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Desastre climático no Rio Grande do Sul expõe o crescimento de doenças e da precarização da saúde pública

O aumento das mortes causadas pela leptospirose nos últimos dias revela que o recuo das águas, após a inundação histórica que atingiu o estado, traz outras preocupações à saúde dos gaúchos
Giulia Escuri - EPSJV/Fiocruz | 06/06/2024 14h33 - Atualizado em 07/06/2024 14h54
Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

A Secretaria Estadual de Saúde (SES) do Rio Grande do Sul confirmou a décima terceira morte por leptospirose no dia 4 de junho. As 3,2 mil notificações da doença e os 246 casos confirmados evidenciam o drama que a população gaúcha ainda enfrenta, mesmo após mais de um mês do início do desastre ambiental. As fortes chuvas sobre o estado, de 26 de abril a 5 de maio, acompanhadas por enchentes, inundações e deslizamentos, afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas em 475 dos 497 municípios.

O estado está em recuperação, conforme a nota técnica “As inundações no Rio Grande do Sul, impactos imediatos e suas possíveis consequências sobre a saúde da população” , lançada por pesquisadores do Observatório do Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O documento divide os problemas de saúde em três principais fases: resgate, recuperação e reconstrução. Renata Gracie, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e integrante do Observatório, alerta que neste período, em que 30.442 pessoas continuam em abrigos, os problemas respiratórios e a gastroenterite pelo consumo de água contaminada podem ser algumas das principais complicações de saúde.

Desde o começo das inundações até o dia 5 de junho, foram confirmados 172 óbitos e 41 desaparecidos. A nota afirma que, ao contrário do primeiro momento, no qual os impactos são imediatos, como afogamentos, choques elétricos e soterramentos, neste estágio, o contato prologado com a água contaminada das enchentes e, posteriormente, com a lama no retorno para as casas aponta para o aumento de doenças infecciosas.

O pesquisador da ENSP/Fiocruz, Carlos Machado, aponta que o contato com a água pode trazer, entre outras coisas, doenças como a leptospirose. “Estamos assistindo um crescimento de casos suspeitos, de casos confirmados e de óbitos, por conta da exposição prolongada à água contaminada, por vezes, com cortes e lesões na pele”, diz ele, que também considera que um terceiro impacto desse desastre na saúde das pessoas está no adoecimento psíquico. “A ruptura radical no modo de viver e trabalhar, além da incerteza em relação ao futuro, impactam a saúde mental dos atingidos pelo desastre”, afirma Carlos.

A mistura entre enchente e esgoto

Entre os dias 8 e 11 de maio, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) coletaram amostras de águas das enchentes em Porto Alegre e nas cidades de Gravataí e Eldorado do Sul. Foram detectados índices elevados de bactérias, como a Escherichia coli (E. coli), que causa, principalmente, diarreia, e a leptospira, causadora da leptospirose. Nas amostras, a pesquisa também identificou vírus, como o SARS-Covid-2, responsável pela Covid-19, e os da Hepatite A e Hepatite E, uma variante mais rara da doença.

Os altos índices de contaminação da água estão diretamente relacionados com o transbordamento de estações de tratamento de esgoto, segundo a pesquisa da UFRGS. No dia 4 de maio, as águas do Guaíba, que ultrapassaram a marca de 5,3 metros, invadiram cinco estações em Porto Alegre, espalhando pela cidade litros de esgoto que estavam nos tanques, misturando-os à enchente.

“Como foi uma área muito grande inundada e áreas industriais também, isso pode ter algum impacto às pessoas que se expuseram a toda essa água e lama. Já está acontecendo o período de incubação das doenças infecciosas e estão sendo notificados muitos casos de doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado”, aponta Renata. De acordo com o Ministério da Saúde (MS), a leptospirose é a doença mais comum em situações de enchentes e alagamentos, e atinge, em média, três mil pessoas por ano no Brasil. Em 2023, 188 pessoas morreram pela doença em território nacional.

A leptospirose é transmitida pela exposição direta ou indireta à urina do rato. Mas, outros animais também podem transmitir, como alerta Renata. Em artigo publicado pela pesquisadora em coautoria com outros autores, eles afirmam que há um risco de ocorrência maior de leptospirose em municípios que decretaram inundações entre os anos de 2003 à 2013, ou seja, as inundações são fatores de grande risco para a proliferação da doença. Segundo o MS, a doença apresenta uma alta taxa de letalidade, com média de 9%.

A pesquisadora analisa que as maiores taxas de incidência de leptospirose acontecem em municípios em que, para além da inundação, tem uma proporção de esgoto por solução de fossa maior. “Podemos fazer uma relação socioeconômica, por exemplo, se eu construo uma casa em um local que tem uma rede de esgoto pronta, eu posso fazer a ligação da minha casa até a rede de esgoto. Agora, se eu não tenho a rede de esgoto passando na porta da minha casa, terei que encontrar outra solução de esgotamento, certo? Então, eu vou partir para a solução de fossa. Além disso, também existem locais em que o esgoto é jogado diretamente nos rios, lagos e mananciais”, diz Renata.

A falta de acesso à rede de esgoto atinge, majoritariamente, pessoas com renda de até um salário-mínimo, sem ensino fundamental completo e pardas, de acordo com dados de 2022 compilados pela Associação das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC).

“Dessas pessoas que não têm fossa, que não são ligadas à rede de esgoto, terem um nível socioeconômico mais baixo é muito grande, né? Quando comparada a pessoas que têm. Então, não é que não aconteça leptospirose nos níveis socioeconômicos mais elevados, acontece. Mas a maior parte, acontece no nível socioeconômico mais baixo” – avalia a pesquisadora.

Diego também atribui a incidência de leptospirose aos territórios mais empobrecidos. O pesquisador analisa que pessoas que vivem nessas regiões não têm o acesso adequado ao serviço de coleta de lixo, como em locais mais privilegiados. “Então, essa exposição é diretamente relacionada com essas condições de vulnerabilidade. Quando acontecem esses eventos, essas populações que estão mais expostas são as que sofrem mais”.

Nessa lógica, o pesquisador Carlos Machado trabalhou com outros autores o termo “vulnerabilidade socioambiental”, em uma tentativa de aprofundar o conceito de desastres ambientais. Essa vulnerabilidade é vivida por pessoas que não contam com políticas de habitação, educação e transporte adequadas. Por isso, Carlos considera que uma ameaça ou perigo de origem natural não necessariamente se converte num desastre, mas podem se transformar, se existem populações em condições precárias de vida e trabalho diante desses eventos.

“Chuvas intensas fazem parte também dos processos do ciclo do clima e das águas, que podem ser alterados por processos, principalmente, a partir da revolução industrial, que vem contribuindo para as mudanças climáticas. Mas o mais importante é que eles constituem apenas uma parte da fórmula que define o que é desastre”, explica Carlos.

Para explicar o conceito de “vulnerabilidade socioambiental”, o pesquisador faz uma comparação entre os terremotos do Chile e do Haiti em 2010. Apesar de o evento ter sido mais potente no primeiro país, onde ocorreram menos de mil óbitos, no segundo, as vítimas chegaram a mais de 200 mil. “Então, um desastre, para ser realizado, envolve um evento disparador, que, de modo geral, está associado aos ciclos da natureza. Mas, ele só se converte em um desastre quando você tem populações em condições de vulnerabilidade sendo mais afetadas”, considera.

A situação socioeconômica também é determinante em grandes desastres ambientais, como no Rio Grande do Sul, de acordo com o Núcleo do Observatório das Metrópoles da UFRGS, que mapeou as regiões alagadas na região metropolitana de Porto Alegre e identificou que as áreas mais pobres foram as mais atingidas pela calamidade climática. O estudo, divulgado em 15 de maio, cruzou dados de renda per capita do Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o mapa das áreas urbanizadas inundadas pelas enchentes.

A nota do Observatório do Clima e Saúde da Fiocruz aponta que 240 áreas identificadas como favelas, cinco aldeias indígenas e 40 comunidades quilombolas foram atingidas pelas inundações. Diego Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz) e do Observatório, considera que essas populações são, historicamente, mais vulneráveis. “Por isso, nesse momento de desastre, apresenta-se um risco muito maior para elas. Fizemos esse apontamento e continuamos desenvolvendo o trabalho para tentar estimar a carga de doenças, tanto as transmissíveis quanto não transmissíveis, que podem surgir na região e, também, para estimar os recursos que vamos precisar para tentar, pelo menos, restabelecer algum nível de normalidade na região”, afirma Diego.

Precarização da saúde

Além do crescimento de casos de leptospirose e de outras doenças relacionadas ao contato com águas contaminadas, os gaúchos enfrentam mais um problema: cerca de três mil estabelecimentos de saúde podem ter sido impactados pelo desastre climático. O cálculo também é do Observatório da Fiocruz, que analisou as manchas de inundação, obtidas via radar e satélites, e verificou os estabelecimentos e territórios nessas áreas, por meio de dados de instituições como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Fundação Palmares e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Entre os lugares afetados há postos de saúde, farmácias, consultórios particulares e hospitais, entre outros.

Flickr/Governo do Estado do Rio Grande do Sul

Com esses estabelecimentos afetados e alguns ainda inoperantes, a coleta de informações e atendimentos podem estar prejudicados. Renata alerta que talvez aconteça a subnotificação de casos de leptospirose, por exemplo, além de destacar o apoio do Ministério da Saúde ao Rio Grande do Sul. Até o início de maio, o MS já havia garantido o envio de 1,2 milhão de doses das vacinas contra tétano, difteria, hepatites A e B, coqueluche, meningite, rotavírus, sarampo, caxumba, rubéola, raiva e picadas de animais. Os imunizantes foram disponibilizados nos abrigos e nas unidades de saúde em funcionamento. Além disso, quatro hospitais de campanha da Força Nacional do SUS estão nas regiões mais atingidas e já realizaram mais de 8,5 mil atendimentos, de acordo com um balanço divulgado pelo MS no dia 31 de maio.

Entretanto, com a redução da operação dos estabelecimentos de saúde, a oferta de atendimentos e serviços para a população diminui. Diego Xavier chama a atenção para a falta de remédios que pessoas com doenças crônicas podem enfrentar. “Elas estão sem o acesso aos medicamentos e com dificuldade para conseguir o acompanhamento médico. Então, muita gente pode vir a ter um infarto ou um Acidente Vascular Cerebral (AVC). E pessoas que têm problemas de saúde mental podem ficar sem acompanhamento de maneira adequada”.

O pesquisador também destaca que pessoas com acesso ao serviço de saúde privado podem, neste período, buscar atendimento no sistema público de saúde. “Não existe no Brasil um plano de salvaguardas do sistema de saúde suplementar em função de desastre. Nunca vimos um hospital de campanha de um plano de saúde funcionando, porque não é assim que opera esse segmento. Então, as pessoas que têm plano de saúde, e o percentual de cobertura para o plano de saúde no Rio Grande do Sul é bastante expressivo, vão depender do sistema público”.

Além dos locais atingidos, os profissionais de saúde também foram afetados, o que pode reduzir os atendimentos. Aliado a essas complicações, os gaúchos convivem com a crescente precarização e privatização da Atenção Primária à Saúde (APS). Os boletins produzidos pela pesquisa “Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores”, coordenada pelas professoras-pesquisadoras Márcia Valéria Morosini, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), e Marcia Teixeira, da ENSP/Fiocruz, apontam, desde 2022, os efeitos das mudanças implementadas na APS após a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 nas capitais: Palmas (TO), Porto Alegre (RS), Recife (PE) e Rio de Janeiro (RJ).

De acordo com a pesquisa, a gestão das 135 Unidades Básicas de Saúde (UBS), em abril de 2023, estava assim distribuída: apenas cinco UBS são geridas diretamente pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 12 são administradas pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC/MS), uma pela PUC-RS, uma pelo Hospital das Clínicas de Porto Alegre, ligado à UFRGS, e outras 116 UBS estão distribuídas entre instituições privadas e a OS IBSaúde.

Também foi observada a redução do número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) nas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Em 2022, segundo o boletim, entre todas as equipes de Atenção Básica, equipes de Saúde da Família e de Atenção Primária, 71,5% delas tinham apenas entre um e três ACS e 25% não contavam com esses trabalhadores.

Uma das pesquisadoras desse trabalho, Carolina Krieger, que também é enfermeira e diretora da Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (Abefaco), considera que esse cenário acarreta uma assistência insuficiente no cuidado integral, longitudinal e de base territorial. “Por muitos anos, Porto Alegre foi modelo de Estratégia de Saúde da Família, com profissionais qualificados que entregavam um cuidado eficiente e humanizado”, relembra Carolina. Entretanto, ela considera que “com a implementação da mercantilização da APS, além da demissão de quase 2.000 profissionais, a prefeitura reduziu significantemente o número de ACS e ACE, além de alterar os vínculos, sendo a maioria dos agentes incorporados à Secretaria Municipal de Saúde”, diz ela, complementando que com as equipes desconfiguradas por vínculos de trabalho inseguros e o encolhimento dos agentes nos territórios, a estratégia de promoção e prevenção de base territorial foi muito comprometida.

Carolina também ressalta que a diminuição de ACS interfere na reestruturação do estado impactado pela crise climática. Ela denuncia que a gestão municipal está solicitando profissionais de saúde para desempenhar trabalho voluntário, em detrimento do chamamento dos concursados aprovados ou mesmo da contratação pelas empresas privadas. “Isso demonstra como os trabalhadores de saúde são desvalorizados pela prefeitura”, ressalta.

Crise ambiental 

Um estudo feito pelo grupo World Weather Attribution indica que as fortes chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul se tornaram duas vezes mais prováveis de acontecer em função da crise climática. A equipe internacional de pesquisadores europeus, dos Estados Unidos e do Brasil também avalia que as chuvas foram intensificadas pelo El Niño e que as falhas na infraestrutura de proteção contra enchentes agravaram seus impactos. 

Carlos Machado considera que é preciso uma estratégia nacional, envolvendo diferentes setores, para avançar em planos de redução de riscos de desastres. Considerando os estudos que apontam o cenário de mudanças climáticas na redução de tempo entre a ocorrência de um desastre e outro, o pesquisador diz que são necessárias políticas públicas que envolvam não apenas planos, mas investimentos do Estado.

“Não é possível mais esperar o próximo desastre para ter atitudes mais proativas e prospectivas”, ressalta ele. 

Além disso, o setor de saúde também deve ser considerado em políticas públicas diante da crise ambiental. “Precisamos ter, no âmbito estadual e municipal, planos de redução de risco de desastres no setor saúde, o que envolve não só preparação e resposta, com planos de contingência por estabelecimento de saúde ou por rede e sistema de saúde no nível local, envolvendo hospitais, unidades de pronto atendimento e unidades básicas de saúde. Precisamos também ter estruturas de saúde adaptadas às mudanças climáticas e resilientes aos desastres”, afirma o pesquisador.

A enfermeira Carolina, que vive o desastre no Rio Grande do Sul, considera que é importante avançar na discussão de políticas ambientais e suas transversalidades, além da implantação da agenda climática. “Com o recuo das águas, lama, lodo e detritos tomaram as ruas, causando doenças. Para atender às comunidades, são necessários profissionais capacitados, vacinas, materiais e muito afeto”.