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Educação profissional em saúde no centro do debate

Resultado direto da série de oficinas realizadas pelo Deges durante o ano passado, evento teve como foco a política de educação profissional em saúde
Maíra Mathias e Joana Algebaile - EPSJV/Fiocruz | 17/06/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

 O SUS não vai avançar sem que haja valorização do trabalhador técnico de nível médio. Esse foi o recado que cerca de 250 pessoas deram em Brasília durante o Seminário Nacional do Profaps, realizado entre os dias 27 e 29 de abril pela Coordenação de Ações Técnicas em Educação na Saúde do Departamento de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (Deges/SGTES/MS).

Os participantes – formadores, gestores, representantes de conselhos profissionais, associações de classe, sindicatos, mesas de negociação e conselhos estaduais de educação – discutiram os rumos da educação profissional em saúde, tendo como espinha dorsal dos debates o fortalecimento da Rede de Escolas Técnicas do SUS.

“A presença e participação efetiva de todos contribuiu para a construção de um panorama de possibilidades de articulação entre a saúde, a educação e o trabalho. A educação profissional precisa estar na linha de frente em ano de Conferência Nacional de Saúde, pois está diretamente ligada ao tema da 14ª, que é a ampliação do acesso ao SUS com qualidade”, comentou, já durante o encerramento, a coordenadora de Ações Técnicas em Educação na Saúde, Clarice Aparecida Ferraz.

Para o secretário-executivo adjunto do Ministério da Saúde, Adriano Massuda, que participou da abertura do seminário representando o ministro Alexandre Padilha, a formação técnica dos trabalhadores do SUS está intimamente ligada à sobrevivência do próprio Sistema em um contexto de forte disputa ideológica entre aqueles que defendem a saúde pública e os que a atacam. “O objetivo maior desta gestão é lutar pela qualidade de acesso aos usuários em todos os níveis do SUS. O segmento de técnicos profissionais é de fundamental importância para conseguirmos a adesão da população brasileira na luta pela defesa do SUS, porque atua nos diferentes níveis – atenção básica, urgência e emergência, serviços especializados –, desde o acolhimento, passando pela realização das ações e pela prestação de informação aos usuários de questões relevantes sobre a sua saúde”.

Massuda acredita que, com o crescimento econômico, é crucial que as classes que ascendem façam a opção pelo SUS: “É a partir desse investimento que vamos trazer para o SUS um segmento populacional muito importante – a classe média – que precisa ver que o sistema é seguro do ponto de vista de ter a melhor assistência à saúde e seguro do ponto de vista de que o dinheiro público é bem investido. Esse desafio é fundamental para a sobrevivência do SUS enquanto organização que atenda ao conjunto da população”.

Articulação com as políticas do SUS

 O secretário-adjunto lembrou que o investimento técnico e político da atual gestão do Ministério da Saúde será na implantação das redes prioritárias de atenção oncológica, em urgência e emergência, em saúde materno-infantil e em saúde mental (leia mais sobre as redes na RET-SUS 43). Coube ao secretário da SGTES, Milton de Arruda Martins, falar sobre a articulação entre as políticas do SUS e a formação profissional durante sua conferência, primeira do evento.

“Como pensar em um programa de prevenção ou de diagnóstico precoce do câncer do colo de útero se não houver o profissional para fazer o papanicolau? Pensar em rede implica em repensar o papel e a formação de todos os profissionais de saúde, que têm que ter a visão da atenção integral e não a visão de uma atenção estática, imaginando que após passar por uma linha de cuidado o cidadão vai para um outro nível de atenção ser atendido por pessoas diferentes que não conversam entre si”, disse.

“A linha política da qualificação do SUS está nas redes de atenção. Quando estivermos pensando em um curso temos que nos perguntar se, de fato, estamos enxergando a ação do trabalhador que vamos formar na perspectiva da rede. Não é mais possível pensar no papel isolado do profissional de saúde”, assegurou, por sua vez, Clarice Ferraz, completando: “Nos últimos 20 anos priorizamos a descentralização e a hierarquização do SUS. A ideia agora é trabalhar na lógica das regiões de saúde. Temos que incentivar a cogestão solidária e participativa”.

A diretora do Departamento de Regulação, Avaliação e Controle da Secretaria de Atenção à Saúde (DRA/SAS/MS), Maria do Carmo, na mesa-redonda sobre a qualificação do trabalho e do trabalhador do SUS, engrossou o coro: “Podemos ter milhões de reais, que as redes vão consumir em quatro anos, mas se não tivermos uma política vigorosa de investimentos nas pessoas isso não vai adiantar. Quando se pensa em primeiro contato, acolhimento, horizontalidade, longitudinalidade e vínculo com o usuário não se deixa de pensar em nenhum momento nos profissionais de nível médio”, disse, completando: “Estamos precisando de profissionais que entendam seu papel como agentes políticos, agentes públicos”.

Diante desse panorama, Arruda considera a pactuação entre as esferas e a articulação entre diferentes áreas como ferramentas indispensáveis para que o processo das redes avance. “As propostas para as redes são fruto de discussão e consenso entre gestores estaduais e municipais”. O secretário ressaltou ainda a importância da interface com sindicatos e entidades de classe. “Uma das nossas prioridades é estabelecer permanentemente diálogo com as entidades de trabalhadores, porque sem eles não há Sistema Único de Saúde”.

De acordo com o secretário, a articulação entre políticas nos campos da saúde, da educação e do trabalho é condição para que o SUS se consolide. “Temos compromisso em atuar de forma conjunta com os ministérios da Educação e do Trabalho. É impossível separar educação e trabalho. Quais são as atuais condições de trabalho? Como vamos fazer para desprecarizar todos os vínculos? Como vamos dar os passos no sentido de criar e aperfeiçoar carreiras profissionais que valorizem o processo de formação e educação permanente? Qual será o sistema de avaliação do desempenho e aquisição dessas competências?”, questionou, explicando que o papel da SGTES é unir forças para que o SUS possa responder todas essas perguntas.

Articulação com a gestão

Maria AuxiliadoraPara a coordenadora do Observatório dos Técnicos em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Mônica Vieira, para analisar o aspecto da qualificação do trabalho e do trabalhador do SUS é preciso considerar dimensões como a regulação profissional; a memória da educação profissional em saúde; o mapeamento da formação e inserção profissional; as trajetórias ocupacionais; o processo e relações de trabalho; e a formulação e implementação de políticas públicas de trabalho e educação na saúde. “Estou tratando da qualificação não como um adjetivo, mas como um conceito que vem da sociologia do trabalho. Não partimos, portanto, de uma abordagem das atribuições do cargo, do posto de trabalho, do trabalhador técnico. Vamos entendê-lo como qualificado ou não em função de uma série de disputas que ultrapassam a formação técnica, que é uma dimensão da qualificação do trabalhador do SUS”, explicou. Para Mônica, as três dimensões fundamentais para pensar a qualificação do trabalho e do trabalhador do SUS são a dinâmica da formação e inserção profissional em saúde; a constituição do campo de recursos humanos em saúde e as representações do trabalhador sobre seu trabalho.

Se a qualificação do trabalhador guarda estreita relação com as diretrizes, prioridades e propósitos das políticas de saúde é necessário pensá-la nos planos de gestão, organização, regulação, operacionalização e avaliação da prestação de serviços. Essa foi a posição defendida pela professora aposentada da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e consultora do Deges, Maria Auxiliadora Christófaro, durante a conferência que proferiu no seminário. “Para a integração ocorrer há a necessidade de pactos internos e externos envolvendo múltiplos atores. Nesse sentido, aqueles que trabalham, aqueles que fazem a gestão do trabalho e aqueles que formam os trabalhadores são, pelo menos, os três grandes pilares para a definição das políticas, contracenando nos processos de decisão, de execução, de controle e de avaliação”, afirmou.

O mesmo ponto foi reforçado pela consultora técnica do Deges, Mônica Durães, que na mesa ‘Escola Técnica do SUS: especificidades e desafios’ sublinhou a importância da atuação nas esferas de pactuação da gestão para pautar a importância da formação e da qualificação dos trabalhadores de nível médio. “A educação profissional técnica de nível médio pouquíssimas vezes está na agenda como prioridade da gestão, o que traz desafios enormes para as ETSUS. Devemos estar sempre articulando e discutindo para relacionar os cursos técnicos com aquilo que o gestor pactuou e tem no seu plano de saúde, elaborado por meio de indicadores e metas a serem cumpridas que impactam no recebimento de recursos e no andamento de todas as unidades do serviço. A escola tem que estar atenta para fazer essa articulação e trabalhar a formação técnica dos trabalhadores com esse olhar e esse recorte”.

Segundo Maria Auxiliadora, é preciso superar a iniquidade na formação de técnicos para a área da saúde no nível médio. “É premente adotar estratégias que assegurem o acesso a processos formais de educação àqueles que estão trabalhando sem a devida qualificação em serviços do SUS. Não podemos  aceitar a iniquidade que marca o trabalho e o trabalhador  na saúde, inclusive, pelas repercussões éticas, técnicas e sociais de tal situação para a população. Esse é um aspecto essencial para discutir a política de articulação do trabalho e da educação em saúde, em especial, quando se trata da educação técnica de nível médio”, ponderou.

Nesse sentido, Maria Auxiliadora pontuou que a alocação de recursos, meios e condições para que se efetive a atenção à saúde deve ser orientada por critérios técnicos, políticos e éticos, inclusive a composição tecnológica das equipes, em todas as unidades da rede de serviços. “É preciso saber quantos são necessários e com qual formação para cada unidade de trabalho: o serviço de saúde não deve absorver pessoas não estão formadas e qualificadas para o trabalho para o qual foram contratadas. Essa é uma questão da ética de Estado em relação à população e ao trabalhador da saúde”.

Escola dos trabalhadores

Durante os três dias do seminário, muitas das características que tornam as Escolas Técnicas do SUS instrumentos de gestão da educação e do trabalho no Sistema Único foram debatidos. O início das escolas foi lembrado pela diretora técnico-pedagógica do Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde Dr. Manoel da Costa Souza (CEFOPE), Magda Dantas, que citou os marcos da formação profissional em saúde no Brasil – como o Programa de Formação em Larga Escala de Pessoal de Nível Médio e Elementar para os Serviços Básicos de Saúde (Larga Escala), o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae), a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Pneps) e o Profaps. “Vemos que houve uma mudança na lógica dos treinamentos para a formação técnica, que trouxe a necessidade de criação de uma escola para pensar a formação de um aluno que também é trabalhador, está no serviço, tem baixa escolaridade, mas que precisa da formação para dar respostas para ele mesmo e para a população que está atendendo”.

 De acordo com dados divulgados durante o seminário, estima-se que mais de 60% da força de trabalho do SUS esteja caracterizada administrativamente como trabalhadores de nível médio. Nesse grupo, conforme alertou na mesma mesa-redonda a pesquisadora da EPSJV, Mônica Vieira, estão inseridos desde trabalhadores em situação de “superqualificação”, com ensino superior completo e especializações, até trabalhadores que atuam sem a formação específica em conformidade com a regulação do trabalho, que constituem o público-alvo preferencial das ETSUS.

Por estarem dentro do SUS e formarem trabalhadores para ele, as escolas precisam negociar com os gestores quais são as suas demandas, quantos são os trabalhadores que atuam sem a devida qualificação, onde eles se encontram, já que vão precisar transformar a rede de serviços de saúde em espaço de formação. É a chamada integração ensino-serviço.

Nesse sentido, a coordenadora de Educação Profissional da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE), Maria Ivanília Timbó, resgatou algumas das primeiras iniciativas de integração ensino-serviço no Brasil. De acordo com ela, foi na década de 1980, com a implementação da Integração Docente Assistencial (IDA) que primeiro se refletiu sobre a necessidade de implementar mudanças nas relações entre o serviço e o ensino, considerando a realidade demográfica, as necessidades de saúde e o perfil do usuário dos serviços. “O programa teve como propósito formar profissionais de saúde buscando a conformação de perfis para o SUS, através de mudanças significativas na formação”, disse. Segundo ela, o programa se baseou na parceria entre universidades, serviços de saúde e comunidade, como alicerce para os processos de transformação da educação dos profissionais. Para Ivanilia, essas iniciativas marcaram a atual tentativa das esferas de gestão do SUS de transformá-lo em um “Sistema de Saúde-Escola”, em que a rede de serviços de saúde é além de espaço de assistência, também espaço de ensino, pesquisa e extensão.

A esse respeito, Maria Auxiliadora defendeu que é preciso delimitar muito bem os papéis do trabalho e da educação para que não percam suas especificidades. “Precisamos lembrar que mesmo quando falamos que o SUS deve ser uma escola, a unidade de prestação de serviços não terá a mesma dinâmica da escola e vice-versa. Há entre eles fronteiras e articulações absolutamente necessárias, importantes e, mais do que isso, fundamentais e essenciais”, disse, explicando que, no caso, o essencial é, por exemplo, cumprir os princípios da Constituição Federal que define como competência do SUS ordenar a formação de sua força de trabalho.

Auxiliadora ponderou ainda que, para que a articulação aconteça, é importante entender a natureza do processo educativo e as especificidades da formação e da prestação de serviços na saúde, lembrando que o processo educativo é, em primeiro lugar, um processo social o que não significa que acontece naturalmente. “A educação não está circunscrita aos processos escolares, ela ocorre através das mais distintas formas e processos seja na família, partidos políticos, igrejas e, também, na escola. Assim, é preciso identificar o que se esconde por trás das propostas de que o processo de formação para algumas categorias de trabalhadores resulta apenas do saber tácito e que as pessoas se educam “naturalmente”. Em geral, por trás dessas propostas está embutida certa forma de (des)responsabilidade política, financeira e social com a educação escolar. A sociedade espera que a escola cumpra objetivos e papéis muitos próprios e insubstituíveis, inclusive na formação de profissionais da saúde. Nós não podemos, à guisa de qualquer processo, negligenciar isso”.

A coordenadora pedagógica da Escola Técnica do SUS Profª Ena de Araújo Galvão, Ewângela Cunha, propôs algumas reflexões a partir da observação do processo de trabalho. Para ela, a temática da integração ensino-serviço tem sido bastante discutida, contribuindo para a transformação dos processos formativos, tendo como marco a Pneps. “Na educação permanente, o serviço passa a ser o locus privilegiado dos processos de ensino-aprendizagem na área da saúde e as Escolas Técnicas do SUS são as instâncias formadoras que possuem o trabalho como princípio educativo e metodologia problematizadora como proposta pedagógica”.

Ainda segundo Ewângela, a questão dos profissionais que vão operar essa integração precisa ser mais discutida. “As escolas não apresentam corpo docente fixo e esses docentes têm vinculação temporária. Na sua maioria, são profissionais da rede pública. A realidade de Mato Grosso do Sul é diferente, porque o estado dispõe de um banco de docentes credenciados. Apesar de não fazerem parte de um corpo docente fixo, muitos atuam com frequência na escola ao longo de sua carreira profissional”, afirmou.

Para Ewângela, alguns pontos devem ser modificados. “Esse profissional que atua como profissional da saúde e como docente não têm essa última dimensão, por exemplo, incorporada em sua aposentadoria. Há que se encontrar formas diferentes e inovadoras para solucionar essa problemática. Podemos pensar, por exemplo, na possibilidade desse profissional atuar uma parte de sua carga horária de trabalho como profissional de saúde e outra parte como docente”, propôs, concluindo: “Dessa forma, o profissional passará a se dedicar muito mais aos processos formativos prioritários da escola. Poderá envolver suas equipes de trabalho e provocar intervenções que modifiquem de fato os serviços”.

Ewângela relatou dificuldades em relação ao campo de estágio e prática nos cursos técnicos desenvolvidos pelas ETSUS. “Esse campo hoje está restrito e as ETSUS disputam acirradamente esses campos com a iniciativa privada. Isso dificulta a execução de cursos na alta complexidade, como os técnicos em Radiologia e Enfermagem. É necessário pensar em alternativas que priorizem a atuação das ETSUS, que são instâncias formadoras dos trabalhadores de nível médio do SUS”, defendeu.

Aspectos pedagógicos

 “Na nossa escola, focamos na reflexão sobre o trabalho pedagógico”, afirmou Ivaneide Nelson, consultora do CEFOPE na mesa dedicada a discutir as ETSUS. Para ela, o nó crítico do trabalho da escola é a questão pedagógica. “Avançamos na questão dos discursos, nas questões teóricas, mas quando tomamos por referência as práticas didáticas, que são o que realmente promovem a ação da escola, começamos a identificar fragilidades”.

Partindo da análise da situação das ETSUS, uma dessas fragilidades é a falta de um corpo docente mínimo que estruture os processos escolares. “Além disso, geralmente a escola trabalha muito em função das demandas e não tem autonomia financeira, mas tem que lidar com metas ambiciosas e prazos curtos. Essa é uma dificuldade que precisamos repensar, é preciso ter critérios”.

Ela destacou ainda que, como as ETSUS trabalham na perspectiva da integração ensino-serviço, precisam vivenciar uma constante reflexão. “Reflexão no sentido de repensar, sistematicamente a ação para torná-la mais coerente, mais lúcida, mais justa. A reflexão não é uma atividade mecânica, ao contrário, penetra na realidade de forma rigorosa, crítica e dialética e dá significado à ação”.

A reflexão sobre os processos escolares também ocupou o cerne da fala de Maria Helena Bagnato, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que começou sua conferência sobre tipos de currículo e formas de organização curricular e avaliação da aprendizagem afirmando que educação não rima com neutralidade. “O currículo é espaço de disputa. Nele, pessoas e instituições com diferentes interesses, valores e tradições devem negociar para estabelecer consensos. Um processo de formação profissional, ao selecionar e organizar certos conhecimentos, elegendo pressupostos e princípios para dar base a esta formação e assumindo objetivos e finalidades, propicia contornos de uma determinada identidade profissional. O currículo corporifica formas de agir, sentir e falar”.

Nesse sentido, a professora explicou que existem diversas teorias que dão base aos conceitos e ideias que vão compor um currículo, como a tradicional, a crítica e a pós-crítica. Para Maria Helena, é importante analisar como cada uma delas responde de forma diferente a certas perguntas: “Que profissional é esse? O que vamos ensinar? Qual conhecimento é considerado mais válido? Porque esse e não outro?”, questionou, explicando: “Já nessas perguntas podemos ver as relações entre saber e poder, pois a construção de currículo também é relação de poder”.

De acordo com o currículo tradicional, o mais importante é que o aluno desenvolva uma técnica. Para isso, a escola vai avaliá-lo de forma a medir o quanto ele aprendeu. Já a abordagem crítica se preocupa com a transformação da realidade. “Ele parte da realidade não só para verificar quais são os problemas como também teoriza e busca fundamentos para voltar e tentar transformá-la. É uma proposta curricular que questiona principalmente o status quo, a forma de organização da sociedade e a maneira como os sujeitos estão inseridos nela”.

Enquanto a abordagem crítica foca no como e no porquê, construindo certas narrativas, a pós-crítica está mais preocupada em desconstruí-las. “E nem sempre vão colocar outra narrativa no lugar. No entanto, uma importante contribuição dessa corrente é o questionamento do estatuto da verdade. Não existe uma teoria ou um campo teórico que dê conta da complexidade da prática. A prática estoura qualquer tentativa teórica de esgotá-la”.

Além das teorias de base, os currículos seguem modelos diversos: acadêmico, tecnológico, reconstrucionista e humanista são alguns deles. Para a professora, o currículo utilizado pela maioria das ETSUS tem características do modelo reconstrucionista social. “A preocupação é centrada no aluno, que vai se voltar principalmente para os problemas da sociedade. Há um traço dominante que é realizar a crítica social no processo de formação, efetivar mudanças sociais, havendo um compromisso de criar uma nova cultura”.

Ainda de acordo com ela, há uma relação entre o modelo e a teoria crítica, pois algumas das questões formuladas vêm do campo contextual. “A comunidade pode trabalhar coletivamente para resolver seus problemas? Há esse espírito de cooperação? As instituições políticas e econômicas podem ser reestruturadas para que as pessoas tenham acesso aos recursos materiais e humanos?”, exemplificou.

A organização curricular pode se dar por disciplinas, módulos, projetos e problemas. Maria Helena explicou que argumentações mais críticas em relação às disciplinas – como a do filósofo francês Edgar Morin – consideram que, ao aprofundar um determinado campo, a disciplina pode fragmentar o conhecimento. No entanto, ponderou que o próprio Morin considera que sem as disciplinas, o conhecimento não teria avançado tanto.

Já na organização por módulo, os componentes curriculares são agrupados segundo princípios de identidade, configurando unidades pedagógicas autônomas; por projetos, por temas de investigação ou de intervenção na realidade que os alunos trabalham; e por problemas a aprendizagem é organizada através da formulação de questionamentos vindos da realidade.

De acordo com Maria Helena, um projeto curricular também tem eixos, como os que estão expressos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e nos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico em Saúde. “Eles representam o que queremos atingir – criticidade, autonomia, comunicação e trabalho em grupo – e vão fazer parte do processo de formação”. Há também eixos mais gerais de organização dos conteúdos, como interdisciplinaridade, contextualização e flexibilização.

Assim como Ivaneide, Maria Helena falou sobre avaliação do trabalho pedagógico, do projeto político-pedagógico e do projeto institucional. “Todos esses espaços têm que passar por um processo contínuo de avaliação em todas as suas dimensões: ética, política, psicológica e pedagógica”. Em relação à avaliação da aprendizagem, Maria Helena citou três tipos: a diagnóstica inicial, cujo objetivo é verificar o que o aluno sabe; a formativa, feita para acompanhar o desenvolvimento do aluno; e a recapitulativa, implementada quando é necessário que os alunos retomem conhecimentos.

Competências

A pedagogia das competências, utilizada pela maior parte das Escolas Técnicas do SUS, foi alvo de falas em várias ocasiões durante o seminário. Maria Helena Bagnato situou seu surgimento na educação brasileira na década de 1990, durante a hegemonia neoliberal. “É um conceito que existiu por um bom tempo dentro do campo da psicologia e migrou para o campo da economia e está de volta no campo da educação”. Para ela esse caminho não ocorreu à toa: “Temos uma série de influências de organismos internacionais dentro da educação. Mas eu acredito que dá para olhar de outro jeito, aproveitando as brechas para ressignificar as competências”.

Essa também é a opinião de Clarice Ferraz, que, em sua apresentação, citou algumas das linhas pedagógicas mais presentes no ensino técnico nos últimos tempos: o cognitivismo, na década de 1980, o construtivismo, na década de 1990 e, finalmente, o construcionismo, que, segundo ela, é capaz de reabilitar o conceito de competências surgido nos anos neoliberais.“Reconstruir o paradigma de competências é uma ousadia. Estamos trazendo a questão para o construcionismo, com ênfase na participação, pois é preciso pensar a formação como um processo cooperativo. Se não estivermos formando profissionais nessa perspectiva estaremos indo contra a proposta das redes de atenção à saúde”.

Ainda de acordo com ela, são pilares dessa linha pedagógica a valorização da construção produzida por cada sujeito em seu dia a dia de trabalho como resultado da interação entre aspectos cognitivos, subjetivos, afetivos e sociais; uma aprendizagem essencialmente ativa; e o aprendizado entendido como processo de reconstrução do conhecimento, com o professor propiciando condições de criação. “Estamos prontos para essa abordagem porque estamos sensíveis a essas questões, o que facilita nossa troca, nosso compartilhamento e a impressão de uma cultura voltada para a construção social, para o construtivismo em um modelo em que sejamos capazes de construir uma abordagem da competência de maneira mais ampliada”, defendeu.

Para avaliar competências profissionais, Maria Helena Bagnato considera como princípio básico selecionar os métodos, que podem ser perguntas; simulações; provas de habilidades; observação direta; e evidências de aprendizagem prévia. “É importante utilizar uma mescla de métodos que permitam a inferência da competência e combinem conhecimento, compreensão, resolução de problemas, habilidades técnicas, atitudes e ética na avaliação”. De acordo com a professora, a avaliação por competências nessa perspectiva implica verificar, principalmente, se há integração entre teoria e prática. “É um grande desafio. Para isso, necessitamos de condições, observação, acompanhamento contínuo e monitoramento de desempenho”.

Maria Helena citou as diretrizes curriculares do ensino técnico para introduzir a ideia de “competência como a capacidade para aplicar adequadamente conhecimentos e habilidades para alcançar um determinado resultado em um contexto concreto”. Para ela, as competências têm uma dimensão técnica (aprender a fazer); humana (aprender a ser); social (aprender a viver com os outros); cognitiva (aprender a conhecer); comunicativa; organizacional; política (aprender a problematizar, a questionar); e cultural (aprender a relacionar-se com as diferenças). Ainda de acordo com a professora, o modelo de competências tende a dar importância às diferenças e particularidades individuais, centrando na aprendizagem – o aluno é o centro – e na autonomia do aluno.

Suely Cândida Catharino, do Conselho Estadual de Educação do Mato Grosso, falou sobre competências profissionais na perspectiva dos instrumentos de regulação da educação. “Ser competente é ser capaz de mobilizar conhecimentos, informações e até mesmo hábitos, para aplicá-los, com capacidade de julgamento, em situações reais e concretas, individual e coletivamente”.

Pronatec

 No encerramento do seminário, Clarice Ferraz falou sobre o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), lançado pelo governo federal na véspera, dia 28 de abril. Segundo ela, a articulação com o Pronatec para ampliar os investimentos na RET-SUS está no centro do planejamento da Coordenação de Ações Técnicas.

Proposto como uma ampla cartela de ações voltadas para a ampliação da oferta de educação profissional e tecnológica no país, o Pronatec congrega novidades, como instituição de bolsas de financiamento para trabalhadores, via criação de um Fundo de Financiamento Estudantil inspirado no já existente Fies – voltado para o estudante do ensino superior que quer ingressar em uma instituição privada – com iniciativas já existentes, como ampliação do número de vagas oferecidas gratuitamente à população nas escolas do chamado Sistema ‘S’; o E-TEC Brasil, de educação à distância; e o Brasil Profissionalizado, onde as redes estaduais recebem recursos da União para construir ou reformar prédios e laboratórios, aumentando, assim, o potencial de matrículas.

Clarice ponderou que, embora o programa seja fruto de uma parceria público-privada – em que dois terços dos recursos são do Tesouro e o restante de parceiros privados – é sinal de um contexto político favorável às pautas da educação profissional e, por isso, uma oportunidade para o fortalecimento da RET-SUS. “Gostaria que pudéssemos, de fato, olhar esse programa e estudar como podemos utilizar o máximo dos recursos para as escolas públicas. Isso precisa ser um compromisso de todos nós. E o que ficar com o privado, que seja de fato com escolas acreditadas e qualificadas. O cenário que temos hoje é muito difícil nesse quesito”, alertou.

Ainda de acordo com ela, para reunir elementos que embasem a argumentação de que mais recursos devem ser direcionados para cursos da educação profissional em saúde ofertados pela RET-SUS, é preciso dimensionar quantos são os trabalhadores que hoje atuam sem a qualificação específica nos serviços de saúde estaduais e municipais. Por isso, a SGTES pretende publicar um edital de financiamento para a realização de uma pesquisa que quantifique esse contingente. Voltado para instituições de pesquisa diversas, como universidades e estações da Rede Observatórios de Recursos Humanos em Saúde, a expectativa é que o estudo seja o primeiro de uma série que, mais adiante, se volte para a avaliação do impacto da formação na qualidade do serviço prestado ao usuário do SUS.

Reportagem publicada na revista RET-SUS nº 44