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Conquistas e desafios do controle social na gestão do trabalho e da educação na saúde

Ao longo de duas décadas, o setor viu sua principal política ser fragilizada. Em momento de retomada, conselheiras apostam no fortalecimento da participação popular
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 24/06/2024 13h24 - Atualizado em 24/06/2024 13h32
Foto: Freepik

Quais são as maneiras de aumentar a articulação em torno da Educação em Saúde e da Gestão do Trabalho em uma perspectiva democrática e de melhoria das condições trabalhistas? Essa é a principal discussão proposta pelo Eixo 1 do documento orientador da 4ª Conferência Nacional de Gestão da Educação e do Trabalho na Saúde (CNGETS), que vai acontecer entre os dias 10 e 13 de dezembro, em Brasília. Entre os pontos de debates estão a gestão participativa na promoção da equidade na Saúde e o papel da Educação em Saúde como forma de transformar as relações de trabalho. “Nas discussões deste eixo, queremos criar um ambiente político para garantir recursos públicos para construção de carreiras dignas no SUS e fomentar atividades de educação permanente. Então, a nossa tarefa enquanto controle social é muito grande”, diz a conselheira nacional de saúde Francisca Valda, que é também coordenadora da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho (Cirhtr), do CNS.
 
A participação social na formulação e desenvolvimento das políticas de saúde está prevista na Constituição e em lei específica. Na seção da Saúde, a Carta Magna é explícita em prever a “participação da comunidade”, já a lei nº 8.142/1990 detalha como esse processo acontece e prevê tanto o acompanhamento das ações e políticas implementadas pelo poder executivo como contribuições na elaboração de estratégias para que essas iniciativas sejam efetivadas. O responsável por coordenar essa participação na saúde é o CNS, o Conselho Nacional de Saúde. Na sua estrutura, portanto como parte do controle social, a Cirhtr é a principal instância responsável por pautar os temas relacionados à Gestão do Trabalho e à Educação em Saúde. Para qualificar e ampliar essa participação, o CNS possui a Comissão Intersetorial de Educação Permanente para o Controle Social em Saúde (veja mais no box na página 30). Na Educação, duas das principais frentes de atuação da Cirhrt são o acompanhamento da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) e das Diretrizes Curriculares Nacionais de cursos da área. Na Gestão do Trabalho, o foco está no desempenho da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS.

Educação Permanente
A criação de uma política para a formação de trabalhadores do SUS pautada pela participação social é uma demanda presente desde a formulação do Sistema Único de Saúde e discutida em 1986, durante na 8ª Conferência Nacional de Saúde, e na 1ª Conferência Nacional de Recursos Humanos para o SUS, realizada no mesmo ano. Formulada ao longo da década de 1990, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde foi encampada logo no início do primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, instituída em 2004 pela portaria do Ministério da Saúde nº 198 e reformulada em 2007, sob a Portaria nº 196, sempre enfocando a importância de que o processo formativo na saúde fosse também participativo. “A Educação Permanente trabalha com a perspectiva de transformação das práticas, diferente da educação continuada, limitada à atualização técnico científica. A centralidade da discussão está nos processos de trabalho e nas demandas dos diferentes profissionais para que juntos possam produzir cuidado”, explica a vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Monica Vieira.

A primeira proposta de implementação da PNEPS é considerada pelas entrevistadas um exemplo de política de formação com participação social. O texto da primeira portaria previu a construção de Polos de Educação Permanente em Saúde, que seriam responsáveis pela articulação das demandas de formação em âmbito local, municipal e regional, tendo como centro as relações de trabalho. Entretanto, essa estratégia durou pouco. Três anos depois entra em vigor a segunda portaria, que extinguiu os polos e limitou o número de integrantes das Comissões Permanentes de Integração Ensino-Serviço (CIES), formadas em sua maioria por gestores da área da Saúde e responsáveis por conduzir a política. Francisca Valda relembra o início da Política como um momento em que havia escuta de diversos atores, como previsto na criação dos polos, que seriam responsáveis por elencar as demandas estaduais, municipais e articular sua implementação. “O polo tinha a força do movimento social e isso pressionava a criação de cursos entendidos como demandas locais, seja turmas para cursos técnicos em saúde bucal, enfermagem, análises clínicas... As reuniões aconteciam nos espaços das secretarias de saúde e, a partir das demandas aprovadas, eram construídas parcerias com as instituições necessárias para fortalecer a educação permanente”, conta.

A análise de Monica Vieira, no entanto, aponta limites importantes no resultado desse processo, apesar do desenho democrático. “Constatamos que desde o primeiro momento as ações de Educação Permanente foram implementadas e coordenadas por instituições privadas de ensino em uma situação de muita desigualdade de poder. Como que a participação social vai competir com a elaboração de projetos de Educação Permanente quando as universidades privadas já as tinham prontas?”, avalia, concluindo que a educação continuada foi o modelo que acabou prevalecendo e que o ideal de participação social não se concretizou. Segundo Vieira, um diagnóstico realizado pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fiocruz em 2006 identificou situações similares ao elencado por um relatório produzido pelo Departamento de Gestão da Educação na Saúde (Deges/SGTES), responsável pelo acompanhamento da política, em 2018. “O mapeamento realizado pelo Deges aponta para desafios relacionados à desarticulação entre gestores, trabalhadores, controle social e instituições de ensino; reduzida implantação de CIES, pequena participação de gestores municipais; indefinição de parâmetros para elaboração de projetos, ausência de avaliação e dificuldades para utilização de recursos. Um diagnóstico próximo do que foi realizado em 2006”, diz. 

Nesse momento de retomada da agenda da área da Educação na Saúde, Vieira espera que as proposições da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) de ações mais integradas “permitam maior organicidade na construção dos planos estaduais de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e o melhor uso dessa perspectiva integradora da Educação Permanente”. O documento orientador da Conferência aponta na mesma direção. “A realização da 4ª CNGTES é, portanto, um momento especialmente importante para o debate em torno do conjunto destas iniciativas no campo da Educação Permanente em Saúde, de modo a se formular proposta que possam vir a compor uma política pública abrangente nesta área”, diz o texto.

Diretrizes Curriculares
Além de acompanhar as políticas de Educação Permanente, a Cirhrt, que é a principal instância de participação social nessa área, também tem entre as suas atribuições atuais a validação junto ao Ministério da Educação (MEC) de quatro cursos de graduação na área da Saúde: medicina, odontologia, psicologia e enfermagem. Essa previsão está no decreto nº 9.235/2017, pelo qual o MEC consulta o CNS sobre a aprovação de novos cursos, em caráter opinativo. A principal frente de atuação da Comissão em relação a esses cursos é tentar conter a proliferação de ofertas na modalidade de ensino a distância. Embora a batalha não esteja sendo simples para os conselheiros, uma vez que esses cursos se multiplicam, Valda considera que há resultados positivos. “O Conselho avalia e não reconhece nenhum curso em modalidade EaD e devolvemos o processo para as instituições. Embora esses cursos muitas vezes não interrompam o processo de implementação, o arcabouço normativo do CNS tem sido citado em inquéritos abertos pelos Ministério Público Federal para que esses cursos sejam suspensos”, diz Valda. Para a conselheira, esses resultados são animadores e exemplos de enfrentamento contra a mercantilização da Educação.

Em 2024, com a reformulação da Câmara Técnica da Comissão, responsável por realizar essas análises, além dos cursos de graduação foram incluídos nas atribuições da Cirht os segmentos do ensino técnico e de pós-graduação. Diferente dos quatro cursos citados, não há previsão legal de avaliação das diretrizes curriculares de nenhuma formação específica nestes outros dois segmentos, mas há um acompanhamento das determinações expedidas pelo Ministério da Educação.

Isso não significa que não haja trabalho a ser feito. “Iremos contribuir com o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, queremos contribuir com as resoluções que forem aprovadas na Setec [Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação] e no Conselho Nacional de Educação”, afirma Francisca Valda. Recém-empossada como representante da EPSJV/Fiocruz na Câmara Técnica da Cirhrt, Monica Vieira participará da primeira reunião do eixo de ensino técnico no final de maio.

Apesar da formalização de um eixo para discussão do ensino técnico, as discussões e emissões de pareceres não são novidade para os membros da Cirhrt. Mesmo não tendo sido convocada a se pronunciar, Francisca Valda afirma que a comissão enviou contribuições para o Catálogo aprovado em janeiro de 2021, que atualizou a versão de 2014. Entre as principais mudanças, conforme noticiado pelo Portal EPSJV em novembro de 2020, está a redução de carga horária de alguns cursos, como o de Cuidadores de Idosos, de 1,2 mil para 800 horas, e a abertura para o formato de educação a distância. “Nem tudo que sugerimos foi acatado. Por exemplo, nós não queremos formação por EaD, mas eles aprovaram 50% da carga nessa modalidade”, lembra Valda.

Outra contribuição relacionada a cursos técnicos foi relativa ao programa ‘Saúde com Agente’, agora rebatizado para ‘Mais Saúde com Agente’. Valda afirma que as propostas da Comissão foram ignoradas pelo governo anterior, responsável por oferecer cerca de duas mil vagas para formação técnica em modalidade de educação a distância para agentes comunitários de saúde e de endemias. Com o novo governo, as propostas foram contempladas em parte e houve acordo em oferecer parte das aulas presenciais, reformulação parcial do conteúdo do curso e, com isso, a inclusão da Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) entre as ofertantes. Em 2023, o Ministério da Saúde informa que houve capacitação de 1,7 mil agentes em modalidade híbrida, mesmo formato previsto pela Portaria 2.304/2023 que institui o programa Mais Saúde com Agente e que incorpora a Rede de Escolas Técnicas do SUS para o triênio de 2024-2026.

Carreiras no SUS
Classificada pelo documento orientador da Conferência como “um dos mais importantes instrumentos de democratização na administração pública brasileira”, a Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS foi uma das primeiras instâncias de participação criadas após o nascimento do sistema e foi instituída ainda em 1993, mas suas atividades foram suspensas em seguida. Em junho de 2003, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a reinstalação da Mesa, responsável por aprovar nove protocolos entre 2003 e 2015, que tratam sobre implementação de planos de carreiras, desprecarização do trabalho e promoção do trabalho decente e da saúde entre os trabalhadores. Em 2019 as atividades da mesa foram suspensas, e por iniciativa do Conselho Nacional de Saúde, voltou a ser reinstalada em 2023. A implementação dos protocolos propostos, no entanto, depende das secretarias municipais
e estaduais.

O estudo ‘Implantação das mesas nacionais de negociação permanente do Sistema Único de Saúde em secretarias estaduais e municipais de saúde’, publicado em 2017 e realizado por pesquisadores do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) identificou que entre 2012 e 2013, um período em que as mesas deveriam estar mais ativas, apenas 26% das 519 secretarias pesquisadas instituíram mesas de negociação. Entre as 137 identificadas, apenas 87 estavam em funcionamento. Como principais motivos para a não implementação dessa instância, o estudo elencou a falta de assessoria técnica ou a utilização de outras formas de negociação. Por outro lado, quase metade dos entrevistados (46,7%) apontaram mudanças na Gestão do Trabalho com a implementação das mesas, incluindo a realização de concursos públicos, melhoria das condições de trabalho e implementação de planos de cargos, carreiras e salários.

Como maneira de fortalecer as discussões sobre a carreira no SUS, o Ministério da Saúde criou duas comissões para investigar o perfil desses trabalhadores e construir novas propostas de planos de carreira, ambas com representação do Conselho Nacional de Saúde. No quesito características da força de trabalho no SUS, o MS instituiu, sob a Portaria 3.225/2024, uma Comissão Nacional para realizar esse dimensionamento sob coordenação da SGTES. Além de oito integrantes do Ministério, a Comissão também será formada por um representante do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), outro do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems), um do Conselho Nacional de Saúde, três da Cirhrth e outros três da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, bem como um representante da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Outra comissão, criada em janeiro de 2024 e também sob coordenação da SGTES, está responsável pela reestruturação das carreiras no SUS e conta com uma representação da Cirhrt na sua composição. “Estamos construindo uma proposta com muito fundamento, debate, e com todos os atores envolvidos presentes. Se conseguirmos essas vitórias, depois ficaremos no acompanhamento para verificar se a lei está sendo cumprida ou se há um afastamento das determinações “, garante Francisca Valda. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o país possui três milhões de trabalhadores da saúde, sendo 75% mulheres. A faixa etária média é de 40 a 44 anos, independentemente do gênero. Os profissionais sem ensino superior são maioria: 53%. A maior parte da categoria é formada por técnicas de enfermagem, que somam 769.203 mil profissionais.

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