No dia 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 25 anos de existência. A data que deveria servir como oportunidade para um balanço e para celebrar a lei que é considerada um dos maiores avanços no campo dos direitos das crianças e adolescentes no país ficou marcada por protestos em diversas capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. O motivo? A proposta de redução da maioridade penal, aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados 11 dias antes do aniversário do estatuto, na madrugada do dia 2 de julho. Os deputados aprovaram uma versão do texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 que reduziu a maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de crimes contra a vida, como estupro, latrocínio, homicídio qualificado, latrocínio, homicídio doloso e lesão corporal com morte. A aprovação se deu depois de uma manobra polêmica do presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que recolocou a matéria para votação, com pequenas alterações, menos de 24 horas depois de ela ter sido rejeitada – com uma diferença de apenas cinco votos – pelo plenário da Câmara. A única diferença entre o texto aprovado e o rejeitado era que o último incluía o tráfico de drogas, tortura, lesão corporal grave e o roubo qualificado entre os crimes pelos quais os jovens de 16 anos responderiam como adultos.
A controvérsia foi tamanha que um grupo de 102 deputados federais de 14 partidos (PT, PMDB, PSDB, PDT, DEM, PSB, PCdoB, PSOL, PPS, PV, PROS, PTC, PR e PSC) protocolaram um pedido para que o Supremo Tribunal Federal (STF) anulasse a votação alegando que a Constituição proíbe que uma matéria rejeitada seja votada novamente no mesmo ano. No dia 11 de julho, o ministro Celso de Mello negou o pedido de liminar, mas a matéria ainda deve ser votada pelo plenário do Supremo. O texto do projeto de redução da maioridade penal ainda precisa ser aprovado em segundo turno na Câmara para depois seguir ao Senado. Pepe Vargas, ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República já anunciou que o governo deve recorrer junto ao STF caso a proposta seja aprovada no Congresso.
“Me parece que se inaugurou uma prática nova no Legislativo que é a votação teste: você vai votando, testando, até conseguir aprovar o que você quer. É preocupante”, afirma André Bezerra, presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Para o magistrado, causa alarde a celeridade com que o projeto foi votado na Câmara, ainda mais se tratando de uma proposta de emenda à constituição. “Se naturalizou que mudar a Constituição é um processo normal, corriqueiro. Um governo democrático tem que se guiar pela Constituição, mas aqui me parece que é o contrário; a Constituição é que se guia pelo governo”, critica. No decorrer do processo de votação, entidades como a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e juristas como Dalmo Dallari divulgaram posicionamentos alegando que o conteúdo da proposta é inconstitucional, uma vez que viola uma cláusula pétrea da Constituição. André Bezerra concorda, e explica: “A cláusula pétrea foi criada na Alemanha após a segunda guerra para evitar que uma recaída fascista alterasse a Constituição. Vários países adotaram as cláusulas pétreas também para evitar retornos autoritários. No Brasil, entre as cláusulas pétreas estão os direitos e garantias fundamentais, que incluem o direito do jovem não ser encarcerado no mesmo sistema prisional de um adulto”. No entanto, os parlamentares que defendem a redução falam na criação de um sistema prisional separado para os jovens entre 16 e 18 anos que cometerem crimes contra a vida. “Não vamos nos iludir. Hoje se tem notícias de adolescentes presos em delegacias de polícias no Brasil, junto com presos comuns, o que é expressamente proibido. Não há garantias de que isso vai ser cumprido”, ressalta Bezerra. “Pra mim essa é uma discussão inócua, nem se poderia estar falando disso”, completa.
Nove em cada 10 apoiam redução, segundo Datafolha
Inconstitucional ou não, esse é um debate que se arrasta praticamente desde a promulgação do ECA, que regulamentou os dispositivos presentes na Constituição aprovada dois anos antes. A proposta em votação tramita desde 1993 no Congresso Nacional e, para muitas das entidades que se posicionaram contra a redução, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), trata-se do maior retrocesso dos direitos da infância e da adolescência no Brasil. O ECA completa 25 anos em meio a uma onda de descrédito: segundo levantamento do portal da Câmara dos Deputados, existem hoje cerca de 300 propostas para alterar o estatuto tramitando na Casa. E de acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha poucas semanas antes da votação na Câmara, a redução da maioridade penal conta com o apoio de 87% da população brasileira. Desses 73% defendem a redução para qualquer tipo de crime. Os parlamentares que defendem a proposta, como o próprio Eduardo Cunha, tem usado esse número como argumento para defender a proposta. Para Bruna Rigo, coordenadora do núcleo especializado da infância e juventude da Defensoria Pública de São Paulo, no entanto, o argumento é falho. “Eu acho que hoje temos um amadurecimento no conceito de democracia, que não é puramente a vontade da maioria. É a vontade da maioria desde que de acordo com valores sociais e com a Constituição Federal”, diz Bruna. “É preciso ter cuidado muito grande com querer dar efetividade ao que quer a população porque senão corremos um perigo muito grande de perda de valores constitucionais que já foram conquistados a duras penas”.
Por trás do apoio à redução estão alusões à suposta “impunidade” garantida aos adolescentes infratores pela legislação atual, que seria muito “leniente”. O ECA, que regulamentou a responsabilidade penal de menores de 18 anos, determina que os adolescentes de 12 a 17 anos podem responder por atos infracionais. Neste caso, aplicam-se medidas socioeducativas, que podem ir de advertência à internação por até três anos para os crimes mais graves, como homicídio. De acordo com levantamento feito em abril pela Agência Câmara, 21 dos 27 deputados que integraram a comissão especial que analisou a redução da maioridade penal na Câmara dos Deputados eram favoráveis a um aumento no tempo máximo de internação. Atualmente em torno de 50 projetos de lei em tramitação na Câmara tem o intuito de endurecer a punição aos adolescentes infratores, como é o caso do PL 5454/13, da deputada Andreia Zito (PSDB-RJ), que amplia de três para oito anos o tempo máximo de internação para o jovem que comete um crime hediondo.
Mesmo entre os que são contra a redução da maioridade penal não há consenso sobre essa questão. Em nota assinada pelo presidente da OAB nacional Marcus Vinicius Furtado Coelho, ele defende um aumento no “rigor de sanção” do Estatuto da Criança e do Adolescente seria mais adequado do que a redução da maioridade. Coordenador-geral do Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas (Sinase), Cláudio Vieira defende uma posição similar. Para ele, é necessário repensar o tempo máximo de internação para quem comete delitos graves, como homicídios. “Hoje são três anos para qualquer infração. Acho que isso contribui para transmitir para a opinião pública uma falsa ideia de impunidade. A gente não pode transmitir para ninguém da sociedade que é possível você mexer com a vida alheia de uma forma negativa e isso não ter correspondência do ponto de vista da punição”, defende Vieira.
A Associação Juízes para a Democracia, por outro lado, defendeu, em nota, que não há “qualquer estudo científico sério demonstrando relação entre rigor na repressão penal e diminuição dos índices de criminalidade”. “Vamos imaginar o que são três anos para um adolescente de 16 anos. Um quinto da vida dele. É pouco?”, questiona André Bezerra. “Se você aumenta a internação está usando a mesma lógica do sistema penal dos adultos. E o sistema relativo a prática de crimes por adolescentes tem uma lógica muito diferente. Tem o objetivo de reeducar, não apenas punir”.
Unidades de internação: superlotação, falta de higiene e de estrutura
No entanto, como apontou o relatório “Um olhar mais atento nas unidades de internação e semiliberdade para adolescentes” divulgado em abril deste ano pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a dimensão da reeducação prevista para o sistema socioeducativo pelo ECA fica em geral impossibilitada pelas más condições das unidades de internação em funcionamento no Brasil, que hoje abrigam 23,1 mil adolescentes infratores. No relatório, o Ministério Público denuncia um quadro de precariedade que viola várias das disposições estabelecidas pelo estatuto. Falta basicamente tudo: espaço para os internos por conta da superlotação; estrutura para oferecer atividades educativas, culturais e esportivas; segurança; condições de higiene. Em nível nacional, uma rede que comporta 18.072 internos abriga 21.823. Em maior ou menor grau, há superlotação em 17 estados do país. Em alguns, como o Maranhão, o sistema socioeducativo chega a abrigar oito vezes mais adolescentes do que sua capacidade permite. No Mato Grosso do Sul, há três vezes mais jovens internados do que as unidades comportam. Em 19 estados, mais da metade das unidades de internação apresentam más condições de salubridade, como falta de higiene e conservação iluminação e ventilação adequadas. Nos estados do Centro-Oeste e Norte, sete em cada dez unidades apresentam condições insalubres. O ECA também estabelece a obrigatoriedade de que as unidades de internação ofereçam atividades educacionais, culturais e esportivas para os internos. No entanto, 28,7% das unidades inspecionadas não apresentam salas de aula consideradas adequadas, equipadas, bem iluminadas e com uma biblioteca. Faltam espaços para esportes, cultura e lazer em 28,4% das unidades inspecionadas.
Em 1996 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) estabeleceu que cada unidade de internação deve abrigar no máximo 40 jovens. No entanto, essa regra é descumprida de forma generalizada no país. Em apenas dois estados, Maranhão e Piauí, todas as unidades tem capacidade para atender não mais do que 40 internos. Não é o que se vê no restante do país: 63,3% das unidades inspecionadas têm capacidade superior a 40 internos. Uma em cada 20 unidades visitadas tem capacidade para mais de 120 internos. Ainda assim, quando comparado ao sistema carcerário, o sistema socioeducativo apresenta índices de reincidência menores: dados de 2012 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que esse índice gira em torno de 50%, contra 70% do sistema carcerário. No estado de São Paulo, que concentra em torno de metade dos jovens cumprindo medidas socioeducativas de internação no país, a Fundação Casa afirma que o índice de reincidência gira em torno de 15%. “Mas há uma falha nesse dado, porque a Fundação Casa só considera reincidência uma segunda internação. Se o adolescente cometeu um ato infracional anterior e foi penalizado com outra resposta estatal que não a internação não é considerado reincidência”, ressalta Bruna, que afirma que esses dados são difíceis de levantar uma vez que muitos estados não possuem esses dados esquematizados. “Mas não precisa ter uma estatística pontual para saber que é muito mais fácil trazer de volta para a sociedade sem o risco desse adolescente cometer novo ato infracional quando você dá pra ele um sistema diferenciado de resposta estatal que não só o cerceamento de liberdade”, avalia.
Internações em excesso
Para Cláudio Vieira, faltam recursos para as unidades de internação. Mas segundo ele há também o problema do alto número de adolescentes internados por infrações para as quais o ECA não prevê medidas de restrição de liberdade. “Há ainda uma concepção nas execuções das medidas socioeducativas privativas de liberdade que é de encarceramento, uma atitude quase vingativa com esses adolescentes”, ressalta Vieira. O ECA estabelece que as medidas de internação só poderão ser aplicadas nos casos em que a infração for cometida mediante violência física, e nos casos de reiteração no cometimento de infrações graves ou descumprimento reiterado de medidas socioeducativas impostas anteriormente. Segundo Vieira, esses casos correspondem a apenas 10% dos jovens internados atualmente.
Quando são comparados os dados sobre as principais infrações cometidas por adolescentes privados de liberdade no Brasil com a proporção das medidas socioeducativas aplicadas, nota-se que há uma discrepância entre a gravidade do ato cometido e a severidade das medidas aplicadas, tendo em vista que o ECA estabelece que as medidas de internação devem ser aplicadas excepcionalmente. No Sudeste, por exemplo, região com maior número de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país, infrações como roubo e furto, de baixo teor ofensivo, somam 43% do total. Homicídio e latrocínio somam 7% do total de casos. Ainda assim, medidas socioeducativas de internação perfazem 71% do total de medidas aplicadas, e a internação provisória, 20%. No Nordeste, que depois do Sudeste tem o maior número de adolescentes privados de liberdade do país, dá-se o mesmo: apenas 17% das medidas foram aplicadas por infrações graves, como homicídio e latrocínio; roubo e furto perfazem a maioria dos casos: 39%; entretanto, as medidas socioeducativas de internação somam 62% do total. Em maior ou menor grau, esse quadro se repete também nas demais regiões do país.
“Existe um excesso de internação muito grande” analisa Bruna Rigo. E segundo ela, esse rigor não é aplicado de maneira indiscriminada. “Há uma leniência com os atos infracionais cometidos com a classe média e uma outra visão quando se julga o filho de quem mora na periferia e as pessoas pobres. Como defensora pública em Osasco, presenciei casos de internação de adolescentes por briga em abrigo ou entidade de acolhimento, que é o local onde os adolescentes que por alguma razão tem seus pais suspensos de seu poder familiar ficam. Existe um rigor punitivo para essa população que não se vê entre os mais ricos”, afirma. Segundo dados do Ministério da Justiça, mais de 60% dos adolescentes privados de liberdade são negros, 51% não frequentavam a escola e 49% não trabalhavam quando cometeram o delito e 66% viviam em famílias consideradas extremamente pobres. Para o psicólogo Rodrigo Torres de Oliveira, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), essa dimensão vem sendo deixada de lado nas discussões sobre o ECA e a redução da maioridade penal. “As comunidades do crime, o tráfico de drogas, as armas, são uma realidade que não pode ser desvinculada de um quadro em que as carências, as privações, as desfiliações e as destituições, de todos os tipos, estão presentes, como a negligência do Estado e a ausência de políticas de prevenção comunitárias e inclusivas. Faltam políticas públicas e sociais de saúde, assistência social, esportes, de profissionalização, de emprego e geração de renda e de cultura”, pontua, em entrevista realizada por email. Ele lembra ainda que, muito embora os adolescentes venham sendo tratados como “algozes” e “vilões” no debate público sobre a segurança pública, a realidade é que eles são muito mais vítimas do que autores da violência. Dados levantados pela Unicef apontam que 28 crianças e adolescentes são assassinados todos os dias no Brasil. Entre os adolescentes que morrem por causas externas no país, 36,5% são assassinados. No restante da população, esse índice é de apenas 4,8%.
Diante desse quadro, Rodrigo acredita que a redução da maioridade penal traria “consequências nefastas” para os adolescentes. “Principalmente para os pobres e negros. Seria atestar uma sociedade e um Estado incapazes de lidar com sua infância e juventude. Seria profundamente injusto, desproporcional e vingativo tratar adolescentes como adultos, a miséria humana e condições de vida e sociais como questões de caráter”, avalia. Bruna Rigo concorda. Para ela, a defesa da proposta parte de uma ideia equivocada que acredita que o aumento do rigor punitivo incide sobre os índices de violência. “O endurecimento das penas nunca diminuiu a violência, isso já está demonstrado pela criminologia”, argumenta, lembrando que, desde a década de 1990, a população carcerária no Brasil cresceu mais do que 500%. Hoje o país tem a 4ª maior população carcerária do mundo, com mais de 600 mil presos. O Ministério da Justiça estima hoje um déficit de 230 mil vagas no sistema carcerário. No mesmo período, a taxa de homicídios passou de 11,7 para 32,4 para cada 100 mil habitantes, o que deixa o país no 11º lugar entre os países com maiores taxas de homicídios do mundo. “Vamos jogar os nossos jovens de 16 anos num sistema carcerário como o nosso onde eles vão ser alvo de violências e vão acabar sendo aliciados, até para conseguirem sobreviver. Esse adolescente um dia volta para a sociedade. A gente vai pagar um preço”, alerta.
Reportagem publicada na Revista Poli nº 41, de julho e agosto de 2015