Demorou, mas saiu. Após sucessivos adiamentos e várias manifestações da sociedade civil e de instituições públicas, inclusive da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cobrando seu lançamento, o governo federal aproveitou o Dia Mundial da Alimentação, celebrado em 16 de outubro, para anunciar o 3º Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo). O plano era objeto de uma disputa no interior do governo, que acabou adiando seu lançamento, inicialmente previsto para julho, junto com o lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar. O Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) discordava da incorporação ao texto do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara, como um dos objetivos do plano. A queda de braço terminou no dia 16, com a divulgação do plano contendo o Pronara como um de seus objetivos, uma vitória dos setores do governo que se opunham ao MAPA, e também das organizações da sociedade civil e movimentos sociais ligados à agroecologia, que reivindicavam o Pronara há anos.
Mas o Planapo não foi o único anúncio do governo federal: no mesmo dia, foi lançado também o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar (Planaab), que recebeu o nome de “Alimento no Prato”. Como o próprio nome já diz, ele enfoca não a produção, mas outra dimensão da política pública de segurança alimentar, que é a questão do abastecimento de alimentos saudáveis, a preços acessíveis, a todos os brasileiros, especialmente aqueles mais vulneráveis socioeconomicamente.
“Marco histórico”
O lançamento acontece em um contexto em que a agenda do combate à fome volta ao centro do debate sobre a segurança alimentar e nutricional no país, com a explosão do número de famintos no país em meio à pandemia de covid-19. Dados recentes divulgados pelo chamado Relatório SOFI, produzido anualmente por cinco agências vinculadas às Nações Unidas, apontam para um recuo da insegurança alimentar no Brasil, mas os números ainda preocupam: segundo o relatório, o número de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar em 2023 foi de quase 40 milhões, sendo 14,3 em estado grave. O combate à fome tem sido constantemente enfatizado como uma agenda central do atual governo, principalmente tomando por referência os discursos do presidente da República. “Acabar com a fome é obrigação moral, ética e humanista”, destacou Luiz Inácio Lula da Silva durante o lançamento dos planos.
Anelise Rizzolo, professora da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do GT Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), afirma que a publicação dos planos é positiva, e sinaliza um passo adiante em um processo que segundo ela vem se dando desde 2006, quando foi aprovada a lei de criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. “Não dá para olhar a publicação desses planos de maneira desarticulada a um processo de construção desse sistema, a duras penas”, diz a pesquisadora, explicando que se trata de um “processo complexo” e “interdisciplinar”, envolvendo setores do governo que muitas vezes não conseguem dialogar.
A ausência do Estado foi dando autonomia para o mercado pautar a oferta de alimentos, a distribuição. Existe um lobby dessas corporações envolvidas nessa estrutura de abastecimento privado que vão tentar de todas as formas desestabilizar isso [o Planaab] para manter sua autonomia - Anelise Rizzolo
Segundo ela, são três as principais políticas desse sistema, que geram convergência entre cada um dos setores que lidam com a segurança alimentar. A primeira é a Política de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2010; a outra é a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que é de 2012. A terceira é a Política Nacional de Abastecimento Alimentar, de dezembro de 2023, cujo principal instrumento de implementação é justamente o Planaab, ou 'Alimento no Prato'. “Esse plano vem no contexto da discussão de abastecimento, que na minha avaliação é muito importante, e que já tem uma demanda atrasada de pelo menos 10 anos. Ela abre uma discussão que está para além só do combate à fome, de tentar regular de alguma forma e promover a produção, mas também a distribuição e a comercialização de alimentos saudáveis e com qualidade nutricional. O governo acerta quando faz isso. É uma ação que pode gerar um impacto a médio e longo prazo muito importante em relação à qualidade nutricional”, opina Rizzolo.
Flavia Londres, integrante da secretaria-executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), destacou o lançamento conjunto dos planos como um “marco histórico”. “Essas são pautas indissociáveis, que conectam o aspecto da defesa dos territórios, da produção da comida de verdade, sem veneno, que promove saúde, com a política de abastecimento alimentar, que vai envolver as cozinhas solidárias e outras ações ligadas ao abastecimento e ao combate à insegurança alimentar. Eu acho que esses planos devem seguir em grande articulação”, diz Londres. Segundo ela, as duas comissões que representam a sociedade civil em relação à a essas agendas dentro do governo, a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), têm procurado promover uma agenda conjunta de monitoramento dos planos. “Estamos com uma expectativa muito grande de que vá dar passos importantes no enfrentamento à fome e na produção de comida de verdade, abastecimento, de levar comida boa para quem precisa, a partir das iniciativas que vão ser fortalecidas com esses dois planos”, aposta a representante da ANA.
Metas e objetivos convergentes
Instituir um Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos aparece como um dos objetivos específicos previstos no Eixo 1 do Planapo, cujo objetivo geral é de “ampliar e fortalecer a produção orgânica e de base agroecológica, bem como fomentar a promoção da sociobiodiversidade, com especial atenção à garantia do direito humano à alimentação saudável e adequada”. Objetivo dos mais desafiadores do Planapo, tendo em vista a meta de produção de alimentos sem veneno num país que há mais de uma década figura entre os principais mercados consumidores de agrotóxicos. Tanto é que o primeiro Pronara nem chegou a sair do papel. Elaborado por um grupo de trabalho da CNAPO no bojo da aprovação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica em 2012 e do 1º Planapo, o 1º Pronara foi lançado em 2014, no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, mas teve seu lançamento vetado pela então ministra da Agricultura, Kátia Abreu. Flavia Londres explica que o programa foi então transformado em um projeto de lei de iniciativa popular que acabou sendo engavetado no Congresso. “A ideia é que agora a gente possa recriar o Pronara, só que ele precisa ser atualizado. Já se passaram 10 anos, a legislação mudou, o cenário nacional nesse tema mudou bastante também. Então o que a gente exigia como mínimo era que o Planapo previsse a atualização e a instituição do Pronara. E ele prevê”, explica Londres. Segundo ela, esse trabalho já vem sendo tocado por uma subcomissão da CNAPO há alguns meses, e a expectativa é que ele seja lançado no dia 3 de dezembro, Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos.
A agroecologia não é uma produção de nicho, não é você ter comida cara para vender para as elites nos supermercados caros da capital. É justamente o contrário: é você fortalecer os territórios, os circuitos curtos de comercialização, as redes locais de abastecimento, de relações econômicas e de consumo e abastecimento, e dessa forma enfrentar diretamente a insegurança alimentar e nutricional - Flávia Londres
“É importante lembrar que uma parte importante da fome no Brasil está no meio rural. E é lá onde as pessoas, se tiverem recursos e condições de produzir, podem produzir seus próprios alimentos de maneira agroecológica, promovendo a segurança alimentar, num primeiro momento familiar e depois passando a ocupar mercados, a comercializar. E isso tem a ver também com geração de renda”, aponta a representante da ANA, destacando um dos objetivos centrais do Planapo. Dando um passo adiante, o plano pretende ainda reforçar as políticas públicas que já existem e que podem fazer o elo entre os produtores e os consumidores. Caso, por exemplo, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) - que realiza a compra de alimentos diretamente da agricultura familiar e os destina a equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional, como as cozinhas solidárias, bem como a escolas públicas e instituições filantrópicas – e o do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que determina que 30% dos recursos federais investidos em alimentação escolar venham da agricultura familiar. O plano propõe como objetivos, por exemplo, a ampliação da participação de comunidades quilombolas, indígenas, povos e comunidades tradicionais e suas respectivas cooperativas no PAA e no PNAE. “A gente sempre fala que a agroecologia não é uma produção de nicho, não é você ter comida cara para vender para as elites nos supermercados caros da capital. É justamente o contrário: é você fortalecer os territórios, os circuitos curtos de comercialização, as redes locais de abastecimento, de relações econômicas e de consumo e abastecimento, e dessa forma enfrentar diretamente a insegurança alimentar e nutricional”, destaca Londres.
Na outra ponta, o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar, o ‘Alimento no Prato’, se organiza em seis eixos, de acordo com cada um de seus objetivos gerais: estabelecer um sistema de abastecimento alimentar que viabilize o acesso a alimentos saudáveis de maneira sustentável, inclusiva e justa; ampliar a disponibilidade dos alimentos que compõem a cesta básica [...] de forma a mitigar a volatilidade de preços de alimentos; expandir o acesso ao crédito rural e a assistência técnica para incentivar a transição agroecológica; construir fluxos de abastecimento alimentar que operem junto aos alimentos de Segurança Alimentar e Nutricional [...] que promovam ambientes alimentares adequados e saudáveis a partir da transição agroecológica; gerar informação estratégica em abastecimento alimentar para orientar políticas públicas e promover maior transparência e controle sobre as variações de preços dos alimentos que compõem a cesta básica brasileira; e fomentar a produção de alimentos saudáveis, com consonância com as políticas de acesso à terra, aos territórios e à água.
Anelise Rizzolo chama atenção para o objetivo dois, que propõe uma maior regulação sobre o preço de alimentos da cesta básica, e lembra dos impactos recentes da inflação sobre o preço de alimentos como o arroz, que é objeto de um olhar específico do plano. “O governo se reposiciona trazendo para si essa tarefa de regular mercado, não só em termos de qualidade ou de acesso, mas também de conseguir controlar um pouco esse abastecimento interno”, afirma Rizzolo. Ela também destaca o terceiro e o quarto objetivos, que fazem claramente uma articulação com a agroecologia e com o Planapo. “Você tem ali um direcionamento de recurso que vai olhar para a agricultura familiar, que muitas vezes quer parar de plantar com veneno e não consegue, porque não tem assistência técnica e tampouco investimento. Por exemplo, o PAA é um programa que todo mundo quer muito expandir, só que hoje ele ainda trabalha muito dentro do marco do agrotóxico. Então, são necessárias ferramentas para que o pequeno agricultor faça essa modificação”, aponta a integrante do GT Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Abrasco.
Lacunas e desafios
Apesar das avaliações positivas e da grande expectativa em torno dos planos, há algumas ausências que foram sentidas, segundo Rizzolo. Uma delas é a reforma agrária. “Eles falam de acesso à terra e território, mas a reforma agrária não está ali, não aparece como uma ação que precisa ser consolidada”, lamenta a pesquisadora. Outra lacuna, segundo ela, diz respeito ao decreto 11.936, de março desse ano, que dispõe sobre a composição da cesta básica no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar. O decreto dá prioridade, quando possível, a alimentos agroecológicos e oriundos da agricultura familiar na composição da cesta básica. “Só que um decreto não é suficiente para fazer com que essa cesta se altere. Falta uma menção aqui, no plano, sobre a discussão da cesta básica saudável, que demanda um abastecimento também subsidiado. Ele não vai se dar espontaneamente”, pontua a pesquisadora.
Assim como no caso do Pronara, que se opõe a interesses bilionários da grande indústria produtora de agrotóxicos que tem no Brasil o seu maior mercado, no caso do Planaab a perspectiva, segundo Anelise Rizzolo, também é de uma “disputa feroz”. Dessa vez com os interesses econômicos ligados às grandes redes varejistas e atacadistas. Isso porque o “carro-chefe” do plano, segundo Rizzolo, é o que prevê a modernização e requalificação dos mercados atacadistas de alimentos, como as centrais de abastecimento estaduais, as Ceasas, bem como a retomada da formação de estoques públicos de alimentos básicos por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “Essas centrais, que eram um entreposto entre o produtor e o consumidor, foram perdendo a força exatamente porque houve a expansão do fenômeno dos supermercados, hipermercados, ‘atacarejos’. Esse circuito que era mais curto, que vinha do produtor do estado que ia lá e oferecia o alimento e onde havia até uma regulação de preço, foi perdendo espaço para as grandes redes, que fazem essa compra fora do estado, que são centralizadas num só lugar distribuídas para o Brasil inteiro. A ausência do Estado foi dando autonomia para o mercado pautar a oferta de alimentos, a distribuição”, explica a pesquisadora da UnB, para quem mudar isso não será tarefa fácil. “Existe um lobby dessas corporações envolvidas nessa estrutura de abastecimento privado que vão tentar de todas as formas desestabilizar isso para manter sua autonomia”. Ela aposta que a menção específica à Ceasa de Minas Gerais e à Ceagesp, ou Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, como responsáveis pelas ações estratégicas desse objetivo do Plano, não foi à toa. “Tem um contingente importante de pessoas nesses estados. Na minha leitura, provavelmente são estados que têm essa correlação de forças em relação ao mercado mais forte e que estão dispostos a bancar um pouco esse enfrentamento. O fato de eles estarem na jogada deve ser porque eles têm uma perspectiva melhor de fazer essa mediação. E eu faço votos que a gente consiga ter ganhos”, conclui Rizzolo.