnico em enfermagem, ao longo dos anos, caracterizou-se por ser substancialmente tecnicista e pautada no desenvolvimento de procedimentos com foco curativista”, diz. Para as áreas de atuação ainda não regulamentadas, a SGTES está atuando na elaboração de diretrizes para programas de qualificação de doulas e agentes indígenas de saúde e de saneamento.