Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Economia Política do Financiamento da Saúde

Pesquisadores debateram temas como Fascismo, Neofascismo, Ultraneoliberalismo e Ajuste Fiscal
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 25/03/2021 15h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Analisar as políticas de financiamento da saúde no contexto brasileiro. Esse foi o mote da mesa-redonda ‘Economia Política do Financiamento da Saúde no Brasil: alternativas ao neofascismo e ultraneoliberalismo’, parte da programação da última quarta-feira (24/03) do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Coordenada pelo economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Áquilas Mendes, a mesa contou com a participação dos pesquisadores Leonardo Carnut, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Elaine Behring, da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ) e Carlos Ocké, do Instituto de Medicina Social (IMS), também da UERJ.

Relação entre capital internacional e Neofascismo

Primeiramente, em sua fala, Leonardo Carnut definiu o termo Fascismo, na visão marxista. Segundo ele, o conceito é uma das formas de dominação política da burguesia sobre o proletariado mais radicalizado e mais à direita. “Ou seja, cativada e cultuada por uma extrema direita que vê nessa forma de dominação política a única alternativa que a burguesia tem, em determinado cenário conjuntural, para que as relações capitalistas de produção perdurem em função de um momento de crise”, afirmou, acrescentando que isso acontece quando a democracia e suas formas de consenso sobre a dominação política começam a se desfacelar em formas mais ditatoriais, e  tentativas de fechamento do regime vão se consolidando a ponto de estabelecer ou não ditaduras.

Já o Neofascismo, segundo Leonardo, é um fascismo que rememora elementos muito fundamentais do fascismo clássico, entretanto, é readaptado e reinterpretado na conjuntura vigente. “A questão da crise é central como a gênesis do fascismo, enquanto movimento social e forma de dominação política”, explicou.

Em seguida, o professor afirmou que o fascismo ajuda a pensar na teoria unitária de como fazer enfrentamento conjunto, sem fragmentar pautas. “Se conseguirmos entender o neofascismo que vivemos hoje dentro dessa chave unitária, a gente consegue convergir forças sociais importantes para o enfrentamento do problema”, opinou. E mostrou de que forma isso tem se aplicado na conjuntura atual. “A Emenda Constitucional 95, que congela os gastos da saúde e educação por 20 anos, não teria acontecido se não tivéssemos um cenário conturbado para que houvesse uma legitimação de tais medidas. Existe o endosso popular das camadas médias e de parte da classe trabalhadora de que é uma medida fundamental de desfinanciamento para a superação do estado de crise”.

Leonardo trouxe ainda algumas comparações do ponto de vista do capital internacional. O fascismo europeu, segundo ele, é diferente do fascismo de capitalismo dependente ou periférico. “Nos países europeus, o fascismo é mais resultado do fato das superexplorações nas colônias. Lá o neofascismo está baseado na crítica do Estado de Bem-Estar social por meio de um identitarismo branco, tem um caráter defensivo. Já na América Latina a característica é de um neofascismo autodestrutivo, pró-imperialista e conclamado de forma ufanista pelas classes média e trabalhadora, que têm descontentamentos legítimos em função da crise aguda”, caracterizou.

Crise do capitalismo e ajuste fiscal

“O capitalismo em crise só nos traz desespero e morte. No Brasil, nesse momento, são 300 mil mortes que poderiam ser evitadas se houvesse um outro trato do processo da pandemia, que passa pela quebra de patentes, que passa por um boom de investimentos na saúde, além de um trato racional e científico do processo da pandemia não negacionista – como a gente tem vivido”, ressaltou Elaine Behring.

Para ela, no Brasil há uma combinação, que ela considera, “perversa”, entre “ultra neoliberalismo e neofascismo na programática econômica do ajuste fiscal”. “Isso se radicalizou depois de 2016, com o golpe de estado sem motivo, com um governo neofascista, embora a gente ainda não tenha um regime neofascista", apontou.

A pesquisadora caracterizou ainda o que ela chama de espécie de ajuste fiscal permanente e que tem impactos sobre o financiamento das políticas sociais, e destacadamente, sobre a saúde. “A saúde é uma das políticas que mais tem perdido no ambiente do ajuste fiscal permanente”, alertou, explicando que o neoliberalismo e seus impactos deletérios no Brasil não começou em 2016. “Na verdade, nós temos um ambiente de ajuste fiscal, com toda essa lógica de terrorismo econômico, como diz a economista e pesquisadora Leda Paulani, orientando uma série de medidas que inclusive vão contra os preceitos constitucionais. A gente vive isso desde o dia seguinte da aprovação da Constituição de 1988, quando assume o governo Fernando Collor, e a partir daí a agenda neoliberal vai se impondo no Brasil”, destacou.

Elaine continuou fazendo uma contextualização histórica: “O governo Itamar Franco coloca no Ministério da Fazenda o Fernando Henrique Cardoso, e a partir daí, com o Plano Real e a sua lógica macroeconômica, a gente vai viver efetivamente as políticas neoliberais no Brasil”.

O Plano Real articulado ao Plano Diretor da Reforma do Estado – que a pesquisadora considera uma contrarreforma do Estado – vão inaugurar, na visão dela, todo um período em que a disputa do Fundo Público vai estar no centro dessas medidas. “No momento de crise, essa disputa se acirra muito e essa hegemonia burguesa e neoliberal na condução do Estado Brasileiro vai apontar sempre para que as maiores fatias do fundo público sejam destinadas aos seguimentos do capital, e não, aos direitos sociais que são materializados pelas políticas sociais”, defendeu.

Segundo Elaine, o que o Brasil tem vivido ao longo do tempo éa instituição de mecanismos que viabilizam essa apropriação do fundo público pelo capital, nos seus vários segmentos. E contrapôs: “Mas tem uma hegemonia aí nesse processo, que é o capital financeiro, que concretamente se apropria da maior fatia do orçamento público brasileiro via  pagamento de juros e encargos e amortizações da dívida pública”.

Elaine apontou que esse é o maior item de gasto do orçamento público brasileiro. “Todo tempo esse é o maior item de gasto, embora o Instituo Millennium – esse aparelho privado de hegemonia da burguesia brasileira – insista em tentar comprovar que a responsabilidade pela crise sempre se localiza no Estado, e não no capitalismo, porque o principal responsável é o crescimento do gasto público, em especial o crescimento do gasto público previdenciário”, disse. E completou: “A primeira linha do Plano Real e o Plano Diretor da Reforma do Estado é exatamente essa, está escrito lá: é preciso fazer a Reforma da Previdência. O problema do gasto público brasileiro está associado a previdência, ao crescimento da população idosa. Não é à toa que figuras nefastas chegaram a dizer que agora no contexto da pandemia, que a Covid-19 diminui o gasto previdenciário porque mata os idosos”.

Por fim, para Elaine, o fundo público faz parte do processo ampliado e do circuito da valorização do capital. “No capitalismo em crise decadente, ele passa a ser um elemento muito importante nesse processo de reprodução ampliada do capital, nesse suporte a rotação do capital. O fundo público é um elemento estruturante das relações capitalistas e sociais de produção no período em que estamos vivendo, que não é de estado mínimo”, alertou, concluindo que a discussão é em torno da direção da alocação do fundo público que não tem sido para as políticas sociais.

Além de citar o negacionismo, a pesquisadora terminou sua fala afirmando que a lógica ultraneoliberal do ajuste fiscal também mata quando não assegura as condições materiais para, por exemplo, políticas como saúde, faltando médicos e infraestrutura.

Balanço da conjuntura

Carlos Ocké falou sobre a crise economia e sanitária, fez um balanço da conjuntura e do papel da soberania popular nesse momento para a saída da crise. Na visão dele, na contramão das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 2020, ao negar a pandemia, o presidente Bolsonaro promoveu uma falsa dicotomia entre saúde e economia. “Sem qualquer perspectiva hoje de garantia da vacinação e a imunização em massa da população, o governo federal é o principal responsável pela tragédia que assistimos com mais de 300 mil mortes. Se não bastasse o colapso hospitalar e sanitário, com a falta de leitos, UTI, oxigênio, equipamentos e remédios no SUS e setor privado de saúde... Se não bastasse tudo isso, no lugar de aplicar o decreto de calamidade pública e o orçamento de guerra este ano, o governo obedeceu e dobrou a aposta no ABC ultraliberal, endurecendo a política de austeridade fiscal com consequências desastrosas sob as condições de vida e saúde dos brasileiros”, ressaltou. 

Para ele, a Emenda Constitucional 109 – PEC 186 – recém aprovada no Congresso Nacional, criou um subteto dentro do teto de gastos, arrochando os estados e municípios, diminuindo o salário dos servidores públicos. “O próprio auxílio emergencial de 44 bilhões que será destinado aos trabalhadores e desempregados, representam somente apenas 1/6 do que foi aplicado em 2020, em torno de 293 bilhões”, apontou.

Dada a deterioração da situação epidemiológica, ele alertou que o Brasil se tornou uma ameaça para o mundo. E compara a situação brasileira com o contexto americano: “Enquanto os Estados Unidos aprovaram o pacote fiscal de quase três trilhões de dólares para enfrentar o novo coronavírus, a economia brasileira segue acorrentada à bola de ferro da austeridade, patrocinada pelo capital financeiro que impede o lockdown nacional e reforça as projeções negativas para a economia esse ano”.