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Dores de cabeça para 2016

O início do ano legislativo no Congresso acende de novo o sinal de alerta para projetos que representam retrocessos políticos, sociais e ambientais.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 16/02/2016 10h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h46
Por um lado, o início do ano legislativo pode significar o encaminhamento de projetos importantes para o país, por outro, o fim do recesso parlamentar eleva de novo a preocupação com projetos que já estão na pauta e põem direitos e conquistas a perder Foto: Divulgação

Deputados e senadores retomaram os trabalhos na última terça-feira, 2 de fevereiro. Se, por um lado, o início do ano legislativo pode significar o encaminhamento de projetos importantes para o país, por outro, o fim do recesso parlamentar eleva de novo a preocupação com projetos que já estão na pauta e põem direitos e conquistas a perder. Elencamos aqui as propostas que acompanhamos durante o ano de 2015 e significam uma série de retrocessos. Nesta reportagem, você vai saber a quantas anda a tramitação desses projetos e que outras ameaças estão vindo por aí.

Ameaças ao meio ambiente e aos povos tradicionais

Vamos começar resgatando em que pé está o chamado Novo Código da Mineração. O projeto de lei 5807/2013 foi enviado ao Congresso pela presidente Dilma Rousseff e agora tramita de forma apensada a outros projetos de mesma natureza, como o PL 37/2011, de autoria do deputado Wellington Prado. As propostas foram discutidas em uma comissão especial cuja relatoria coube ao deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), que já apresentou um substitutivo em dezembro do ano passado. O PL 37/2011 já constava na pauta de votações desta primeira semana de trabalhos na Câmara, mas não foi apreciada em virtude de Medidas Provisórias que trancavam a pauta.

Nas eleições de 2014, Quintão recebeu mais de R$ 1 milhão em doações de campanha de empresas mineradoras, R$ 700 mil apenas da Vale. No final do ano passado, uma reportagem da BBC Brasil denunciou que a última redação do projeto estava sendo escrita e modificada no computador do escritório de advocacia Pinheiro Neto, que tem como clientes as mineradoras Vale e BHP, exatamente as controladoras da Samarco, responsável pela tragédia de Mariana.

Por todos esses fatos, a expectativa em relação à votação do projeto não é das melhores para as comunidades tradicionais, movimentos sociais e entidades que defendem um controle maior da atividade mineradora. "Pensando no que este Congresso já foi capaz de fazer neste último ano, a expectativa é ruim. Este é um Congresso muito voltado para os interesses das empresas e os dados de financiamento de campanha, inclusive do relator, mostram o quanto ele está comprometido com este setor. Então, a capacidade de lobby dos movimentos sociais e das comunidades atingidas é muito inferior e a sensibilidade dos parlamentares é terrível", alerta o membro do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, Carlos Bittencourt.

Carlos explica que a proposta apresentada pelo Executivo trazia um único avanço em relação à realidade atual da mineração no país, que era a realização de um processo mais complexo para a aquisição de licença. Atualmente, a descoberta de uma jazida mineral significa praticamente a possibilidade de explorá-la. Pelo projeto do governo, haveria um processo licitatório entre empresas interessadas na mineração de determinado local e quem garantisse as melhores condições de exploração ganharia o direito de minerar. "Essa era uma mudança positiva, mas do ponto de vista socioambiental o governo tinha um silêncio tremendo, que é mantido pela proposta do Leonardo Quintão. E do ponto de vista das comunidades atingidas, do direito de dizer não, das questões democráticas de ouvir os que conhecem o território e que sofrerão os impactos da mineração, as propostas também eram muito similares", detalha. De acordo com o Comitê, no entanto, a proposta que pode ir à votação a qualquer momento é ainda pior, entre outros motivos, por transformar os títulos minerários em ativos passíveis de negociação em bolsas de valores, ampliando a entrada do mundo financeiro na atividade e, consequentemente, a falta de controle sobre quem é responsável pelos prejuízos causados pela mineração.

Outra grave ameaça contida no texto é a sobreposição dos direitos de exploração mineral sobre quaisquer outros direitos. "O texto tem um artigo que diz que qualquer interferência nos direitos minerários, como demarcação de terra indígena, assentamento de reforma agrária, unidade de conservação, para ser garantido, deve ter a anuência prévia da Agência Nacional de Mineração, o que é absolutamente inconstitucional porque dá prioridade ao debate mineral em relação ao debate de direitos culturais indígenas ou de proteção de espécies, por exemplo", reforça Carlos. Procurado, por meio de sua assessoria de imprensa, o deputado Leonardo Quintão não respondeu à solicitação de entrevista.

Licenciamento ambiental ainda mais frouxo

No final do ano passado, a Procuradoria Geral da República realizou um seminário sobre as propostas que tramitam no Congresso e que flexibilizam o processo de licenciamento ambiental. De acordo com a Procuradoria, há pelo menos 15 propostas tramitando na Câmara e no Senado com o objetivo de tornar mais rápido o processo de licenciamento. Durante o seminário, mais de 20 palestrantes, entre procuradores, representantes de órgãos como o Ibama e o TCU, levantaram preocupações em relação às propostas.

A dor de cabeça aumenta porque neste momento está em curso um processo de discussão sobre as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que tratam do licenciamento, o que pode também, a depender do resultado, alavancar a aprovação dessas propostas no Congresso.

Para o Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração, este é outro sinal de alerta. "Querem flexibilizar regras que já estão muito flexíveis. O licenciamento ambiental no Brasil hoje já é quase uma autorregulação das empresas porque não é um órgão público ou uma empresa independente que constrói o EIA-Rima [Estudo e Relatório de Impacto Ambiental], as empresas pagam uma consultoria para isso. Então, em geral são processos para inglês ver. Já se sabe que vai ser licenciado antes mesmo de o processo começar, com a justificativa de que vai gerar riqueza, desenvolvimento, emprego", sinaliza Carlos Bittencourt.

Ameaça aos direitos trabalhistas

O projeto de lei que regulamenta as terceirizações no país foi aprovado em 2015 na Câmara dos Deputados em uma votação apertada – 230 votos a favor e 203 contra. Os deputados aprovaram a proposta (PL 4330/04) apesar do protesto unânime das centrais sindicais do país, que consideraram a aprovação um enorme retrocesso em relação aos direitos dos trabalhadores garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Agora, a proposta tramita no Senado como PLC 30/2015.

O texto que saiu da Câmara regulamenta a terceirização também nas atividades-fim de uma empresa, situação proibida legalmente hoje, embora empresas, inclusive públicas, como a Petrobras e a Eletrobras, burlem a regra.

No Senado, o projeto tem como relator o senador Paulo Paim (PT-RS). Segundo a assessoria de imprensa de Paim, ele discorda do projeto aprovado na Câmara e pretende construir uma proposta alternativa. Para isso, a Comissão de Direitos Humanos do Senado, presidida por ele, em parceria com o Fórum em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, tem feito audiências públicas nas assembleias legislativas estaduais para colher subsídios para o projeto alternativo. No ano passado, foram feitas audiências em 21 estados e até março, estão previstas outras seis audiências nos estados – 18/02 em Cuiabá, 19/02, em Campo Grande, 25/02 em Aracaju, 26/02 em Maceió, 10/03 em Palmas e 11/03 em Goiânia – e uma grande plenária nacional em Brasília no dia 12 de maio, no ginásio Nilson Nelson. "Com isso temos conseguido pressionar os senadores de cada estado, mobilizar as sociedades locais para que pressionem os seus três senadores para que não destruam a CLT, estraguem todo o sistema protetivo brasileiro e coloquem todo trabalhador podendo ser um potencial terceirizado ou pior, quarteirizado, que é o que o projeto prevê", afirma Maximiliano Garcez, diretor para assuntos legislativos da Associação Latinoamericana de Advogados Laboralistas, uma das organizações que compõem o Fórum em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.

O advogado explica por que as organizações consideram que o projeto é uma ameaça aos direitos trabalhistas e à qualidade de vida do trabalhador. "É uma lógica simples: quando você compra uma laranja direto do produtor, você paga um valor. Se compra do supermercado, você vai pagar mais porque houve um intermediário. Na terceirização tem mais alguém alugando o trabalhador. Estudos do Dieese mostram que o trabalhador terceirizado recebe cerca de 30% a menos do que o trabalhador direto, e em algumas categorias essa diferença chega a 50%. Além disso, os terceirizados adoecem muito mais e têm muito mais frequência de acidentes graves de trabalho", reforça.

Maximiliano cita o caso do setor elétrico no qual há estudos mostrando que um terceirizado tem 3,5 mais chances de morrer trabalhando do que um trabalhador direto. As diferenças não param por aí: os terceirizados não têm acesso aos mesmos direitos da convenção coletiva e sofrem mais assédio moral. "No Brasil a terceirização acabou virando a porta de entrada para o que há de pior no mundo do trabalho. Quando uma empresa quer utilizar trabalho escravo, geralmente ela não faz isso diretamente, ela utiliza um ‘laranja’ ou um ‘gato’. Com o trabalho infantil é a mesma coisa. A corrupção no setor público muitas vezes usa a terceirização. Então, é uma tragédia não só para os trabalhadores, mas para toda a sociedade", salienta Maximiliano, lembrando ainda que o aumento dos acidentes de trabalho, sobe também os gastos para o SUS e a Previdência Social.

Diferente do que foi prometido pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, que se comprometeu a realizar uma tramitação democrática da proposta em cinco comissões, o projeto tramita dentro da comissão especial da chamada Agenda Brasil. A expectativa do Fórum em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização é que seja aprovado um substitutivo que, ao contrário de referendar a situação de exploração dos trabalhadores, regulamente e garanta direitos aos cerca de 13 milhões de terceirizados que já existem no país de forma legal, em atividades meio. "Estamos preocupados, porque a correlação de forças no Senado também não é favorável, por isso estamos mobilizando nos estados para que a sociedade pressione seus senadores, para que eles saibam que quem votar por essa imoralidade não vai ser mais eleito para nenhum cargo público em 2018", alerta Maximiliano.

Ameaça aos direitos da criança e adolescente

No ano passado, em várias cidades do país, diversas organizações e movimentos sociais se organizaram contra a aprovação da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. A proposta foi aprovada em dois turnos na Câmara e agora tramita na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (PEC 115/ 2015). Segundo o relator da proposta, senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), ainda não há um prazo para apresentação e votação do parecer na comissão.

A mobilização da sociedade civil contra o projeto continua. Foi lançado recentemente no Fórum Social Temático de Porto Alegre, em janeiro, o documentário ‘É disso que eu tô falando’, dirigido por Edgar Bueno, que mostra alternativas à proposta de redução da maioridade penal. O filme, produzido pela Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), traz projetos socioeducativos que garantem a reinserção na sociedade dos jovens em conflito com a lei a partir das prerrogativas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O coordenador do Observatório da Sociedade Civil da Abong, Nicolau Soares, lembra as manobras que foram feitas na Câmara pelo presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para aprovar a proposta. "Foi um dos primeiros ataques que o Eduardo Cunha processou nesta pauta de retrocessos nos direitos humanos que ele representa no Congresso. Então, o movimento social teve que se articular rapidamente. Como se trata de uma Proposta de Emenda à Constituição, precisa de aprovação de 3/5, tanto na Câmara quanto no Senado e em dois turnos. Na primeira votação, com grande mobilização dos movimentos sociais, a proposta não passou, houve 303 votos a favor e precisava de 308 votos. Mas Cunha deu um chapéu e conseguiu aprovar no dia seguinte. Em menos de 15 horas, deputados mudaram de opinião e com essa manobra ele consegue aprovar nos dois turnos".

Nicolau afirma que o movimento se organizou mais de lá para cá e que, no Senado, a expectativa é um pouco diferente. "O próprio Renan Calheiros [presidente do Senado] já declarou que é contra a proposta, o que obviamente não garante nada, mas muda um pouco o tom da coisa porque os presidentes controlam a agenda de votação. Cunha tinha um ativismo em torno da proposta", aponta.

No entanto, há outros perigos em jogo. Nicolau cita um projeto do senador José Serra (PLS 333/2015) que amplia o tempo de internação dos jovens em conflito com a lei para dez anos. O ECA prevê atualmente no máximo três anos de internação. A proposta já foi aprovada no Senado e agora aguarda apreciação do plenário da Câmara. "Todas essas respostas para o problema dos crimes praticados pelos jovens vêm mais do fígado do que da razão. Nós não estamos discutindo a causa dessa criminalidade e se essas medidas de fato vão diminuir a criminalidade. As vítimas dessa suposta solução podem ser pessoas em idade formativa, que mesmo que estejam envolvidas em uma situação de criminalidade neste momento têm a vida inteira pela frente. Dá tempo de fazer muita coisa, de mudar totalmente a vida, desde que ele encontre alternativas, opções, caminhos possíveis para isso", defende Nicolau. Ele conclui reproduzindo a fala de um jovem que participou de uma das recentes ocupações de escolas em São Paulo. "Este estudante falou: ‘olha, perto da minha casa tem três biqueiras [locais de venda de drogas], mas a biblioteca mais próxima fica a três quilômetros’. Então, o que a sociedade está fazendo para essa população toda, para chegar agora e cobrar dessa forma: você vai para a cadeia porque já é um adulto! É uma situação muito injusta.", denuncia.

Outros projetos

Também já está na pauta de votações da Câmara, o projeto de lei 2016/2015, conhecido como lei antiterrorismo. A proposta já foi aprovada na Câmara, mas foi modificada no Senado e por isso precisa de novo referendo dos deputados. O PL é encarado com muita preocupação pelos movimentos sociais, já que abre margem para que movimentos reivindicatórios, protestos, ocupações, sejam considerados atos terroristas e penalizados como tal. O projeto também ainda não foi apreciado em virtude de Medidas Provisórias que trancam a pauta de votações.

As ameaças não param por aí, diversas entidades da sociedade civil, movimentos sociais, centrais sindicais e outras organizações de trabalhadores têm chamado a atenção para uma série de ameaças a direitos conquistados e podem ser colocados em tela neste 2016. Entre elas, está a Reforma da Previdência. Embora o governo ainda não tenha enviado um projeto ao Congresso, o tema foi um dos destaques da fala da própria presidente Dilma na abertura do ano legislativo. Segundo ela, o governo vai precisar "encarar" o tema.