O Ministério da Saúde passará a ter uma nova estrutura a partir do dia 31 de maio. É quando entra em vigor o decreto 9.795, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia Paulo Guedes e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta na sexta-feira (17), e publicado em Diário Oficial nesta segunda (20).
O decreto faz várias alterações no organograma do Ministério. Entre as principais estão a criação de duas novas secretaria no âmbito do Ministério – a de Atenção Primária à Saúde e a de Atenção Especializada à Saúde – e a extinção de outra – a de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP).
De acordo com o decreto, a área de atenção básica, antes sob a responsabilidade de um departamento subordinado à Secretaria de Atenção à Saúde (DAB/SAS), ganha agora status de secretaria dentro da nova estrutura do Ministério, com o nome de Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Dentro dela há três departamentos: os recém-criados Departamentos de Saúde da Família e de Promoção da Saúde, bem como o de Ações Programáticas Estratégicas, antes alocado na SAS. Esta, por sua vez, passa a se chamar Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), herdando todos os departamentos anteriormente vinculados à SAS, com exceção do que foi realocado para a recém-criada secretaria de atenção primária. Alguns deles com alterações de nome, como é o caso do Departamento de Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social em Saúde, que ganhou um “privado” no título - passará a se chamar Departamento de Certificação e Articulação com os Hospitais Filantrópicos e Privados - e do Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência, que passa a se chamar de Atenção Hospitalar, Domiciliar e de Urgência.
Em nota publicada no portal do Ministério da Saúde, a Pasta defendeu que as mudanças trarão “mais resolutividade ao SUS”. A nova secretaria de atenção primária, diz a nota, “tem como missão principal a expansão e qualificação dos serviços da área por meio da Estratégia de Saúde da Família”. O texto também afirma que a nova secretaria vai prestar apoio técnico para estados e municípios para implementação das políticas de saúde para populações “estratégicas ou vulneráveis”, citando como exemplos crianças, adolescentes, mulheres, homens e pessoas idosas. Na saúde mental, a SAPS terá como atribuição o “fortalecimento da rede de atenção psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no SUS”.
E o controle social?
A partir da entrada em vigor do decreto, a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério deixa de existir. A secretaria foi criada no primeiro mandato do governo Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, com o nome de Secretaria de Gestão Participativa. A denominação atual foi dada por um decreto de 2006. No organograma vigente, a SGEP tinha entre suas competências coordenar ações de auditoria, ouvidoria e promoção da equidade no SUS, bem como apoiar os mecanismos de controle social e participação popular, como os conselhos e as Conferências de Saúde.
A SGEP também financiou algumas iniciativas de formação no âmbito do SUS, como o Curso de Educação Popular em Saúde (EdPopSUS), coordenado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Concluído em 2018, o curso formou mais de 9,5 mil agentes comunitários de saúde (ACS), agentes de combate às endemias (ACE), conselheiros de saúde, militantes de movimentos sociais e lideranças comunitárias em 15 estados.
Segundo o Ministério, os recursos antes alocados à SGEP serão realocados para as “diretrizes prioritárias” da Pasta, com parte das suas atribuições sendo remanejadas para outras secretarias. É o caso do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), cujas atribuições serão remanejadas para a recém-criada Diretoria de Integridade, órgão de assistência direta ao ministro da Saúde. Segundo a nota institucional, a nova diretoria, além de ficar responsável pela supervisão das atividades de controle interno e ouvidora dentro do Ministério, terá também a função de combater “atos lesivos dentro da estrutura da Pasta”. “A mudança é parte também de uma decisão de governo, que apoia a transparência e combate à corrupção na gestão pública”, afirmou o Ministério, em nota.
No novo organograma, contudo, não consta a realocação das atribuições dos outros departamentos anteriormente vinculados à SGEP, como o de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social, que deixa de existir. O mesmo acontece com o Departamento de Ouvidoria-Geral do SUS, que hoje tem como uma de suas atribuições “incentivar a participação de cidadãos e de entidades da sociedade civil na avaliação, no controle social dos serviços prestados e na qualificação da gestão do SUS”.
O fim da SGEP acontece quase ao mesmo tempo do decreto 9.759, de abril deste ano, que extinguiu instâncias de participação e controle social vinculadas ao governo federal e revogou o decreto que instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) em 2014. De acordo com o decreto, os órgãos têm até meados de junho para enviar ao governo uma justificativa para sua existência. A expectativa do governo é reduzir de 700 para 50 o número de conselhos e outros órgãos colegiados previstos pela PNPS e pelo Sistema Nacional de Participação Social (PNPS). Está marcado para o dia 12 de junho no Supremo Tribunal Federal o julgamento de uma ação contra o decreto ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores.
Para Francisco Batista Júnior, que foi o primeiro presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que não era representante de governo e atualmente representa o Conselho Federal de Farmácia em duas comissões do CNS, a extinção da SGEP representará um “prejuízo terrível”, sobretudo para o controle social no SUS. Segundo ele, a Secretaria foi fundamental para a realização de iniciativas importantes, como a Caravana em Defesa do SUS, que em 2009 percorreu os estados do Brasil para discutir os problemas e avanços do SUS em cada um deles, e do qual participaram, além de representantes da própria SGEP, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), os conselhos estaduais de saúde e também representantes de movimentos sociais. Batista Júnior lembra ainda a 1ª Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, realizada em Brasília em 2010, com apoio da Secretaria. “A SGEP, sob essa ótica, cumpria um papel fantástico de estimular o controle social, particularmente o CNS. Através dos seus recursos próprios, ela atuava fazendo capacitação pelo país afora, sempre com a parceria do CNS e com os conselhos locais, discutindo temas que a gente achava importante para o SUS”, afirma o ex-presidente do CNS. “Extinguir a SGEP é por um fim nesse processo de construção coletiva que vinha acontecendo de forma muito interessante”, lamenta.
Programa de HIV/Aids sob risco?
Já a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) permanece com o mesmo nome, mas alguns dos seus departamentos passaram por modificações. É o caso do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, que passará a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Isso significa que o departamento que antes era voltado exclusivamente para ações relacionadas ao HIV/Aids e às doenças sexualmente transmissíveis passará a dividir espaço com as políticas públicas voltadas a doenças como a hanseníase e a tuberculose.
A retirada do termo ‘HIV/Aids’ do nome do departamento foi alvo de críticas de movimentos sociais. No dia seguinte à publicação do decreto, uma nota crítica à mudança passou a circular nas redes sociais. Assinado pela Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids), pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), pelo Fórum de Ongs/Aids do Estado de São Paulo (Foaesp), pelo Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (Gapa/RS) e pela Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+Brasil), o manifesto alerta que a mudança significará o fim do Programa Brasileiro de Aids. “O governo, na prática, extingue de maneira inaceitável e irresponsável um dos programas de AIDS mais importantes do mundo, que foi, durante décadas referência internacional na luta contra a Aids”, criticaram as entidades, complementando: “Mais do que um programa, esse Decreto acaba com uma experiência democrática de governança de uma epidemia baseada na participação social e na intersetorialidade”.
Em nota, o Ministério da Saúde garantiu que o programa não será prejudicado com a mudança e que não haverá perda orçamentária para o HIV/Aids. “A ampliação da assistência e a melhoria do diagnóstico são ações que continuarão sendo adotadas pelo departamento, visando garantir acesso ao tratamento e melhoria da qualidade de vida dessa população”, afirmou a Pasta. O ministério defendeu ainda que a mudança tem como objetivo “trabalhar com as doenças mais comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais”. O HIV/Aids, a tuberculose e a hanseníase, continuou a nota, “possuem características de doenças crônicas transmissíveis, com tratamento de longa duração, o que permite uma integração das ações. As pessoas vivendo com HIV, por exemplo, têm maior risco de desenvolver a tuberculose, além de ser um fator de maior impacto na mortalidade nesses casos”.
Gestão da educação e do trabalho volta a ter dois departamentos
Há mudanças também na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde (SGTES), que na nova configuração do Ministério terá apenas dois departamentos, e não três, como anteriormente. Isso porque o Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde deixará de existir. O setor foi uma inovação do decreto assinado durante o governo Michel Temer. Com sua extinção, a SGTES volta a ter a estrutura que tinha desde o governo Lula, com dois departamentos, mas com uma pequena mudança de nome em um deles: o Departamento de Gestão e Regulação do Trabalho em Saúde perde a regulação no nome, passando a se chamar apenas Departamento de Gestão do Trabalho em Saúde.
Contexto adverso
Fazendo um balanço das mudanças previstas no novo organograma, Angélica Fonseca, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, acredita que é precipitado falar nos ganhos que uma Secretaria voltada para a atenção primária dentro da estrutura do ministério pode representar. “Para que a atenção primária confirme seu potencial de avançar na direção de uma saúde integral para todos - com promoção e prevenção, multissetorialidade, multidisciplinaridade e participação - são necessárias ações e investimento, em sentido amplo, no SUS. O que se desejaria é o fortalecimento tanto da APS quanto da rede de atenção à saúde da qual ela é constituinte”, defende Angélica. Nesse sentido, as supressões feitas pelo decreto ao organograma do Ministério – como a extinção da SGEP e a mudança de nome de alguns departamentos, como o que trata do HIV/Aids – bem como o contexto de desfinanciamento do SUS e de outras políticas sociais, principalmente após a aprovação da Emenda Constitucional 95, são elementos que devem ser levados em conta. “Para falarmos de ganhos é necessário reconhecer as perdas. A primeira que não pode ser desconsiderada diz respeito ao financiamento do SUS que inevitavelmente tem sido afetado pela EC 95”, destacou Angélica, complementando em seguida: “Houve supressões importantes nesta reestruturação do organograma, que podem afetar a composição da rede de atenção, e que impactam diretamente cuidados que dependem de uma atenção primária à saúde forte. Sem essa análise, o novo status que se associa a criação desta secretaria pode não significar nada além de um discurso da gestão, que não se concretizará como aumento da qualidade do SUS”, alerta.
Saúde indígena permanece como secretaria
Criada em 2010 e recentemente ameaçada de extinção, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) permaneceu no novo organograma. No início do ano o ministro deu indicação de que pretendia incorporar parte das ações da Sesai na área de atenção básica do ministério e descentralizar outras ações para os municípios. A proposta enfrentou forte reação dos movimentos indígenas, que organizaram protestos em várias cidades, temendo que a descentralização significasse um retrocesso nas políticas de saúde para essas populações. Visão compartilhada por especialistas na área, como a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Ana Lucia Pontes. Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz em abril, ela argumentou que 80% da população indígena vive em municípios com menos de 50 mil habitantes, com pouca estrutura da rede de atenção primária. “Esses municípios não dariam conta da logística e dos custos necessários para atender as comunidades indígenas que, em muitas áreas, exigem transportes e alojamento de profissionais em períodos prolongados”, explicou. Já naquela ocasião, diante dos protestos, o ministro garantiu a permanência da secretaria na estrutura do ministério.
Mas em entrevista após a publicação do decreto com o novo organograma Ana Lúcia afirma que, a despeito da manutenção da Sesai na estrutura do ministério, algumas mudanças previstas pelo decreto preocupam. Exemplo é a extinção do Departamento de Gestão da Saúde Indígena, cujas atribuições, segundo ela, foram diluídas entre os departamentos restantes. “Mas nos preocupa a saída dessa estrutura administrativa, porque ainda há muita incógnita sobre qual será o modelo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena nesse contexto atual”, diz a pesquisadora da Ensp/Fiocruz. Outra fonte de preocupação é o acréscimo da expressão “integração ao SUS” no parágrafo que explicita as atribuições da Sesai na coordenação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, entre outros. “Esse discurso, por um lado, é estranho por ser redundante, porque o subsistema foi criado dentro da lei orgânica do SUS. Por outro lado soa muito familiar com essa vertente integracionista das políticas indigenistas que existe há décadas, e não sabemos o quanto isso vai no sentido de uma perspectiva de diluir as diferenças e diversidades da saúde indígena dentro da estrutura do SUS”, pondera. Ela alerta ainda para mudanças que dizem respeito ao papel da Sesai no fortalecimento do controle social. No organograma anterior, a secretaria tinha como papel fortalecer o controle social no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Pelo novo texto, essa atribuição passou a ser o “fortalecimento da participação social dos povos indígenas no SUS”.