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Direito de ir e vir

Especialistas discutem as formas de remuneração do transporte coletivo e o impacto da mobilidade para democratizar o acesso a outros direitos
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 11/12/2023 09h22 - Atualizado em 11/12/2023 15h46
Foto: Marcelo Camargo / ABR

Nos horários de pico, o motorista pede aos passageiros já amontoados no ônibus para que deem um passo para o lado porque há mais gente para embarcar. Indignados, alguns usuários começam a clamar para que o veículo não faça mais paradas até que alguém desça. No metrô e trem, trabalhadores apinhados na plataforma aguardam as portas abrirem para disputar cadeiras ou mesmo um centímetro quadrado sob empurrões e cotoveladas. Já fora dos horários de maior movimento, quando alguém está indo, por exemplo, a uma consulta na unidade de saúde ou buscar os filhos na escola, o tempo de espera se multiplica no ponto de ônibus. O cansaço aumenta ainda mais quando, somado a tudo isso, é preciso fazer baldeações. E nas cidades grandes não há quem, em meio a uma jornada extenuante de trabalho, não se pergunte como o transporte pode ser tão caótico, com trajetos tão longos e tarifa cara.

Desde 2013, quando milhares de pessoas foram às ruas pela redução da tarifa, os reajustes do transporte público não conseguiram atrair tantos interessados, mas as consequências daquele momento se seguiram. Dois anos após os megaprotestos, em 2015, o transporte virou um direito inscrito na Constituição em seu artigo 6º, ao lado de educação, saúde, trabalho, lazer e moradia.

Mais recentemente, após a pandemia de Covid-19, quando, em função do isolamento social, os ônibus perderam muitos passageiros, o número de cidades com gratuidade no transporte coletivo deu um salto. Uma reportagem da agência BBC Brasil identificou 67 municípios que optaram pelo pagamento indireto da tarifa, um número ainda tímido diante de um total de 5.568 municípios brasileiros, mas que evidencia uma tendência que já prevalece entre urbanistas: é necessário subsidiar o transporte público, uma vez que se trata de um direito e atende a uma parcela ampla da sociedade. “O transporte não é só um direito individual, mas uma medida que beneficia a todos. Em uma cidade com uma rede de transporte de coletivo maior se vende mais, coleta mais impostos”, diz Rafael Calabria, analista do Idec, o Instituto de Defesa do Consumidor. Embora a redução ou mesmo a eliminação do custo para o passageiro seja o lado mais conhecido das demandas por ampliação do acesso, os entrevistados desta reportagem complexificam a questão, fazendo propostas para melhoria do sistema. E o primeiro passo desse trajeto é lembrar que as oportunidades estão mal distribuídas no espaço urbano. 
 

O transporte virou um direito inscrito na constituição em seu artigo 6º, ao lado de educação, saúde, trabalho, lazer e moradia

Planejamento urbano

Morar próximo do trabalho, da escola dos filhos, do posto de saúde, de um hospital de referência e, de preferência, próximo a áreas de lazer: essa pode ser a descrição de uma vida em uma cidade pequena com boa estrutura de equipamentos públicos, mas é uma realidade distante para moradores que não estão nas áreas centrais das capitais brasileiras. Um estudo publicado pelo Ipea, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em 2022, detalhou parte desse dilema ao mapear o tempo de deslocamento em dez cidades brasileiras para atividades de Educação, Saúde e Trabalho. Como você pode imaginar, o estudo mostrou a relação direta entre faixa de renda e uma maior facilidade ao acesso de escola, saúde e trabalho como um padrão nas principais capitais brasileiras. Há nuances. Por exemplo, no Rio de Janeiro, estabelecimentos de saúde pública para média complexidade estão acessíveis a 46% da população em um trajeto de 15 minutos por transporte público. No caso de alta complexidade, essa fatia cai para 17%.

A pesquisa também aponta São Paulo como a cidade mais desigual entre as pesquisadas no critério sobre distribuição de postos de trabalho. O número de empregos com mais fácil acesso por transporte aos 10% mais bem remunerados (com um salário em torno de R$ 8 mil) é mais de nove vezes maior do que todos os postos acessíveis aos 40% mais pobres na capital paulistana. Já o Rio de Janeiro apresenta uma das menores desigualdades nesse quesito, com uma proporção menor do que 3. Na avaliação dos pesquisadores, um fator que pode explicar essa diferença são as características urbanas das duas capitais: enquanto São Paulo concentra favelas na periferia da cidade, no Rio de Janeiro elas são mais espalhadas e integram áreas centrais.

Em relação à Educação, o estudo traz outros exemplos impactantes. Em Curitiba e São Paulo, a maioria das escolas do Ensino Fundamental não está acessível a menos de uma hora de percurso no transporte público. Já Belém tem uma boa cobertura e todos os segmentos podem ser acessados em uma caminhada de 30 minutos. No entanto, há uma pequena variação para a Educação Infantil, que necessita de melhor distribuição pela cidade.

Reduzir essas barreiras de acesso passa pelo direito ao transporte, agora previsto pela Constituição. Para Pereira, as soluções devem caminhar de maneira articulada entre o planejamento de novas construções de equipamentos públicos e a melhoria do transporte coletivo, entendendo que o direito ao transporte também passa pelo direito à cidade. “Fornecer um serviço de transporte público eficiente que faça uma conexão entre essas áreas de residência e aquelas de serviços é uma das formas de garantir esse acesso. Outra maneira complementar é construir essas infraestruturas de serviço público – as escolas, as creches e os hospitais –
de forma espacialmente planejada para diminuir as distâncias, ou seja, para aproximar o serviço de onde as pessoas moram”, diz.

A aproximação da população aos serviços a partir de sua multiplicação em áreas de pouca cobertura de unidades de saúde e escolas, segundo Pereira, é uma estratégia mais efetiva do que a ampliação do transporte. No entanto, o raciocínio não se aplica a postos de trabalho, uma vez que as empresas seguem a lógica de mercado, em que a instalação de determinada empresa será feita de acordo com o que faz mais sentido para aquele setor. “Quando você compara o acesso a empregos a pé ou por transporte público, o transporte público faz uma grande diferença, porque os empregos estão muito concentrados em poucas regiões. Quando a gente olha para a saúde, naturalmente o transporte público melhora o acesso, mas ele melhora relativamente menos, porque, como você já tem uma rede de saúde muito melhor distribuída espacialmente, mesmo acessando simplesmente a pé, as pessoas já têm um acesso relativamente bom”, diz.

A partir dessas comparações, o pesquisador defende um cálculo integrado entre planejamento urbano e transporte. “Um bom sistema de transporte público não é medido pela alta frequência, velocidade ou muitas linhas entre bairros. Um bom sistema de transporte público é aquele que aumenta o acesso a oportunidades. Isso necessariamente envolve os itens anteriores, mas é preciso combinar as variáveis com a melhor distribuição de serviços públicos “, avalia.

Por que o transporte lota?
Mídia NinjaSecretário de Transportes da cidade de São Paulo entre 1990 e 1992, na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina, Lúcio Gregori concorda que as mudanças nas regras de zoneamento podem auxiliar o acesso da população a serviços, mas considera que a alteração do espaço urbano é mais complexa e demorada do que a melhoria do transporte coletivo nas cidades. E ele se baseia na experiência que teve enquanto gestor, quando mudou o cálculo de remuneração das empresas de transporte e ampliou a frota. “A mudança de cálculo de número de passageiros para quilômetro rodado permite novos arranjos de linhas e itinerários e dá margem a esquemas de solução de problemas que vão acontecendo ao longo do dia numa boa”, recorda.

De forma simplificada, o pagamento às empresas passou a ser ditado 80% pelo custo do quilômetro rodado e 20% pelo número de passageiros transportados. Ao mudar as regras da concessão e assumir uma fatia maior dos custos da mobilidade, mais do que uma mudança de fórmula, a proposta traz uma nova lógica do entendimento do transporte, com um olhar social para a demanda. Com isso, a Prefeitura de São Paulo passou a planejar todas as viagens, em alguns casos com frotas próprias – nas linhas menos rentáveis –, em outras pagando pelo serviço, por quilômetro rodado. A ideia de subsidiar o transporte é relativamente recente, no Brasil o vale transporte concedido aos trabalhadores, por exemplo, foi promulgado pelo presidente José Sarney em 1985.

Ainda hoje, poucas prefeituras contribuem para o transporte coletivo. Um levantamento do Idec divulgado no final de 2022 identificou 122 delas pelo Brasil e que, em sua maioria (99) não exigiam contrapartida das operadoras – exigências que devem ser previstas em contrato, pois apesar de terem a liberdade de criar uma lei própria com diretrizes para a mobilidade, o analista do Idec afirma que é nesses documentos que os parâmetros de qualidade do serviço oferecido são detalhados.

Ele acrescenta que, ao serem remunerados por passageiro, e não por quilômetro rodado, a disponibilidade de linhas e horários sai do foco das empresas. “A lógica do serviço de transporte coletivo padrão no país é de viabilidade. Tal horário é viável, tal horário não é viável. O que leva à superlotação e precarização em horários que não são lotados e em periferias, onde também não há tanta densidade populacional como nas áreas centrais”, explica o analista. Ele exemplifica com a SPTrans, empresa controlada pelo município de São Paulo e responsável por fazer a gestão do sistema de ônibus, que reduz a frequência de linhas aos finais de semana e não dá atenção para as regiões onde tem parque, shopping, centro cultural, unidade de saúde. “Todo o planejamento é feito no dia útil para casa, trabalho. E aí, a partir disso, se estruturam as viagens fora do pico, final de semana. Então, é uma questão de visão política muito ruim do setor”, opina.

Além da mudança para o cálculo da tarifa com base no quilômetro rodado, o que implica a necessidade de a prefeitura assumir as regras de funcionamento do transporte e pelo menos parte do seu custeio, Calabria aponta outras estratégias para a melhoria da cobertura do transporte e maior margem para negociação das linhas e itinerários por parte das prefeituras. A indicação é contratar o serviço em partes, com segmentação entre frota, administração e funcionários. “Com contratos temáticos para operação, motoristas, viagens e frota, é possível ter atenção a cada um deles, definir melhor cada um”, diz. Como exemplo, ele cita a cidade de São José dos Campos, que vai exigir veículo elétrico no contrato. “Uma empresa que não tenha veículo elétrico não vai nem conseguir entrar no edital, não vai nem concorrer. Diferente da cidade de São Paulo, que possui uma lei que exige a eletrificação, mas quem compra o veículo é o próprio empresário, então, fica uma negociação, uma pressão da prefeitura sobre o empresário e, a rigor, eles estão adiando”, conta.

Outro ponto em favor dessa divisão é a possibilitar maior transparência. “O setor é pouco fiscalizado. As prefeituras precisam ter um diálogo franco para a abertura de dados e saber quanto de fato se paga pelas viagens realizadas, o valor do combustível, do salário dos trabalhadores”, diz. Por outro lado, ele reconhece que prestar um bom serviço não é barato. “Precisamos achar formas de financiamento, mas para justificar corretamente esse custeio precisamos ter clareza dos custos que se está pagando”.
 

Ao serem remunerados por passageiro, e não por quilômetro rodado, a disponibilidade de linhas e horários sai do foco das empresas.

Subsídios
Como ex-secretário de Transporte, Gregori concorda que manter um transporte coletivo de qualidade não é barato. “O custo do sistema, desde que calculado adequadamente e sem esse negócio de usar pouco ônibus, resulta em um valor inacessível para a grande maioria dos possíveis usuários do transporte coletivo”, afirma. E esse cálculo não é novo. É dentro dessa lógica que se justificam os subsídios pagos pelos governos dos Estados Unidos e alguns países europeus para reduzir o preço das passagens. Nessa mesma linha de raciocínio foi pensada a Proposta de Emenda Constitucional 25, apresenta pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL/SP) em maio de 2023. Elaborada coletivamente, com a participação, inclusive, de Gregori, o projeto foi assinado por 173 deputados de variados partidos. Em novembro, a PEC chegou à Comissão de Constituição e Justiça da Casa mas, até a conclusão desta reportagem, não tinha sofrido qualquer movimentação.

Baseada na implementação do direito ao transporte previsto na Constituição, a proposta cria o Sistema Único de Mobilidade e prevê “planejamento da rede de transporte na forma de rede única, integrada e intermodal adequada à demanda e aos objetivos do desenvolvimento urbano sustentável”, mantendo a competência municipal para organização e prestação de serviço do transporte coletivo. A PEC também propõe a tarifa zero e seu custeio via impostos por entender o transporte como uma obrigação do Estado. “A tarifa representa, na prática, barreira imposta àqueles que não têm condições de arcar com os valores das passagens”, diz o texto. Em relação aos custos envolvidos, a PEC defende que deve ser dividido por toda a sociedade, com a cobrança de impostos uma vez que “a maior parte da economia se sustenta por meio do trabalho de pessoas que se deslocam até seu local de trabalho usando transporte coletivo”.

O pesquisador do Ipea avalia como mérito a inclusão do governo federal no custeio do transporte, uma vez que essa tem sido uma dificuldade dos municípios, que em sua maioria não oferecem subsídios para o transporte, mas coloca dúvidas sobre a cobertura total do preço da tarifa. “Os desafios estão em torno das prioridades políticas e a possibilidade de fortalecer desigualdades regionais. Cidades médias e grandes, que em geral já produzem uma maior receita econômica, têm sistemas de transporte mais complexos e devem consumir a maior fatia desses recursos”, pondera Pereira.

O analista do Idec coloca a ênfase na possibilidade trazida pela PEC da realização de um planejamento integrado entre municípios e estados, além da existência de diretrizes para um bom funcionamento do transporte coletivo. Essa integração pode ter um impacto importante, por exemplo, no acesso à saúde, que muitas vezes requer atravessar mais de um município. “Há polos de atendimento de alta complexidade que precisam de viagens constantes e devem ser incluídos nesses cálculos. Atualmente não existe essa atenção dedicada à viagem por motivo de saúde. É uma coisa que depende do prefeito, às vezes até pode ser favor político. É um tema bem abandonado, o que é muito ruim”, diz Calabria.

Já para Gregori, o grande avanço da proposta é incluir na conta quem não é usuário do transporte coletivo, mas se beneficia dele. Ele lembra que as cidades estão planejadas para suportar uma grande quantidade de carros particulares, o que significa um volume considerável de impostos destinados a esse modelo. “Os automóveis ocupam grande parte do espaço viário das cidades e para eles circularem há toda a conservação das estradas, sinalização, expansão das vias e não se paga um tostão para andar na cidade”, pontua. O engenheiro também comemora a inclusão da tarifa zero na proposta, uma defesa feita por ele desde a década de 1990 e pelo Movimento Passe Livre.  

Impacto da tarifa

Mídia NinjaMais de três décadas após sua experiência à frente da Secretária de Transportes de São Paulo, Gregori enxerga com otimismo a multiplicação de municípios que adotaram o modelo que não responsabiliza o usuário pelo pagamento da passagem. “Os resultados mostram o quanto o sistema de transporte pago, tal como é feito no Brasil, impede a movimentação de uma quantidade gigantesca de pessoas e possíveis usuários do sistema”, diz. E o peso da tarifa no orçamento das famílias não é pequeno. Dados da última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), divulgada em 2019 pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, dizem que o transporte consome 18% da renda das famílias, à frente, inclusive, da alimentação, que registrou a fatia de 17,5%. Esse impacto ajuda a justificar os cálculos do ex-secretário de que o número de passageiros transportados triplicou nas cidades que adotam o modelo. Caucaia (CE), a maior cidade do país a adotar a gratuidade, conseguiu ampliar a quantidade de passageiros ainda mais e quadriplicou esse número.

A cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais, foi uma das que adotaram a tarifa zero após a pandemia de Covid-19. A lei que regulamenta o pagamento indireto foi aprovada em 2021 e no ano seguinte a operação começou. “A cidade tem uma extensão territorial muito grande, apesar de ser pequeno o núcleo urbano. Com a medida, os pequenos agricultores estão conseguindo se deslocar para o centro para vender suas mercadorias. Então, a tarifa zero deu uma possibilidade de trabalho para essas pessoas”, diz Calabria.

O analista do Idec avalia que falta ao setor e aos gestores públicos uma visão mais social do transporte, em vez de tratá-lo apenas como um tema de engenharia. “O setor de transporte é contra a tarifa zero, majoritariamente porque a tarifa é parte da equação da remuneração das empresas. Estimular a demanda com outras viagens que não sejam para o trabalho não é entendido como algo lucrativo”, avalia. Gregori completa: “A demanda atual por transporte [coletivo] é muito pequena perto do que poderia ser um país com a quantidade de habitantes que tem. É preciso entender que no Brasil o transporte é um problema social e de responsabilidade do Estado, então privatizar as operações, como tem se adotado em São Paulo, é colocar o transporte em uma lógica que não atenda às necessidades da população”.