A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi contra a aprovação e, numa nota técnica, listou os “prejuízos incalculáveis e irreparáveis para a saúde, o ambiente e a sociedade” que ela traria. O Instituto Nacional do Câncer (INCA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apresentaram pareceres contrários. O Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde (DSAST/MS) argumentou que sua aprovação “trará importantes impactos negativos tanto na saúde da população quanto no comércio agrícola”. O Ministério Público Federal (MPF) questionou sua constitucionalidade. Mais de 200 organizações da chamada sociedade civil apresentaram manifesto contrário ao projeto, cujas propostas ainda foram rejeitadas por 90% das pessoas que responderam a uma enquete no site da Câmara dos Deputados. Até a Organização das Nações Unidas (ONU) fez um alerta contra a aprovação do projeto que, segundo ela, representaria um descumprimento de nada menos do que sete convenções internacionais assinadas pelo Brasil.
Nada disso adiantou. A reação contrária não foi suficiente para impedir a aprovação do PL 6299/02, que flexibiliza a lei sobre registro de agrotóxicos no país, na comissão especial da Câmara que analisou a matéria. Por 18 votos a nove, os deputados votaram, em sessão extraordinária realizada na segunda-feira (25), pela aprovação do parecer do relator Luiz Nishimori (PR-PR), favorável às mudanças. O projeto, que vem sendo chamado de ‘Pacote do Veneno’ por seus opositores, conta com o apoio da chamada bancada ruralista, da qual fazem parte 37 dos 50 deputados da comissão especial. Sua presidente, a deputada Teresa Cristina (DEM-MS), também preside a Frente Parlamentar da Agropecuária, (FPA), nome oficial da bancada ruralista. Ela é a “musa do veneno”, como apelidaram integrantes da bancada que celebraram a aprovação durante um jantar regado a vinho e bacalhau em Brasília, como reportou a Folha de São Paulo. Jantar que, além de Teresa Cristina e do relator do projeto Luiz Nishimori, reuniu vários outros parlamentares que representam no Congresso interesses do agronegócio - neste caso, interesses das empresas fabricantes dos agrotóxicos, como a Syngenta, Basf, Bayer, que querem ampliar o mercado brasileiro de agrotóxicos, como apontou esta matéria da agência de notícias alemã Deutsche Welle.
O projeto segue agora para votação no plenário da Câmara dos Deputados. Caso aprovado, vai para o Senado, onde serão apreciadas apenas as alterações feitas ao texto original, apresentado em 2002 pelo então senador Blairo Maggi (PP-MS), atual ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “O que a bancada ruralista está fazendo é extremamente covarde”, critica o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) André Búrigo. “Estão se aproveitando de um contexto de grave crise econômica, social, ambiental e ética no nosso país, um ambiente de fragilização da democracia, para apresentar uma pauta extremamente regressiva, que na verdade significa ‘liberar geral’, os agrotóxicos no país”, completa.
Debate esvaziado na comissão
Desde a retomada dos trabalhos da comissão em 2018, no final de abril, deputados da oposição vinham tentando protelar a aprovação do projeto por meio de recursos regimentais, inclusive com a apresentação de requerimentos solicitando a convocação de audiências públicas para que fossem ouvidas as inúmeras instituições que se manifestaram contrárias à aprovação. “A oposição adotou o que a gente chama de ‘kit de obstrução’, com o qual a minoria pode dificultar ao máximo a votação, sempre amparado pelo regimento. Desde exigir a leitura da ata até requerimentos para apreciação de artigo por artigo. Com isso conseguimos adiar a votação. Segunda-feira [25/06], como era um dia muito vazio aqui no Congresso, eles chamaram a reunião ao meio dia, tiveram a tarde inteira, e conseguiram esgotar as possibilidades de obstrução e votar, depois de mais de nove horas de reunião”, explica o deputado federal Padre João (PT-MG). Durante a sessão, parlamentares da oposição reclamaram que a comissão especial ignorou os inúmeros estudos científicos e pareceres contrários à aprovação do projeto. “Todo o discurso que os deputados favoráveis ao projeto utilizavam é que tinha que haver um critério técnico, acusavam a esquerda como ‘ideológica’, falavam que não entendemos nada de agricultura. Uma hipocrisia, porque todos os pareceres apresentados são técnicos, inclusive por instituições do próprio governo. Mesmo assim eles aprovaram”, critica Padre João.
Por email, a assessoria do deputado Luiz Nishimori, autor do relatório aprovado na comissão, respondeu ao Portal EPSJV que “todos os pontos de vista são legítimos e necessários em um debate democrático” e garantiu que o texto aprovado na Comissão Especial “foi construído com dados técnicos, econômicos e científicos trazidos por diversos atores, incluindo especialistas e cidadãos”.
Alan Tygel, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que vem acompanhando a tramitação do PL, discorda. “A comissão ouviu simplesmente pessoas ligadas à agricultura e ao agronegócio, inclusive ligadas às indústrias de agrotóxicos. E não ouviu, apesar de terem sido feitas sugestões, pessoas ligadas à área da saúde, meio ambiente e à agroecologia. Uma comissão que propõe um projeto como esse deveria ouvir de forma mais ampla a sociedade e os órgãos públicos que se manifestaram muito fortemente através de notas técnicas. Mas isso não foi feito e, portanto, resulta em algo sem nenhuma legitimidade”, denuncia Alan.
O que propõem os ruralistas?
A reação contrária à aprovação se justifica pelo teor das mudanças que o projeto propõe na lei 7.802, de 1989, a chamada Lei dos Agrotóxicos. Atualmente, a legislação exige que, para que seja registrado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), os agrotóxicos precisam do aval da Anvisa - que avalia os efeitos tóxicos dos produtos sobre a vida humana – e do Ibama, que faz a análise de seu risco ambiental. A aprovação do PL 6299/02 significa o fim do poder de veto das duas agências, que passam a participar do processo de registro dos agrotóxicos apenas em caráter consultivo. O projeto cria ainda a possibilidade de que novos agrotóxicos obtenham registros temporários e possam ser utilizados no Brasil se Anvisa e Ibama levarem mais de um ano para concluírem seus estudos, e caso o produto em análise tenha sido liberado em pelo menos três países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Aline Gurgel, pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPQAM) da Fiocruz em Recife, e coordenadora do GT Agrotóxicos da Fundação, teme que a aprovação do projeto signifique uma perda de centralidade do Ibama e da Anvisa na regulação dos agrotóxicos e uma centralização dessa atribuição no Ministério da Agricultura. “O Mapa atualmente não tem a missão institucional nem a competência técnica para desempenhar tais atividades. As decisões sobre o registro de agrotóxicos passarão a ter um cunho iminentemente político, orientado pelos interesses do mercado, na medida em que Anvisa e Ibama perderão suas atribuições de resguardar o meio ambiente e a saúde humana nesta temática”, projeta Aline.
Em entrevista já publicada no Portal EPSJV, Karen Friedrich, integrante do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), fez críticas também à introdução do registro temporário na legislação. “Provavelmente vai ser uma renovação burocrática até que os órgãos terminem a avaliação, mas até lá a contaminação ambiental já ocorreu, a doença das pessoas já ocorreu. E o que eles vão alegar? Que já foi usado durante um ano, dois anos e não deu problema nenhum. Só que tem efeitos desses agrotóxicos que só vão ocorrer dez, 20, 30 anos depois, como o caso de um câncer”, alerta. Ela considera “absurda” a proposta de permitir um registro temporário de agrotóxicos com base em decisões de outros países da OCDE. “Aqui e lá as condições de uso são diferentes em termos de volume, na Europa quase não há plantio transgênico e se usa uma quantidade muito menor de agrotóxicos nas lavouras. As condições climáticas também são diferentes: de repente o agrotóxico é tóxico para uma espécie de peixe, de anfíbio ou inseto que só existe aqui, podendo causar um desequilíbrio ecológico sem precedentes. Isso sem falar nas condições de exposição dos trabalhadores. Lá na Europa é fácil você usar o EPI [Equipamento de Proteção Individual] e aqui não”, aponta Karen.
Mas os problemas do projeto não acabam por aí, segundo seus críticos. De acordo com Aline Gurgel, a lei atual não permite que produtos que causem câncer, mutações, más-formações congênitas ou desregulação endócrina sejam registrados no Brasil. As mudanças previstas no ‘pacote do veneno’ retiram essa restrição, permitindo que produtos com este efeito sejam registrados se for avaliado que o risco é considerado “aceitável”. “Sabe-se que os agrotóxicos também causam outros danos à saúde e que a banalização de seu uso pode implicar aumento da contaminação ambiental e exposição humana, com incremento dos casos de adoecimento e morte, especialmente se considerarmos as enormes vulnerabilidades sociais, ambientais, políticas e institucionais quer permeiam seu uso no país”, critica Aline.
Luiz Nishimori, por sua vez, garante que a aprovação do PL 6299 não significará uma perda das atribuições da Anvisa e Ibama no processo de registro de agrotóxicos. “Com a nova proposta, o sistema de avaliação será integrado e informatizado para garantir a segurança e a celeridade nos registros de substâncias. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento será o coordenador do processo, definindo as prioridades e emitindo os registros, mas nenhum órgão perderá competência”, garante. Segundo o deputado, o projeto estabelece, nos artigos 6º e 7º, que Anvisa e Ibama serão responsáveis por determinar o critério de risco inaceitável que será utilizado pelo Mapa nos registros. “Estudos laboratoriais estipularão quais os limites de ingestão diária das substâncias, da forma como fazem países do mundo inteiro. As análises de Limite Máximo de Resíduos (LMR) e Ingestão Diária Aceitável (IDA) de cada substância seguem protocolos internacionais de segurança que continuarão sendo obedecidos na nova legislação. Se um produto for submetido à avaliação de risco, e Ibama, Anvisa ou Mapa identificarem um risco inaceitável, não será liberado para a comercialização”, explica.
No entanto, seus críticos apontam que o projeto não deixa claro quais os critérios que serão adotados para determinação do “risco inaceitável”. Em nenhum momento os artigos 6º e 7º do projeto de lei, citados por Nishimori, tocam nessa questão. Por outro lado, o projeto coloca, apenas como competência única e exclusiva do Ministério da Agricultura, a atribuição de “decidir sobre os pedidos e critérios a serem adotados na reanálise dos riscos dos pesticidas”. Além disso, apontam seus opositores, como o PL acaba com o poder de veto da Anvisa e do Ibama no processo de registro e centraliza a decisão no Mapa, nada garante que um eventual parecer negativo dos órgãos de saúde e meio ambiente com relação ao risco representado pela liberação de um determinado agrotóxico seja levado em consideração pelo Mapa para autorizar seu registro.
Para Karen Friedrich, é problemático esperar que o governo defina o que é risco “aceitável” em um país como o Brasil, que atualmente já permite o uso de vários produtos que são proibidos em outros países por conta de sua toxicidade. Segundo ela, cerca de 150 dos 470 ingredientes ativos de agrotóxicos registrados hoje no Brasil são proibidos na Europa. “O que é aceitável para você e para mim? E como é que um grupo pequeno de pessoas que trabalham em Brasília de terno e gravata vai deliberar sobre o risco de pessoas e trabalhadores rurais que estão expostos diariamente a essas substâncias? Tem um corte de classe aí importante”, critica. Karen avalia que há o risco de que o potencial cancerígeno das substâncias aumente de forma exponencial nas regiões onde se consome muito agrotóxico, que são, segundo ela, também as que têm o maior número de casos de câncer e más-formações. “Isso porque se o agrotóxico isolado já causa câncer, imagina se ele for usado na presença de dois, três, quatro ou dez agrotóxicos que também têm o mesmo potencial. Hoje há produtos agrotóxicos associados a câncer que a Anvisa ainda não proibiu e que deveria ter proibido. A expectativa é que entrem mais produtos com esse mesmo potencial e que isso tenha impactos fora do controle em termos de doenças”, alerta. Para Karen, o movimento de flexibilizar a legislação sobre agrotóxicos responde a um interesse das empresas de ampliar o mercado brasileiro para seus produtos. “O que eles estão querendo é aportar no mercado brasileiro produtos baratos, obsoletos no sentido tecnológico, que outros países já não querem mais. Eles querem baratear a produção agrícola, em detrimento da saúde e do meio ambiente”, denuncia.
Opositores apostam na ampliação do debate no Plenário
O projeto segue agora para o plenário da Câmara, mas seus opositores acreditam que ele não deva entrar na pauta em 2018 por se tratar de um ano eleitoral. E apostam em um poder de pressão maior a partir das várias notas técnicas contrárias ao projeto. “Os deputados não vão ter a coragem, pelo menos em ano de eleição, de votar uma medida que se transformou numa medida impopular pela luta da sociedade. Apesar de estarmos tristes com essa aprovação, a gente faz um balanço positivo no sentido de que a gente demonstrou que a sociedade está preocupada com esse assunto e que não vai deixar um projeto como esse ser aprovado”, aponta Alan Tygel.
O deputado federal Padre João faz uma avaliação parecida. “O lado positivo dessa mobilização, embora não tenha conseguido frear a aprovação na comissão especial, é que ficou claro que nessa configuração que está aqui no Parlamento só o povo pode barrar um processo tão irresponsável e inconsequente como este. Eu acredito que essa mobilização conseguiu repercutir de maneira positiva na população, no sentido de esclarecer quem está do lado da saúde, do meio ambiente e de uma agricultura que garanta saúde e não doença”, avalia Padre João, que acredita que no Plenário o debate terá que ser ampliado para ouvir também as vozes desfavoráveis. “Ali eu acho que pode mudar um pouco a correlação de forças. Eu creio que eles têm o dever de ouvir também os ministérios da saúde e do meio ambiente, que foram ignorados na comissão. Eu creio que no Plenário vãoter um peso maior as notas técnicas, os apelos das instituições, como a própria Fiocruz, o Inca, a Abrasco”, diz o deputado, que integra uma comissão formada em maio na Câmara para discutir um projeto de lei que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA). Segundo Padre João, a comissão deve ser mais um espaço para trazer para dentro do Congresso vozes contrárias ao ‘pacote do veneno’ e ampliar o debate sobre a necessidade de reduzir o consumo de agrotóxicos no país. Essa é a aposta também do professor-pesquisador da EPSJV, André Burigo. “O campo da saúde defende uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, isso é muito importante. Precisamos resgatar e fortalecer um conjunto de arranjos e estratégias que permitam o avanço da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica [PNAPO] no nosso país. Esse é o caminho para a promoção da saúde, e para que a gente consiga enfrentar esse contexto de injustiças ambientais”, opina.