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Dificuldades para o controle

Delegados e pesquisadores discutem limites para a gestão participativa na saúde
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 02/12/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Parte do segundo dia da Conferência (1º/12) foi dedicada ao debate de assuntos específicos, em grupos menores de delegados e convidados. Num desses encontros – com o tema ‘Desafios para efetivar a participação, a gestão participativa e o controle social na saúde’ –, a estrutura e o funcionamento das instâncias formais de controle social estiveram no foco.

Muitos delegados manifestaram descontentamento e preocupação com os conselhos de seus municípios e estados, denunciando cooptação de membros, pressão por parte de gestores e dificuldades para essas instâncias exercerem aquelas que são suas principais funções: elaboração de propostas e fiscalização.

A professora Evelina Dagnino, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), disse que hoje a principal bandeira em relação à participação social é a sua qualidade. De acordo com ela, o aspecto quantitativo – ou seja, as dimensões que a participação assumiu – já está bem encaminhado. “Hoje existe, no Brasil, uma enorme arquitetura participativa. Mais de 75% dos municípios têm alguma instância participativa funcionando. Há um verdadeiro exército de conselheiros no país. E, em diversas áreas, as conferências tiveram um impulso significativo nos últimos anos. O que resta é, de fato, assegurar a qualidade disso”, afirmou.

Ela ressaltou que as instâncias participativas atuam em contextos com correlações de forças muito diferentes entre si. “Raramente, ou pouco frequentemente, essa correlação de forças é realmente favorável a uma participação efetiva”, observou. Ela acredita que a luta pelo controle social é, de fato, uma luta pela radicalização da democracia. “E essa luta não se encerra no interior das instâncias participativas: essas instâncias devem ser avaliadas como uma dimensão entre várias. Há muitos outros espaços onde é possível colocar nossas fichas, apostar nosso esforço e energia”, disse.

Um desses espaços, segundo a professora, está no interior dos governos. Ela disse que há uma tendência, tanto nos estudos acadêmicos como também no debate político, de responsabilizar apenas a sociedade civil pelo sucesso ou pelo fracasso da participação. “A sociedade civil é sempre herói ou vilão. Isso é complicado. Os governos que se abriram às demandas por essa arquitetura participativa também têm responsabilidade no processo. E cabe à sociedade civil, inclusive, exigir condições efetivas de participação”, pontuou, explicando que entre essas condições poderia estar a criação de câmaras técnicas que assessorassem os representantes da sociedade. “O ponto principal é repartir a responsabilidade. A sociedade civil não é a única responsável na condução das experiências”, defendeu.

Ela também afirmou que, apesar de se falar o tempo todo em ‘participação’, é preciso reconhecer que essa participação institucionalizada nas instâncias formais é fundamentalmente uma ‘representação’. “Não se trata da participação direta da sociedade, mas sim de uma mediação por representantes. Portanto, a capacidade de bem representar é, evidentemente, um elemento central para o funcionamento das instâncias participativas”, afirmou.

Evelina disse ainda que é preciso ressaltar os diferentes níveis de participação: “Pode-se ter uma participação meramente consultiva, ou meramente informativa, ou deliberativa. Todos esses tipos trazem benefícios ao funcionamento da democracia participativa. Mas é preciso entender que se a participação não implica a partilha do poder – ou seja, se não é efetivamente deliberativa, no sentido de haver participação na tomada de decisões, então ela vai constituir um avanço muito menor do que poderia”, disse. De acordo com ela, é preciso refletir melhor sobre “as perversidades e distorções” que se instalam na representatividade: “Em que medida as decisões dos conselhos e conferências são de fato respeitadas e reconhecidas pelas instâncias do executivo?”, questionou.

Dificuldades são as mesmas há 20 anos

Evelina disse também que as principais dificuldades que a participação apresenta são as mesmas há mais de 15 ou 20 anos. “Estamos sempre lidando com os mesmos problemas e limites e, nesse sentido, acredito que estamos marcando passo. Não conseguimos avançar na superação dessas dificuldades”, disse, pontuando dois problemas que considera os mais relevantes: a necessidade de qualificação técnica, e também a qualificação política.

A qualificação técnica, segundo a professora, diz respeito à aquisição de saberes específicos para que se possa conduzir uma representação efetiva. “Isso implica um processo de aprendizagem”, explicou. Sua crítica é a de que, embora haja uma multiplicidade de saberes que convivem no interior das instâncias, o aprendizado segue uma única direção. “Quando se fala em necessidade de qualificação técnica, entende-se que os representantes da sociedade devem aprender o conhecimento do qual os técnicos – leia-se os especialistas agentes do Estado – são portadores. É essa a direção. Nesse sentido, os saberes técnico-burocráticos se impõem a outros saberes, que dificilmente são legitimados”, observou, acrescentando que, frequentemente, o  tempo e a energia que essa qualificação exige é “roubado” do tempo que poderia ser usado para a relação entre esses representantes e seus representados.

De acordo com Evelina, no limite, a questão da representação acaba marginalizada e o que o representante aprende é a ser um técnico burocrata. “Aprender a ser um representante de fato – que significa dar voz a quem não está presente – fica de fora”, criticou.

Em relação à qualificação política – “o aprendizado de capacidades de negociação, de construção de alianças, de reconhecer os interesses dos outros” –, a professora disse que a dificuldade é outra: “A questão é como equacionar a ação reivindicatória, que com frequência se dá em torno de interesses particulares e até corporativos – embora isso não signifique necessariamente interesses privados ou individuais – com a formulação de uma política pública que possa de fato atender ao interesse público”, explicou.

Segundo a professora, é a construção do interesse público que possibilita a formação de uma política propriamente pública. “E isso parece confrontar a tendência de as instâncias participativas serem transformadas em mero espaço de disputa por recursos públicos, por interesses particulares”, afirmou.

Participação popular sem conselhos

O professor Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), lembrou os anos 1980, quando o SUS foi conquistado, e afirmou que este foi o período da história brasileira em que houve maior mobilização social. “A sociedade fez um esforço grande para sair da ditadura, conseguiu sair e, com essa mesma mobilização, pressionou para criar um novo Estado mais democrático, que desse conta dos direitos sociais que estavam sendo negados pela ditadura”, lembrou. E ressaltou: “Tudo isso aconteceu nos anos 1980, sem conselhos de saúde. A sociedade, via mobilização de tomada de consciência de seus direitos, fez tudo isso”, assinalou.

Ele disse que foi nesse período, justamente, que foram formulados, discutidos e criados os conselhos de saúde e as conferências. “As discussões foram ricas nesse sentido. Os conselhos não foram criados apenas como mais algumas entidades: foram criados como representantes eleitos das entidades para ficarem dentro do Estado. Como órgãos de Estado, os conselhos são ‘nichos’ da sociedade no Estado. Essa foi a grande ideia”, afirmou.

Segundo ele, os dois grandes objetivos disso eram canalizar todas as realidades, necessidades, demandas e posicionamentos da sociedade para dentro do Estado, e também levar para a sociedade todo o aprendizado que os representantes têm em suas reuniões mensais, como, por exemplo, os obstáculos que o Estado coloca à política pública de saúde universal.

De acordo com Nelsão, um dos principais objetivos dos conselhos – propor diretrizes – não está sendo alcançado. “Em geral, não se consegue trabalhar na elaboração de estratégias, nem frear o Estado em suas decisões negativas”, disse. Ele afirmou que nas últimas décadas houve uma retração da mobilização social. “Quem voltou a tomar conta hegemonicamente do Estado foram as elites. Nenhuma política pública conquistada na Constituição Federal conseguiu realmente emplacar, porque a sociedade perdeu o empuxo, a potência que conseguiu reunir para sair da ditadura”, criticou.

Demandas gerando ofertas

O professor afirmou que, durante esses 21 anos de SUS, é sempre a partir do sofrimento que a população busca algum serviço de saúde, de acordo com aquilo que é oferecido. “E a procura é basicamente por três serviços: consultas especializadas – que em grande parte têm o apoio de serviços auxiliares de diagnósticos; urgências; e internações hospitalares”, afirmou, acrescentando que há pouca demanda – e oferta – por serviços de mais baixo custo e melhor resolutividade, como diagnósticos precoces, ações para diminuição de riscos e cuidados continuados para quem tem doenças crônicas.

Ele afirmou que, em países com bons sistemas públicos de saúde, a atenção básica resolve de 85% a 90% dos problemas e saúde da população, sobrando pouco para a média e alta complexidade. “Enquanto isso, no SUS, ocorre o contrário”, criticou.

De acordo com Nelsão, isso acontece não porque essas sejam as maiores necessidades da população, mas porque é nesses lugares que está a maior oferta. “Isso é o que se chama de ‘a oferta gera a demanda’”, disse. Segundo ele, há uma grande pressão por parte de empresas privadas, como fabricantes de medicamentos e equipamentos, para que isso ocorra. “Noventa e dois porcento dos laboratórios de análises clínicas e radiologia estão nas mãos do setor privado”, exemplificou. Para o professor, no Brasil, é a demanda que tem que gerar uma pressão social que exija a oferta na atenção básica, já que isso não está se dando espontaneamente.

Dificuldades específicas, mas não isoladas

Conselheiros de todo o país relataram problemas graves em seus estados e municípios e chegaram à conclusão de que casos idênticos são encontrados nas mais diferentes regiões. Uma das participantes criticou a vinculação de recursos financeiros à criação de conselhos, acreditando que isso resulta em “um monte de conselhos ‘de gaveta’, sem atividades de fato, debate com a sociedade”.

Outra delegada, vinda de Juazeiro do Norte, no Ceará, disse que, embora os conselhos precisem ter acesso à prestação de contas dos governos a cada três meses, isso não acontece na sua cidade há três anos. “Nosso mandato já está no fim e ainda não tivemos prestação de contas para analisar”, denunciou. Um conselheiro de São Paulo disse que a dificuldade de atuação não é um problema apenas de pequenas cidades: “Na nossa capital, o plano municipal de saúde só é submetido ao conselho depois de já finalizado”, criticou.

A participante de Juazeiro do Norte disse também que muitas pessoas não se envolvem com os conselhos por compromisso com a participação, mas por interesses em cargos junto aos gestores. A partir de suas falas, outros participantes denunciaram situações semelhantes em seus municípios. Falou-se inclusive do assédio moral sofrido por conselheiros por parte de gestores. “Se não partilhamos das ideias dos secretários ou prefeitos, há perseguição. É como se o conselho fosse apenas uma formalidade que tem que existir”, refletiu outro delegado.

A crítica também veio do Sul do país: “Esse tipo de problema também ocorre em alguns municípios do Rio Grande do Sul. A cooptação pelos gestores municipais é uma doença que precisamos combater”, disse outro participante.Um delegado do Tocantins também deu seu depoimento: “Muitas vezes o conselheiro tem algum parente que é funcionário público ou é envolvido com a gestão, e o controle social fica muito prejudicado. Quando entramos com propostas de fiscalização e análises de serviço, sofremos repressão”, disse.

Na avaliação da professora Evelina, para responder a problemas como esses não há outra saída que não passe pela mobilização social e pela organização política. “Quando falamos em adesismo, cooptação e repressão, estamos passando pelo terreno da cultura, que é sempre político e permeado por relações de poder. Não há outro caminho que não por meio da organização popular para mudar esses aspectos”. E concluiu: “A participação e o controle social são as atividades que podem confrontar o núcleo duro do poder. Portanto, é evidente que essa atuação vai ser mesmo difícil. Quem pensou – e acho que pensamos todos, num período heróico de conquistas da participação popular – que a tarefa era fácil, se enganou”.

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