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Estado e mercado na regulação do trabalho e da formação na saúde

Tema teve centralidade em muitos dos debates realizados durante o segundo dia do Fórum.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 12/11/2013 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O papel do Estado na regulação do trabalho e da educação na saúde foi o tema central das discussões durante o segundo dia do Fórum Global de Recursos Humanos em Saúde, nesta segunda-feira, dia 11 de novembro. ‘Necessidades sociais e o papel regulador do Estado’ foi o assunto de uma mesa-redonda que contou com a participação do secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mozart Sales, além de representantes dos ministérios da saúde da Argentina, França e Itália. Mais tarde, a regulação das instituições formadoras de trabalhadores da saúde foi tema de um debate no qual participaram o secretário-executivo da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (Una-SUS), Francisco Campos, e o professor da Faculdade de Medicina de Marília, Carlos Rodrigues da Silva Filho, bem como membros dos governos do Camboja e da Guatemala.

Discutir quando e como o Estado deve intervir para garantir cobertura universal de saúde à população por meio de políticas de formação de trabalhadores de saúde e de sua distribuição pelo território de acordo com as necessidades e características epidemiológicas de cada região: essa foi a preocupação central da mesa-redonda ‘Necessidades sociais e o papel regulador do Estado’. Que políticas o Estado deve adotar para induzir a distribuição equânime de trabalhadores de saúde pelo território sem deixar de levar em conta a autonomia dos centros de formação e o direito dos trabalhadores de escolherem onde querem trabalhar?

Mozart Sales afirmou que “a perspectiva de entidades profissionais trabalharem junto com o Estado é importante, as parcerias são necessárias, mas o mais importante é o interesse sanitário da população, que pode entrar em choque com interesses de reserva de mercado”. E completou: “O Estado deve ser pautado pelos interesses coletivos da maioria, não pode desconhecer quais enfrentamentos e formatações é preciso fazer para realizar as mudanças necessárias”, disse o secretário, concluindo em seguida: “Por isso estamos realizando cadastro nacional de especialistas médicos. O Brasil até hoje não tinha essa base da dados de especialistas, com a área de formação e região onde estão. Essa ferramenta é importante para planificarmos para até 15 anos as necessidades de formação de profissionais de saúde de acordo com os aspectos epidemiológicos da população”.

Perguntado pela jornalista Ghida Fakhry, mediadora da mesa, como o Estado deve agir para garantir a fixação de profissionais de saúde em regiões pobres e distantes de grandes centros urbanos, Mozart Sales afirmou: “Hoje no Brasil temos dificuldades por conta de superespecialização precoce e dificuldade do aparelho formador de estabelecer a importância da atenção básica. Nas regiões onde a fixação é impossível temos que investir em condições de atratividade. Em áreas de difícil provimento devido à localização geográfica, como a Amazônia ou distritos indígenas, é preciso pensar carreira para garantir permanência e acesso às condições de tomada de decisão e infraestrutura mínimas para atuar. É preciso estruturar o aparelho formador para pensar necessidades sanitárias, lotar profissionais de uma maneira que ajude a diminuir a miséria”.

Ghida Fakhry perguntou então se é papel do Estado obrigar trabalhadores a se deslocar para locais aonde eles não desejam ir. Jean Marc Braichet, chefe de gabinete do Ministério da Saúde da França, respondeu que o Estado deve adotar políticas com base no estímulo ao deslocamento. “Tomo o exemplo da França, onde de fato temos regiões onde não há médicos porque não há regulação que obrigue para tal. Vamos conservar total liberdade para os médicos mas vamos instituir uma regulação baseada no estímulo para fixar médicos onde há necessidade de médicos, assinatura de contratos com o Estado caso desejem, bolsas de estudo na duração do contrato, que pode ser de dois ou três anos. Isso seria importante para motivar profissionais de saúde a se fixarem em zonas deficitárias, principalmente parteiras, médicos e enfermeiras recém-formados. O jovem diplomado hoje tem novas expectativas, temos que ver como desejam trabalhar e o que pode motivá-los para trabalhar onde se precisa deles”.

Gabriel Yedlin, representante do Ministério da Saúde da Argentina, perguntado pela mediadora se a regulamentação não significa um ônus financeiro ao Estado, afirmou que, de fato, a perspectiva de colocar o Estado não só como regulador, mas como prestador de serviços, como ocorre na Argentina, custa muito dinheiro, mas ponderou: “Quando países crescem muito, esse custo aumentado pelos funcionários públicos é um custo por prestar serviços, o entendimento é que se está gerando acessibilidade para quem não tinha. O Estado deve agir na regulação também dos setores que impactam no setor saúde, como a indústria do álcool, do tabaco, dos alimentos processados. Isso repercute na saúde a longo prazo. Quando vemos nessa perspectiva, essa é uma necessidade que abrange toda a sociedade no conjunto. Uma sociedade regulada não é sem liberdade e sim uma sociedade que cria normativas para que sua população seja mais sadia”, apontou Gabriel.

Mozart Sales, por sua vez, fez referência à Constituição de 1988 para defender que o Estado deve ter papel ativo também na orientação da formação de trabalhadores para o sistema de saúde.  “Nossa Constituição dispõe que é o SUS quem deve ordenar a formação de recursos humanos. Essa compreensão da regulação é a construção de políticas afirmativas, de acompanhamento do mercado de trabalho, de construção e aquisição de tecnologias para torná-las acessíveis. Isso deve estar articulado com o sistema formador. Não é admissível que isso fique a cargo de interesses corporativos, sem capacidade de fazer as transformações necessárias”, disse Mozart, para em seguida concluir: “O Estado não é um processo autoritário, e sim a representação jurídico-social de uma plataforma política, cuja posse é disputada a cada quatro anos”.

A mesa-redonda terminou com a mediadora fazendo uma crítica: “Espero que nas próximas mesas tenhamos mais espaço para outros atores de fora do governo, acho que essa discussão ficou desequilibrada. Acho que as pessoas querem ouvir também a voz da sociedade civil nesse debate, e não apenas os governos”.

 

Formação

 Com o fim da mesa-redonda, teve início uma rodada de debates menores, que procuraram discutir possíveis desdobramentos do tema central. Um deles teve o tema: ‘Cultivando excelência: regulação das instituições encarregadas da educação e treinamento de trabalhadores da saúde’, no qual, mais uma vez, teve centralidade a questão da regulação da formação de médicos e enfermeiros de acordo com as necessidades do sistema de saúde. “Hoje temos no Brasil cinco estados com uma proporção muito baixa de médicos por habitante e, ao mesmo tempo, temos mais enfermeiros do que precisamos. A formação de médicos e enfermeiros conta com subsídios públicos, e temos que pensar se, do ponto de vista do dispêndio, vale a penatermos 200 escolas de medicina e 500 de enfermagem despejando profissionais no mercado de trabalho. Não podemos abrir mão do Estado para regular essa formação para que interesses públicos sejam cobertos”, afirmou Francisco Campos, secretário-executivo da Una-SUS. Além disso, continuou Campos, embora o dinheiro público subsidie a formação de médicos e enfermeiras, a oferta de educação permanente hoje é pautada por interesses privados. “Um médico passa 30 anos no serviço de saúde e qual tem sido a oferta de educação permanente para ele? Uma pesquisa do Conselho Federal de Medicina constatou que o grosso da oferta vem de representantes de laboratórios farmacêuticos que têm interesses vinculados a sua indústria. O setor público não pode deixar que a única forma de educação permanente seja pautada por interesses da indústria farmacêutica. É nesse sentido que defendemos a presença do Estado no aparato regulatório da formação da saúde”, concluiu.

Carlos Rodrigues da Silva Filho, professor da Faculdade de Medicina de Marília, fez uma defesa do programa Mais Médicos, do governo federal, que para ele tem potencial para diminuir as desigualdades na proporção de médicos entre as regiões brasileiras. “Ao mesmo tempo em que tínhamos, em 2011, 300 cidades do Nordeste sem nenhum profissional de saúde, e outras sem nenhum profissional de saúde, as escolas médicas estavam em sua maioria no Sudeste. O Estado e as corporações médicas nem sempre têm agendas comuns, e os países precisam resgatar sua capacidade de planejamento a médio e longo prazo. O que o Mais Médicos vai fazer é abrir escolas por licitação, de acordo com a necessidade social, estabelecer parâmetros para as instituições que queiram abrir novos cursos, como uma forma de planejar a força de trabalho, coisa que nos últimos 20 anos não foi feita”, disse Carlos, que defendeu que as corporações médicas, que têm se posicionado contra o programa, estavam “habituadas a colocar a sua agenda sobre a nacional”, e precisam “parar para refletir, já que 80% da população apóia o Mais Médicos”. “Precisamos resgatar nossa capacidade de ver quantos médicos temos e quantos precisamos em cada área. Para isso, é preciso diálogo”, concluiu.

Jorge Alejandro Villavicencio Alvarez, ministro da Saúde e Assistência Social da Guatemala, criticou a ênfase dada aos médicos nas discussões. “Não apenas os médicos fazem a saúde. Infelizmente somos formados em hospitais e o conceito da saúde pública está no sentido biologicista, focado na doença”, disse. Segundo ele, para reduzir as taxas de desnutrição, que atingem metade das crianças com menos de cinco anos,  e mortalidade materna, de 139 a cada cem mil partos, na Guatemala, foi preciso uma política de certificação de nutricionistas e parteiras. “Infelizmente, embora todos falem em atenção primária, continuam falando em hospitais e comprimidos. A atenção primária é fundamental mas não teve repercussão nos países. Estabelecer a atenção primária à saúde nos objetivos do milênio é importante, mas não podemos continuar fazendo a mesma coisa. Temos que focar a prevenção da doença, incorporar outros atores que não apenas médicos e enfermeiros”, ressaltou Jorge.