‘Educação e democracia: desafios e resistências nas relações entre educação básica e ensino superior frente à Base Nacional Comum Curricular e as mudanças na LDB pós-golpe de 2016’. Esse foi o tema do debate que a reportagem da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) acompanhou na manhã de sexta-feira (25) durante a Conferência Nacional Popular de Educação, a Conape. O debate foi organizado pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped) e pela Associação Brasileira de Currículos (ABdC).
Inês Oliveira, presidente da ABdC, afirmou que a discussão sobre a BNCC foi sofrendo uma série de inflexões no âmbito do governo desde o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff. Segundo ela, a justificativa inicial para a necessidade da base apresentada pela Secretaria de Atenção Básica do Ministério da Educação para a ABdC era a ampliação do número de municípios que estavam adquirindo sistemas de ensino da iniciativa privada. “A justificativa era a necessidade política de que o MEC assumisse um protagonismo nesse debate, porque se não as redes privadas assumiriam”, disse Inês.
No entanto, destacou, ainda no segundo mandato de Dilma Rousseff, houve uma inflexão no debate, com o governo se aproximando cada vez mais das formulações defendidas pelas fundações e entidades empresariais da educação, como a Fundação Ayrton Senna e o Instituto Unibanco. “As entidades ligadas à educação pública foram perdendo espaço, e percebemos uma relutância do MEC em acatar nossas proposições nesse debate. Começou a parecer que se tratava de fato de abrir espaço para os interesses de mercado com essa base”, aponta Inês.
A partir do governo Temer isso se agravou, segundo ela. “Houve então um aprofundamento da defesa dos interesses do mercado, da relação com entidades privadas e em consequência, do tecnicismo na formulação da base”, criticou. Para a presidente da ABdC, a BNCC, tanto a da educação infantil e fundamental, já homologada pelo CNE, quanto a do ensino médio, ainda a ser homologada, foram elaboradas segundo uma concepção ultrapassada de educação e de currículo.
“Ninguém do campo de currículos raciocina mais a partir da concepção que fundamenta essa base: a gente não considera que currículo é lista de conteúdos a serem ensinados, que os sujeitos se formem pela aprendizagem de conteúdos padronizados a partir de disciplinas fechadas. Essa é uma concepção já condenada no campo do currículo. Sabemos que não é assim que funcionam os processos de escolarização”, afirmou.
Lógica perversa
Carlos Eduardo Ferraço, coordenador do GT Currículo da Anped, lembrou que as experiências internacionais de centralização curricular nas quais a BNCC se inspirou, como as dos Estados Unidos, Chile e Austrália, já foram amplamente criticadas. Segundo Ferraço, em nenhum desses locais a centralização curricular significou melhorias nas avaliações internacionais sobre a qualidade da educação, como o Pisa.
“Isso nos leva a pensar a intenção da base. E a gente vai ver que da primeira versão da BNCC para a quarta há uma mudança dos protagonistas desse processo. Se no início havia diálogo com pesquisadores, educadores, isso desaparece da quarta versão, que ficou na mão de fundações privadas, que assumiram a lógica do documento. É preocupante a retomada do modelo curricular pautado em competências, que além de reducionista vem para atender aos interesses das empresas produtoras de materiais didáticos”, destacou Ferraço.
Segundo ele, a BNCC ainda consolida uma “lógica perversa” de responsabilização dos professores pelo aprendizado dos alunos. “O discurso a partir da implantação da base vai ser: se a base não for cumprida, é por conta da incompetência do professor. O objetivo é claro: controlar e acompanhar o processo de produção curricular de professores. A BNCC é um instrumento de vigilância, controle e responsabilização do professor”, criticou.
Experiências internacionais negativas
Para Giovana Lunardi, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UESC), a base representa a ponta de lança de um processo que ameaça o próprio sistema público de educação. Segundo ela, em todos os países em que a educação passou por reformas nos moldes da que a BNCC pretende fazer na educação brasileira, a proposição de uma base comum veio articulada a um conjunto de reformas políticas que afetaram severamente os sistemas de ensino.
“Nos Estados Unidos e no Chile, que servem de inspiração para o Brasil, a proposição de uma base trouxe também um aprofundamento da lógica imposta pelas avaliações padronizadas, criando ranqueamento, interferindo inclusive no processo de financiamento das escolas. Também foram propostas políticas de bonificação de professores a partir do desempenho e do rendimento dos alunos nas avaliações, que são por sua vez formuladas a partir da base curricular. Já há laboratórios disso no Brasil, em São Paulo, por exemplo. A minha preocupação é que a partir da base isso se espraie”, avaliou Geovana, que alerta que isso pode significar uma desconfiguração do sistema público.
“Isso é o que favorece a gestão privada das escolas, a contratação de empresas para fazer gestão de resultados. Isso é o que favorece a ideia de escolas vouchers, por exemplo, que propõe que o governo pague às famílias para que elas escolham, no privado, a escola de seus filhos”, disse a pesquisadora da UESC. Geovana espera que a Conape possa ser um marco importante na resistência a esse processo. “Eu acho que a gente tem grande chance de fazer desses dias aqui um espaço de construção de uma pauta de ação, que a gente possa levar isso nos estados e municípios, porque é lá que vai ser a luta maior”, afirmou.