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Direito dos presos à educação mais perto de ser respeitado

Aprovação das diretrizes para oferta de educação nas instituições penais pode finalmente garantir ensino semelhante ao que é ofertado fora das prisões. Desafio é atender a toda a demanda.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 16/04/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em março, as diretrizes
nacionais para oferta de educação a jovens e adultos em situação de
privação de liberdade nos estabelecimentos prisionais. Apesar de ser um
direito assegurado inclusive na Lei de Execuções Penais, até o momento,
a educação nas carceragens não tinha uma orientação nacional. Dessa
maneira, segundo a análise expressa no próprio parecer do CNE, relatado
pelo conselheiro Adeum Sauer, a oferta sempre foi precária e
improvisada, com número de vagas insuficiente para atender a demanda.



De
acordo com dados apresentados por Sauer, no parecer pela aprovação das
diretrizes, 11,8% da população carcerária é analfabeta e 66% não
concluiu o Ensino Fundamental. "O tempo que passam na prisão (mais da
metade cumpre penas superiores a nove anos) seria uma boa oportunidade
para se dedicar à educação sobretudo quando a maioria (73,83%) são
jovens com idade entre 18 e 34 anos. Mas o aproveitamento de tal
oportunidade ainda não se deu. Apenas 10,35% dos internos estão
envolvidos em atividades educacionais oferecidas nas prisões", salienta.



As
diretrizes para educação nas penitenciárias foram pensadas para dar
conta de toda esta provável demanda e preencher o vazio normativo
existente no país quanto ao tema. De acordo com as definições aprovadas
pelo Conselho, o financiamento da educação nas unidades prisionais deve
ser garantido exclusivamente com recursos públicos, provenientes do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), na modalidade
Educação de Jovens e Adultos (EJA).



Para Mariângela Graciano, da
ONG Ação Educativa, que acompanhou de perto a discussão das diretrizes,
a garantia de que as escolas prisionais obterão financiamento das
esferas governamentais é um dos pontos mais importantes do que foi
aprovado, já que historicamente estes recursos são provenientes de
filantropia. Ela explica que a oferta em modalidade Educação de Jovens
e Adultos também é um passo importante, já que é inerente a este tipo
de curso uma proposta curricular diferenciada, que visa contemplar as
especificidades do público a qual se destina.



A educadora
destaca outros avanços do parecer, como a responsabilidade das
secretarias estaduais de educação pela gestão do ensino, e a
possibilidade de controle social desta política por parte da população,
uma vez que os dados sobre a oferta do ensino nos presídios devem ser
publicizados em relatórios periódicos. Outro destaque é a necessidade
de que haja sempre chamada pública para as aulas, ou seja, a população
carcerária deve tomar conhecimento de que as turmas estão iniciando as
atividades para poderem se matricular, se assim desejarem. "Outro ponto
positivo é a oferta da educação em todos os turnos. Hoje, muitas vezes,
só são oferecidas aulas durante o dia e quem trabalha não pode
estudar", acrescenta.



Para o coordenador geral de reintegração
social e ensino do Departamento Penitenciário Nacional (Depen/MJ),
Marcus Rito, a aprovação das diretrizes também representa um grande
avanço. Ele explica que houve um amplo processo de discussão antes que
este parecer fosse aprovado, com realização de audiências públicas e
encontros temáticos. "As diretrizes vão ao encontro do que já está
garantido na Lei de Execuções Penais, que é o direito do preso de
estudar. E são um resumo geral dos anseios da sociedade civil", declara.



Rito
lembra que outro aspecto importante contemplado nas resoluções
aprovadas é a padronização do calendário escolar em todas as
instituições. A medida pode facilitar a continuidade do estudo do
preso, mesmo que ele seja transferido de penitenciária.



A
coordenadora do programa de pós-graduação em Educação Profissional em
Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz),
Marise Ramos, avalia que o parecer tem o mérito de reconhecer a
educação como um direito de todos, inclusive das pessoas em situação de
privação de liberdade. Entretanto, a professora identificou no
documento dois aspectos que caem no que ela considera um equívoco, que
é a visão idealizada da "educação como redentora" e um "lastro
economicista", que atribui à educação, por meio da qualificação
profissional, uma capacidade de garantir a entrada do presidiário no
mercado de trabalho. "O documento apresenta uma visão redentora porque
aposta que a educação dá conta sozinha da formação de novos valores
éticos e morais, e isso não é verdade, porque esses valores são
produzidos pela sociedade, já que não é possível separar o problema
ético e moral das desigualdades sociais", explica.



Marise lembra
que um ex-presidiário enfrenta um grave problema, que é a discriminação
associada à sua condição de classe e que, portanto, não é
fundamentalmente a qualificação profissional que vai garantir que ele
encontre lugar no mercado. "O Arruda (ex-governador do Distrito
Federal), por exemplo, ficou preso dois meses e com certeza terá um
lugar para ele fora da prisão. É a sua origem de classe que garantirá a
sua reinserção. Já um ex-presidiário pobre, ainda que tenha
qualificação profissional, vai enfrentar muito mais dificuldades para
ser reinserido", argumenta.



O parecer ainda precisa ser
homologado pelo Ministério da Educação, o que, de acordo com o próprio
CNE, deve acontecer em breve, já que a iniciativa de elaboração das
diretrizes partiu do próprio MEC, em conjunto com o Ministério da
Justiça. Assim que o documento for homologado, as diretrizes já passam
a valer como normas gerais de conduta para a educação nos
estabelecimentos prisionais. O parecer voltará então ao CNE, que
publicará o projeto de resolução que o acompanha e o encaminhará para
publicação também no Diário Oficial.  Caberá, então, a cada sistema
(secretarias municipais e estaduais e conselhos de educação), como
determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), detalhar como
as diretrizes serão implementadas em cada estado.



Desafios



Pelos
dados de 2009 do Depen/MJ destacados no parecer do CNE, o Brasil possui
469.546 presos, distribuídos em 1.771 unidades penais do país.
Estima-se que de cada 100 mil habitantes no Brasil, 247 estão
encarcerados. "A população carcerária no Brasil cresce de forma
assustadora. Nos últimos nove anos (2000 a 2009), esse contingente
aumentou 101,73%, saltando de 232.755 internos (dados de 2000) para
469.546 (dados de 2009)", destaca o conselheiro Adeum Sauer.



Na
opinião de Mariângela Graciano, a prioridade do poder público neste
momento deve ser produzir dados sobre a demanda real por educação nos
presídios, já que não há informações sistematizadas neste sentido.
Outro grande desafio é exigir que as diretrizes sejam implementadas e
de fato seguidas.



Para Marcus Rito, é preciso também
sensibilizar os operadores das prisões sobre a importância da educação.
Além disso, garantir as condições estruturais mínimas para o processo
educacional, necessidade também apontada pela pesquisadora da Ação
Educativa.



Na prática, entretanto, a realidade está longe de ser
satisfatória, como garante o próprio coordenador do Depen/MJ. "O
esforço é para que as novas unidades que sejam construídas já estejam
de acordo com as diretrizes aprovadas", diz. Com relação às
penitenciárias antigas, Rito acrescenta que pode haver iniciativas de
reforma e adequação de espaços, e ainda de desativação de unidades que
não apresentem as condições necessárias, mas que essas mudanças
dependerão das administrações estaduais. "Dos estados que solicitam
apoio do governo federal para as penitenciárias, nós exigimos que
tenham as condições físicas que acreditamos serem essenciais para a
ressocialização das pessoas", explica.



De acordo com Marcus
Rito, o governo federal vem tentando fomentar o desencarceramento, com
assistência jurídica necessária para que os processos sejam revistos e
as pessoas que tenham direito a progredir de pena dentro dos limites
legais possam fazê-lo. A medida, conforme argumenta Rito, pode gerar
mais espaço nos presídios. Entretanto, ele destaca que hoje existe um
déficit de 180 mil vagas no sistema penitenciário, o que torna as
iniciativas para geração de espaço inexpressivas diante da necessidade.



 Apesar
das políticas que o governo federal afirma estar tentando implementar
para diminuir o número de encarcerados, o número de presidiários vem
crescendo vertiginosamente, como afirma o parecer do CNE. E, ao mesmo
tempo o governo está ampliando o número de vagas nas penitenciárias. De
acordo com os dados do Depen, de 2004 para cá, sete penitenciárias
foram construídas no país com verbas federais. Outras cinco foram
reformadas, ampliadas ou recuperadas. Mais 120 obras de construção,
ampliação, reforma estão em andamento ou já tiveram recursos liberados.
"O que se luta é que para que cada vez mais esta taxa de crescimento da
população carcerária seja menor. Mas mesmo com todo o esforço dos
governos federal e estadual, esta massa carcerária tem aumentado.
Significa que se não houvesse estes esforços, a massa carcerária seria
muito maior", diz Marcus Rito.



PL garante salas de aula



Recentemente,
um projeto de lei (PL 3442/08), de autoria do senador Cristovam
Buarque, que autoriza a criação de salas de aula nos presídios, foi
aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda sanção do presidente da
república. Rito destaca que o projeto é bem intencionado, mas que, em
tese, nem precisaria existir, já que a Lei de Execuções Penais já
garante que as unidades prisionais devem ter espaços destinados à
educação.



 



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