Temas estratégicos para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), a formação e o trabalho em saúde foram discutidos no diálogo temático ‘Valorização do Trabalho e Formação Profissional para o SUS’, programação da 14ª Conferência Nacional de Saúde. Durante o debate, foram apresentados dados referentes às ações de desprecarização do trabalho e desafios na área da formação em saúde, que foram o eixo central da exposição da diretora do Departamento de Gestão e Regulação do Trabalho em Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho na Saúde do Ministério da Saúde (Degerts/Sgets/MS), Denise Motta Dau. Gisley Siqueira, coordenadora do setor de saúde pedagógica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), falou sobre a importância de se vincular o processo de formação para o trabalho com o modelo de desenvolvimento hegemônico no Brasil. Por fim, Laura Feuerwerker, professora-adjunta da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), defendeu a importância da educação permanente em saúde para o processo de construção do SUS.
Trabalho
“Para falar em valorização do trabalhador no SUS, é preciso primeiramente conceituar o que é considerado trabalho decente, que vai além da desprecarização dos vínculos de trabalho”, disse Denise Motta Dau. Segundo ela, esse conceito está contido em protocolo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o país é signatário. “Esse conceito inclui a estabilidade do vínculo, rendimentos adequados, qualidade das relações entre trabalho e vida pessoal, jornadas de trabalho decentes e segurança”, enumerou, completando: “Se é importante atingirmos bons indicadores no conjunto do trabalho no Brasil, é mais importante na área da saúde porque o trabalho em saúde tem natureza diferenciada. Por mais que tenhamos novas tecnologias, um trabalhador capacitado é o que vai definir a qualidade do atendimento. E para isso é preciso pensar em capacitação, valorização e qualificação dos trabalhadores”.
Denise destacou o papel da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, que reúne gestores e trabalhadores para discutir políticas de valorização dos servidores do SUS, mas ressaltou que as resoluções tomadas ali precisam ser apropriadas nos estados e municípios. “Desde 2003, a mesa pactuou oito protocolos, sendo os principais a política de desprecarização e as diretrizes para a implantação dos Planos de Carreiras, Cargos e Salários [PCCS] no SUS. Mas se eles não forem implementados nos níveis estadual e municipal, não será possível mudar o quadro de precarização no SUS, ainda mais nesse contexto de descentralização cada vez maior do sistema”, apontou a diretora do Degerts. Segundo ela, de 1993 até 2009, o número de servidores municipais do SUS passou de 306 mil para 1,2 milhão.
Programas
Denise citou alguns programas do Ministério que, segundo ela, visam a garantir que os protocolos pactuados na mesa de negociação sejam colocados em prática. “Com o Programa de Estruturação e Qualificação da Gestão do Trabalho e da Educação no SUS [ProgeSUS], temos pensado em políticas que apóiem municípios e estados a estruturarem a área de gestão do trabalho, além de dar apoio técnico e financeiro para a implantação dos protocolos pactuados na mesa de negociação permanente. Segundo ela, está em fase de elaboração uma ferramenta para sistematizar dados sobre o panorama do trabalho em saúde. “Esses dados estão dispersos, por isso não temos dados sobre quantos profissionais estão em OSs [Organizaçãoes Sociais], Oscips [Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público]. Esses dados são muito difíceis de se obter. Existem pesquisas estaduais mas não se consegue ter dados nacionais sistematizados, e isso influi obviamente na qualidade do trabalho em saúde, pois impede que se saiba se os planos de carreira estão sendo implementados e como estão esses planos”, afirmou.
Ela também falou sobre o problema da falta de profissionais na atenção básica, que pretende atacar com políticas de incentivo. “Os estudantes de medicina, enfermagem e dentistas recém-formados que forem trabalhar por um ano na atenção básica terão 10% de bônus na seleção para residência, seja multiprofissional, seja médica. Essa é uma tentativa de política de indução importante para o SUS na atenção básica”, disse.
Modelo de desenvolvimento e formação profissional
Coordenadora do Setor de saúde pedagógica do MST e professora do Instituto de Educação Josué de Castro (Iterra), Gisley Siqueira procurou problematizar o trabalho e a formação profissional na perspectiva do debate sobre o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. “Por mais que façamos um recorte do trabalho no SUS, temos que entender que ele é reflexo do modelo de desenvolvimento, que vai além da realidade brasileira. Estamos inseridos em uma economia capitalista onde as regras são claras: há quem venda o seu trabalho e há quem se aproprie e lucre com ela”, apontou Gisley. Para ela, a discussão sobre formação profissional no SUS deve estar permeada por um debate acerca de projetos de desenvolvimento e transformação da sociedade. “Do contrário, viveremos sempre essa dualidade entre explorado e explorador, nos escorando em instrumentos que tentam mediar relações que nunca vão fazer cumprir o que buscamos: vão apenas apaziguar as tensões, mas, de fato, as relações concretas não vão mudar”, destacou.
Enfatizando em sua fala a formação de trabalhadores de nível médio, Gisley sugeriu alguns princípios que, segundo ela, devem balizar a elaboração de projetos pedagógicos. “A formação profissional vai além do processo de educação profissional, que é apenas uma das etapas. A formação se dá nos diferentes momentos e inserções, que passam pela escolarização e especialização técnica especifica para algum conhecimento, mas que não pode ser só isso: tem que estar mediada por outra capacidade de análise”, afirmou, completando. “Essa capacidade de análise deve ir além do discurso, e passar para uma consciência organizativa, para que os trabalhadores possam de fato se organizar e transformar a realidade do espaço onde trabalham, seja ele uma unidade de saúde ou um grande hospital”.
Por fim, Gisley defendeu uma maior integração entre instituições de ensino e de serviço. “Enquanto não interferirmos mais na formação e não houver diálogo com os espaços plenos do fazer diário, enquanto quem estuda não dialogar com quem ensina, não vamos avançar nesse processo de formação profissional e de emancipação do trabalhador, e da diminuição da desigualdade entre quem produz e vende força de trabalho”.
Subfinanciamento e qualidade da atenção
Para Laura Feuerwerker, professora adjunta da Faculdade de Saúde Pública da USP, o SUS vive momento crítico em suas possibilidades de consolidação, em razão de seu subfinanciamento e do aumento da capacidade de compra da população brasileira nos últimos anos. “O povo brasileiro tem melhorado de vida e tem cada vez mais a possibilidade de escolher entre o SUS e a compra de um plano de saúde, e para que escolha o SUS, precisamos ser capazes de melhorar a qualidade da atenção para ampliar a legitimidade do sistema”, afirmou. Como exemplo de impacto do subfinanciamento do SUS na qualidade da atenção, ela citou as equipes de Saúde da Família, segundo ela submetidas a uma carga de trabalho excessiva. “Os profissionais de Saúde da Família no Brasil cuidam de três vezes mais pessoas do que profissionais similares na Itália, França, Cuba e em outros lugares. Lá cada equipe é responsável por no máximo 1,8 mil pessoas, enquanto aqui cada equipe cuida de 5 mil. Já que nos equipamentos e medicamentos é difícil economizar porque os preços são impostos pelo mercado, sempre se economiza naquele que é o elemento mais nobre na composição do SUS, que é o trabalhador”, criticou Laura.
Educação Permanente
Segundo Laura, melhorar a qualidade do atendimento a população passa por um outro olhar sobre a formação em saúde. “Alguns princípios do SUS, como o trabalho em equipe, a integralidade, tem sido difícil de saírem do papel, em parte porque, hegemonicamente, no processo de formação profissional são outras coisas que são valorizadas”, disse. Nesse sentido, a professora enfatizou a importância de se implantar efetivamente uma política de educação permanente, que busca articular as práticas de ensino e de serviço no SUS. “A política de educação permanente segue princípios contra-hegemônicos. Os atores sociais que precisamos para construir o SUS não existem automaticamente, eles precisam ser ‘fabricados’. Esse espaço coletivo para pensar o trabalho e o ensino no SUS é o que a política de educação permanente em saúde poderia construir”, disse.
Para Laura Feuerwerker, a política nacional de educação permanente está em vigência desde 2003, mas ocupa posição secundária na agenda política. “Até em função das restrições no financiamento: se você vai a uma reunião intergestores regionais, 90% do tempo é gasto discutindo recursos e possibilidades de atendimento das necessidades dos usuários. A gestão da educação e do trabalho na prática não entra na agenda. Não reconhecemos no SUS esse espaço para construir com as equipes, reconstruir práticas do trabalho. É muito pouco dinheiro que tem para se pensar esses processos que são vitais para o SUS”, assinalou.
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