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Educação, ‘direito de todos e dever do Estado e da família’

Veja o que a Constituição, que completa 35 anos nesta semana, estabeleceu como base legal para a área da Educação
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 04/10/2023 10h41 - Atualizado em 05/10/2023 16h23

A Constituição Federal de 1988 foi resultado da correlação de forças representada na Assembleia Nacional Constituinte, que contou com a participação de mais de 500 parlamentares. Entretanto, seria impreciso afirmar que ela expressa apenas as discussões que ocorreram em subcomissões, comissões e debates em plenário entre 2 de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988. Em verdade, a Carta foi resultado de mais de uma década de mobilizações de massa que resultaram no retorno à Democracia, na reorganização dos movimentos sociais e de suas entidades representativas, e em ganhos econômicos para as categorias profissionais.

A Constituição de 1988 também é resultado da vitória das oposições nas eleições de 1974, da Lei de Anistia, das greves do ABC paulista na virada dos anos 1970 para 1980 e do estabelecimento das eleições presidenciais que ocorreriam no ano seguinte. Como foi destacado na primeira edição desta Revista Poli, lançada em 2008, o texto constitucional dialogou com as propostas dos movimentos organizados, “pois seu Regimento Interno, aprovado em março daquele ano, regulamentava a admissão e tramitação de emendas populares”. Ao mesmo tempo, a Constituição de 1988 foi aprovada após 15 anos de materialização do ideário neoliberal em políticas públicas no cenário internacional, com os “Chicago Boys” e a implementação de suas propostas viabilizadas sob o regime ditatorial de Augusto Pinochet no Chile e, posteriormente, com a desregulamentação financeira oriunda da segunda crise do petróleo e a ascensão dos governos de Margaret Tatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

A Constituição nasce, portanto, dessa dualidade entre uma conjuntura internacional de avanço do mercado privado sobre os setores de atuação do Estado, e uma conjuntura nacional de expectativa democrática para as eleições de 1989. A Educação não passou ilesa dessa disputa no texto de uma “Constituição Cidadã” que apresentou o Estado como responsável por assegurar direitos sociais.

Recém-aprovada, a Constituição Cidadã conviveu com a hiperinflação do final do governo José Sarney e a vitória eleitoral do ex-presidente Fernando Collor de Melo, que estabeleceu a antessala para a aplicação do receituário neoliberal no Brasil que, com variações, não foi totalmente interrompido até hoje. Se houve vitórias importantes, como a quase universalização do Ensino Fundamental, a expansão da Educação Profissional e a maior democratização do acesso às universidades, elas foram acompanhadas de contradições, como a consolidação de grandes conglomerados privados de educação na esteira das políticas de ampliação de acesso ao Ensino Superior.

Neste texto, você vai acessar uma sistematização de tudo que a Constituição determina sobre Educação, tanto o que já foi previsto na versão original quanto as mudanças que vieram depois, por meio de Emendas Constitucionais.

Educação Básica e Infantil

A Constituição de 1988 inovou ao delegar ao Estado o dever de garantir o “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria”, lançando, portanto, as bases para uma política de Educação de Jovens e Adultos. Após 35 anos, a medida pode ser comemorada: foi inequívoca a ampliação do acesso e a quase universalização do Ensino Fundamental no Brasil – segundo o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento do Plano Nacional de Educação (PNE), de 2020, 98,1% da população de 6 a 14 anos frequentava ou já havia concluído esse segmento.

Em 2006 o Ensino Fundamental foi ampliado para nove anos e a Emenda Constitucional 53 estabeleceu oito alterações em dispositivos referentes à Educação, com destaque para a ampliação da exigência de cooperação técnica e financeira da União com estados em programas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, além de mudanças para atendimento de crianças até cinco anos. O Fundeb, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação, também decorre da EC 53, em substituição ao Fundef.

Sobre o Ensino Médio, a Carta afirmou que o Estado deveria promover a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade”. Na primeira edição da Poli, informamos que o texto foi alterado em 1996 pela Emenda Constitucional 14, passando a referir-se à “progressiva universalização do Ensino Médio gratuito”. Nesse número inaugural da Revista você leu também que, apesar dessa mudança, o texto anterior permaneceu na Lei de Diretrizes e Bases. Em 2009 a Emenda Constitucional nº 59 tornou o ensino obrigatório para todas as crianças e jovens com idade entre 4 e 17 anos.

De acordo com os mesmos dados de monitoramento do PNE, em 2020, 73,1% dos adolescentes de 15 a 17 anos frequentavam ou já tinham concluído o Ensino Médio.

- Em 1990, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforçou o papel da Educação para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes até 17 anos, em integração a outros direitos como à saúde, alimentação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito mútuo, liberdade e convivência familiar e comunitária.

- Em 2005, através da Lei 11.114, foi tornado obrigatório o início do Ensino Fundamental aos seis anos de idade.

- Em 2013 o Estatuto da Juventude estabeleceu a democratização do acesso e da permanência dos jovens nas escolas em todas as modalidades e também o acesso ao Ensino Superior, com respeito às chamadas ações afirmativas.

- Em 2017, houve alteração da LDB, estabelecendo-se carga mínima anual de 800 horas para o Ensino Fundamental e Ensino Médio, distribuídas em 200 dias letivos. No mesmo ano, estabeleceu-se o ‘novo Ensino Médio’ através da Lei 13.415. Combatida até os dias atuais por movimentos sociais ligados à educação, essa lei deve passar por revisão em breve, já que o Ministério da Educação apresentou uma proposta de mudanças no conteúdo da Reforma, a partir dos resultados de uma consulta pública.

Educação Profissional

A Constituição de 1988 induz a Educação Profissional como princípio no primeiro artigo sobre o tema, nº 205, quando descreve que o ensino tem dentre seus pilares a “qualificação para o trabalho”. Contrapõe-se, dessa forma, à orientação inicialmente legislada pela Constituição do Estado Novo, de 1937, que em seu artigo 129 dizia que “o ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais”.

Ensino Superior

Um avanço da Constituição Cidadã foi a garantia legal de autonomia para as universidades, como descrito no artigo 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. O texto também estabeleceu a possibilidade de essas instituições receberem apoio financeiro do poder público para atividades de pesquisa e extensão.

Uma das expressões da autonomia universitária na Constituição é a garantia de eleição interna com a submissão de lista tríplice para a definição de seus dirigentes ao Ministério da Educação, mas, mesmo essa regra, que alguns pesquisadores da área consideram restritiva, foi cumprida com revezes. Um exemplo foi o que ocorreu em 1998 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que viu o candidato mais votado pela comunidade acadêmica, Aloisio Teixeira, ser preterido pelo terceiro colocado no pleito, José Henrique Vilhena. Durante os últimos anos, outras universidades públicas passaram pelo mesmo processo de esgarçamento de sua institucionalidade.

Etnicidades e Educação

O artigo 210 da Constituição instituiu que será “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” no Ensino Fundamental regular.

- Em 1996, uma nova lei (9.394) de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabeleceu o respeito à liberdade e apreço à tolerância; a valorização da experiência extraescolar; a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; e a promoção da diversidade étnico-racial. O texto também permitia aos povos indígenas o direito de estabelecer formas de organização escolar, dando-lhes autonomia para a proposição de conteúdos de ensino. Definiu ainda as creches e pré-escolas como integrantes da Educação Básica, obrigando o Estado a ofertar vagas de forma gratuita – mas para crianças apenas a partir dos quatro anos de idade.

- Em 2008, a lei 11.645 determinou a inclusão no currículo oficial da rede de ensino da temática da história e cultura indígena, além da afrobrasileira.

- Em 2013, o Estatuto da Juventude estabelece ações de enfrentamento às discriminações étnico-raciais, de orientação sexual e de gênero nas escolas brasileiras.

Educação Especial

Em seu artigo 208, a Carta garante “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” e a “oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando”.

- Um ano após a promulgação da Constituição de 1988, a Lei 7.853/89 passou a dispor sobre as pessoas com deficiência. Seu texto estabeleceu a Educação Especial como modalidade educativa, com a inserção de escolas especiais públicas e privadas e a oferta obrigatória da educação especial em estabelecimentos públicos de ensino e a matrícula compulsória de pessoas com deficiência em cursos regulares de instituições públicas e também particulares.

- Em 1994, a lei 10.098 estabeleceu normas de acessibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, definindo a supressão de barreiras e obstáculos nas vias e espaços públicos, além da reforma de edificações públicas e privadas. Ao mesmo tempo, seu texto alterou o dispositivo de formação de profissionais intérpretes de escrita em braile e linguagem de sinais, e no primeiro ano do governo FHC foi criado o Conselho Nacional de Educação, definindo suas atribuições e também a composição de suas câmaras de Educação Básica e de Educação Superior.

- Em 2002 é estabelecida a exigência da inclusão do ensino de Libras nos cursos de formação de educação especial e magistério nos sistemas educacionais federais, estaduais e municipais, e no início do primeiro mandato Lula, em janeiro de 2003, a lei 10.639 estabeleceu a obrigatoriedade da temática da história e da cultura afro-brasileira. Dois anos depois, através da lei 11.114/2005, foi tornado obrigatório o início do Ensino Fundamental aos seis anos de idade.

- Em 2015 cria-se lei pela instituição de um cadastro de alunos com altas habilidades ou superdotação, para o desenvolvimento pleno de suas potencialidades.

Público x Privado na Educação

Em seu artigo 205, a Constituição afirma que a Educação é “direito de todos e dever do Estado e da família” e que será “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”, com vistas ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Voltemos à edição inaugural da Poli, que demarcou essa diferença ao afirmar que, em relação à legislação anterior, houve o “reconhecimento da importância da educação para formar cidadãos”. Para assegurar tal direito, o texto proclamou a gratuidade em todo o ensino oficial público, avançando sobre a legislação anterior, que só assegurava que o Ensino Fundamental fosse gratuito. Até então não havia regramento legal para todo o território nacional com esse imperativo para os ensinos Infantil ou Médio, de modo que cada estado aplicava sua própria lei.

Ao mesmo tempo, foi a Constituição de 1988 a primeira a reconhecer e legitimar a existência de um mercado de escolas particulares. O texto, dessa forma, se rendeu ao “fato consumado”, ao estabelecer que a oferta de ensino pode ser objeto da iniciativa privada “com fins lucrativos”, pois até 1988 a legislação não permitia a existência de tais instituições, embora elas já estivessem presentes no sistema de educação brasileiro ‘maquiando’ sua contabilidade para esconder o lucro, como sugeriu o professor Romualdo Portela em entrevista à edição inaugural da Poli.

Além do reconhecimento, a Carta permitiu a destinação de recursos públicos para as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que comprovassem finalidade não lucrativa, aplicassem seus excedentes financeiros em Educação e assegurassem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público no caso de encerramento de suas atividades.

Além disso, através do artigo 213 da Carta, os recursos do orçamento público puderam ser destinados a bolsas de estudo para o Ensino Fundamental e Médio para alunos que demonstrassem insuficiência financeira em locais com falta de vagas ou oferta de cursos regulares da rede pública na localidade de sua residência.

Por fim, a Emenda Constitucional nº 85, de 2015, permitiu que “as atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação realizadas por universidades e/ou por instituições de Educação Profissional e Tecnológica (da iniciativa privada) poderão receber apoio financeiro do poder público”.

Ao completar cinco anos em 2013, em sua edição 31, a Revista Poli afirmava que “passado e presente não são muito diferentes para a área de Educação no que diz respeito às brechas legais para atuação do setor privado... Também esse campo foi invadido pela presença não só de empresas privadas mas de verdadeiros grupos internacionais de investimento, a ponto de a grande política de Educação Profissional estar sendo tocada principalmente pelo Sistema S, e, no Ensino Superior, o Brasil ter se tornado o quinto maior mercado do mundo. Tudo isso financiado com subsídios públicos”. A principal bandeira dos defensores da escola pública na Constituinte, que era o uso exclusivo de recursos públicos nas instituições públicas de ensino, não foi contemplada na Carta de 1988.

- A mesma edição da Poli afirmava que “especificamente na área de Educação, quando se somou ao texto original a legislação que veio depois, a situação só piorou. Um exemplo é que, embora o artigo 213 da Constituição só permita o repasse de verba pública para instituições sem fins lucrativos, os artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) permitem que o Estado aplique recursos em bolsas públicas e privadas, desde que seja subsídio ao aluno e não às instituições”.

Democracia, Cidadania e Representação Popular

A Constituição de 1988 também foi responsável pela defesa da democratização da vida escolar, com garantia de pluralidade, virtude que se estabeleceu após a vigência de 21 anos de regime ditatorial no Brasil. Em seu artigo 206, a Carta afirma que o ensino será ministrado com base na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, “o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” e a “gestão democrática do ensino público”.

Ao contrário do que ocorreu na área da Saúde, que criou o SUS, Sistema Único de Saúde, o texto constitucional não instituiu o arcabouço de um sistema nacional de educação* . A Educação Infantil é responsabilidade de estados, o Ensino Fundamental de municípios e estados, o Ensino Médio prioritariamente de estados e o Ensino Universitário prioritariamente à União. Ao mesmo tempo, há casos de instituições privadas que oferecem serviços da Educação Infantil ao Ensino Superior, e precisam prestar contas legais e fiscais para município, estado e União.

*Apresentado em 2019, o Projeto de Lei Complementar 235 propôs, finalmente, a instituição do Sistema Nacional de Educação. Até o fechamento desta edição, a proposição estava sujeita à apreciação do plenário da Câmara dos Deputados.

Valorização Profissional na Educação

A Carta estabeleceu os princípios de lutas, que já duram 35 anos, em busca da valorização dos profissionais da Educação. O artigo 206 trata da “valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas” e o “piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal”.

- Em julho de 2008 foi sancionada a Lei n° 11.738, que instituiu o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da Educação Básica.

Financiamento

Em seu artigo 212, a Constituição estabeleceu que a União “aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

No mesmo ano, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) foi instituído pela Emenda Constitucional n.º 14, com o objetivo de reunir recursos da União, estados e municípios para o financiamento do Ensino Fundamental proporcionalmente ao número de matrículas em cada rede.

O Fundef foi transformado em Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) através da Emenda Constitucional nº 53/2006, com vigência estabelecida para o período 2007-2020. Seu teor foi modificado em 2020, quando se criou o novo Fundeb por meio da Emenda Constitucional n° 108.

 

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