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Fornos urbanos

Pesquisa aponta como o calor, decorrente do desmatamento tropical, está associado a 28 mil mortes anuais
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 17/11/2025 11h57 - Atualizado em 17/11/2025 12h01

Se você é brasileiro, certamente conhece a música do cantor Jorge Ben Jor: “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. Enquanto a ideia de residir em um país tropical sempre esteve associada a um clima quente e com belas paisagens, a última década trouxe consigo novos – e alarmantes – contornos. O calor, antes anunciado como uma qualidade, hoje, diante do desmatamento crescente, coloca parte da população em uma situação de risco. Entre 2001 e 2020, 345 milhões de pessoas foram expostas ao aquecimento das áreas degradadas, segundo pesquisas recentes. E mais: neste mesmo período, esse aquecimento induzido pela perda florestal esteve associado a uma média de 28 mil mortes anuais relacionadas ao calor.

Esses dados são apresentados no estudo “O desmatamento tropical está associado a uma mortalidade considerável relacionada ao calor”, liderado pelo Instituto de Ciência do Clima e Atmosfera da Universidade de Leeds (Reino Unido), em colaboração com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade Kwame Nkrumah de Ciência e Tecnologia (Gana), que incluiu todas as regiões tropicais do mundo nas Américas, África e Ásia. A pesquisa demonstrou que o Sudeste Asiático é a região com maior taxa de mortalidade relacionada ao calor (8 a 11 mortes para cada 100 mil pessoas que vivem em áreas desmatadas), seguida pelas regiões tropicais da África e das Américas. “O desmatamento já é um problema de saúde pública”, afirma Beatriz Oliveira, pesquisadora da Fiocruz Piauí e uma das autoras do trabalho. Segundo ela, nas áreas onde ocorreram perda florestal, o que se viu foi um aquecimento maior que nas regiões vizinhas. “Quando você desmata, você tem um aquecimento local superior àquele proveniente da mudança climática”, diz.


Quente demais

Embora o aquecimento global não seja um problema novo, as configurações atuais não são as mesmas, explica o historiador Luiz Marques, autor de livros como “Ecocídio: por uma (agri)cultura da vida” (Expressão Popular) e “O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência” (Editora Elefante).  “Há algo novo que emergiu, e é uma nova taxa de aquecimento médio global, mais rápida. Da ordem de, provavelmente, o dobro daquela que foi constatada nos 40 anos anteriores a 2010”, explica, revelando que “estamos em um processo de aquecimento”, e que, desde 2015, houve uma aceleração nesta taxa.

Segundo Marques, há um outro aspecto que deve ser levado em consideração nos debates mais recentes, que é a aceleração na perda de biomassa florestal. “Isso parece cada vez mais claro, tanto nas florestas tropicais quanto nas boreais e temperadas. Mas no caso das florestas tropicais, a questão é evidentemente mais grave, porque elas concentram uma biodiversidade muito maior”. O historiador explica que o Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo. “De longe. Dos 17 países ‘megadiversos’ em termos de concentração de espécies endêmicas, cinco são amazônicos. Então você vê que a Amazônia é o centro nevrálgico da biodiversidade mundial”, afirma.

O que tem se observado é uma grande perda da vegetação nativa nessa região, ainda que, segundo dados recentes do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de agosto de 2023 a julho de 2024, a área desmatada na Amazônia tenha sido de 6.288 km², cerca de 31% menor que o período anterior (atingindo a taxa mais baixa desde 2018). Mesmo assim, um cenário alarmante, com diversas populações vivendo em ambientes termicamente alterados. Beatriz Oliveira conta que hoje a principal emissão de gás de efeito estufa do Brasil é por conta da falta de controle do desmatamento. “A exposição [ao aquecimento local] está ligada à questão de quantas pessoas residem naquela região, e isso difere um pouco do Sul Asiático, porque lá é muito povoado. Então mesmo que lá tenha menos desmatamento, e talvez um menor efeito do aquecimento induzido por ele, aquele aquecimento gerou naquela população mais mortes do que no Brasil, na América Central e América do Sul, onde está acontecendo mais o desmatamento”, explica.

Ainda segundo a pesquisadora, no caso do Brasil, a baixa densidade populacional na região amazônica acaba não refletindo em termos de números absolutos. Mas alerta: “Quando você vai somando os impactos, principalmente em municípios pequenos com menos de 10 mil habitantes, esses municípios menores têm uma infraestrutura, uma capacidade de adaptação e resiliência menor também. Então tem municípios com populações de 11 milhões de pessoas, em que cerca de 50% são classificadas como altamente vulneráveis”, diz Oliveira.


Desmatamento x Saúde

O Relatório de Síntese AR6: Mudanças Climáticas 2023, lançado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), afirma que ultrapassar um nível específico de 1,5 ºC implicaria impactos diversos aos sistemas humanos e naturais. Ainda segundo o documento, “quanto maior a magnitude e mais longa a duração da ultrapassagem, mais ecossistemas e sociedades ficarão expostos a mudanças mais amplas e intensas nos fatores de impacto climático”. Quanto à urgência de ação, o IPCC é categórico: “Há uma janela de oportunidade que está se fechando rapidamente para garantir um futuro habitável e sustentável para todos”. Esta limitação do aquecimento está alinhada ainda com os objetivos do Acordo de Paris, firmado em 2015, durante a COP21, e principal tratado internacional sobre mudanças climáticas. 

Todos esses esforços são ainda mais emergenciais quando se tem em mente que meio ambiente e saúde estão intrinsecamente ligados. A questão do desmatamento, por exemplo, está longe de ser uma questão exclusivamente “ambiental”, tendo em vista que ele é um impulsionador significativo da temperatura local. A exposição prolongada ao calor extremo prejudica a capacidade do corpo de regular a temperatura interna, de acordo com o estudo “Quente demais para ignorar: o crescente impacto das ondas de calor na saúde do Brasil”, publicado em 2025, e que tem Beatriz Oliveira também como um dos autores.

A pesquisadora da Fiocruz Piauí explica que existe uma frequência de temperatura que acontece durante os anos e que é diferente em cada região, fazendo com que dias de calor, por exemplo, sejam mais frequentes em determinados lugares. “Em 95% dos dias, existe uma faixa de temperatura. Em geral, as pessoas estão adaptadas a essa faixa de temperatura. E ela varia, não é a mesma coisa no Rio Grande do Sul ou no Norte do Brasil. O que está acontecendo com a mudança climática é que essas temperaturas estão se deslocando. Com isso, diminuem dias que são mais amenos e mais frios e aumentam os dias que são de muito calor”, relata Oliveira.

Algumas áreas estão mais adaptadas ao calor, com uma população já acostumada às variações,  mas há outros locais em que isso não acontece. E com a maior frequência de dias mais quentes, a exposição dessas pessoas aumenta, assim como o impacto sobre sua saúde. “Uma vez que você está exposto a esses dias que não são tão normais para você, essa exposição acaba fazendo com que o seu corpo precise se esforçar mais para se manter a temperatura corporal interna”, diz. Em 2023, por exemplo, durante um show da cantora Taylor Swift, no Rio de Janeiro, Ana Clara Benevides Machado, uma jovem de 23 anos morreu por “exaustão térmica por exposição difusa ao calor”, após passar mal em meio as 60 mil pessoas que estavam no estádio do Engenhão para a apresentação. Na época, a cidade passava por uma onda de calor com condições de temperatura extrema, com sensações térmicas que se aproximavam dos 50ºC. De acordo com a perícia, houve um “quadro hemodinâmico (choque), cardiovascular e comprometimento grave dos pulmões, e morte súbita”. 

Publicado recentemente, o “Relatório de 2025 do Lancet Countdown sobre saúde e mudanças climáticas”, destaca que “dos 20 indicadores que monitoram os riscos à saúde relacionados às mudanças climáticas, 60% atingiram níveis inéditos no ano mais recente de dados”. Isso porque o corpo humano fica sobrecarregado ao tentar lidar com tantas alterações.

A termorregulação é a responsável pela capacidade de seres vivos manterem uma temperatura corporal adequada ao seu metabolismo. E para que o corpo consiga fazer isso, há uma série de mecanismos fisiológicos que acontecem. “Isso significa que, principalmente, os sistemas cardiovascular e respiratório vão lançar mão de mecanismos para que você dissipe esse calor e mantenha a temperatura do seu corpo, entre eles, a vasodilatação”, explica Oliveira, complementando que o principal processo de dissipação do calor é o suor. “E aí você exige muito do seu sistema cardiovascular. Às vezes, você tem que respirar mais, e com mais esforço, porque precisa de mais oxigênio, o que acaba sobrecarregando o seu corpo para manter aquela temperatura corporal”, conta a pesquisadora da Fiocruz.


Vulnerabilidades

Mas será que todos conseguem se proteger do calor da mesma forma? A resposta é não. Quando se pensa nos mecanismos termorregulatórios, crianças e idosos têm mais dificuldade de executá-los. Nos idosos, por exemplo, a pele mais rugosa dificulta a dissipação de calor, somando-se ainda a outros fatores decorrentes do próprio processo de envelhecimento. De acordo com o Lancet Countdown, em 2024, pessoas idosas com mais de 65 anos e bebês com menos de 1 ano tiveram exposição a ondas de calor em níveis recordes, com aumentos de 304% e 389%, respectivamente, em comparação com o período entre 1986 e 2005. Ainda de acordo com o documento, ambos os grupos estão “particularmente em risco”.

Oliveira elucida também as ameaças às pessoas que trabalham expostas a um calor extremo. “Eu produzo calor sentada, mas consigo manter minha temperatura e produzir muito menos calor do que uma pessoa que está vendendo alguma coisa na praia, por exemplo. Que está exposta ao calor externo, fazendo atividade física e ainda, com o calor interno que produz”, reforça. A pesquisadora explica que roupas que protegem da exposição ao sol muitas vezes impedem a dissipação de calor. “As questões comportamentais e de vulnerabilidade, combinadas, tendem a exercer algum tipo de impacto na saúde, principalmente nesses sistemas vitais que estão muito associados à troca de calor”.

Além disso, outra vulnerabilidade é alçada ao campo de disputas entre aqueles que podem se proteger e aqueles que não têm escolha, senão adoecer. Para Luiz Marques, esta é uma questão que tem um lado óbvio e um menos óbvio. “O lado óbvio, que é o senso comum, é o fato de que os estratos sociais e as nações mais pobres não podem comprar um ar-condicionado, elas vivem em territórios mais vulneráveis a enchentes, a secas, têm um vínculo com o mar muito forte, no caso das populações litorâneas, dependendo muito fortemente da pesca”. Ele complementa: “Se os preços aumentam, se o arroz aumenta 20% ou 40%, isso não vai impactar o meu orçamento, porque sou uma pessoa da classe média, mas vai impactar enormemente uma pessoa de renda muito mais baixa. Então, tudo isso nos leva a concluir claramente que existe uma enorme injustiça climática baseada exatamente na desigualdade”, afirma.

Não tão óbvio quando se pensa na adaptação ao aquecimento, para o historiador, é a “ilusão de que países desenvolvidos, ricos, são imunes”, diz. Para ele, o aquecimento gera um forte efeito sobre a população europeia que não está acostumada ao calor. “Se você vai na Europa, você vê que as casas são fechadas, o ônibus é fechado. Eles estão adequados para o frio. Então, embora nós estejamos muito mais vulneráveis socialmente, eles estão também muito vulneráveis em outros aspectos”, afirma.


Cenário futuro

Em novembro de 2025, o Brasil sediou a 30ª Conferência das Partes (COP30), órgão máximo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), da Organização das Nações Unidas. O evento internacional, que deve contar com a participação dos 198 países-membros da ONU, tem como objetivo acompanhar e fortalecer as ações globais de enfrentamento à crise climática. Para Luiz Marques, a escolha de Belém (PA) para sediar a COP30 é uma escolha estratégica do ponto de vista geopolítico, por ser uma região amazônica, mas ele relembra que, desde 1992, quando aconteceu a UNFCCC, o acordo tinha como objetivo estabilizar as concentrações atmosféricas de CO2 e outros gases de efeito estufa, e que isso não aconteceu. “Não houve essa estabilização. Muito pelo contrário. Houve um aumento de mais de 60% desde 1992 até hoje. Não houve nem desaceleração do aumento das concentrações, houve aceleração. Não só aumentou, como aumentou o ritmo. É um fracasso que não posso relativizar”. Outro ponto a ser considerado, é referente à quantia gasta em decorrência das mortes relacionadas ao calor. Segundo outro estudo do The Lancet Countdown “Latin America Report 2025”, O Brasil registrou o maior aumento absoluto nos custos de mortalizade relacionada ao calor, de 2015 a 2024, entre países da América Latina com o crescimento de cerca de R$ 20 milhões, em relação a década anterior.

Beatriz Oliveira destaca algumas mudanças dessa COP. “Ela tem um grande avanço para a gente, em que, de fato, a saúde estar sendo colocada como uma pauta bem sólida. Ao invés de focar mais nas discussões políticas e acordos políticos, econômicos, que é muito do que a COP às vezes faz, colocaram essa questão de discutir a saúde pública. Esse é um grande ganho que a gente tem”, afirma. A pesquisadora aponta ainda como o SUS pode servir de lição do Brasil para o mundo nos aspectos voltados à estruturação de políticas em saúde. “O Brasil é um país continental, com várias realidades diferentes. O SUS é uma política capilarizada que te permite olhar de uma forma muito mais orgânica, para essas questões do clima”, reforça e cita exemplos: “Ele atende cerca de 70% da população, tem uma estrutura hierarquizada, com responsabilidade entre seus entes federados, com repasse financeiro bem definido, com estratégias localizadas e territorializadas, com as equipes de saúde da família, com linhas específicas de cuidado, com vários aspectos que estão relacionados, inclusive, às mudanças do clima”, diz.

Neste sentido, a Fiocruz divulgou no fim de outubro uma carta aberta para a Conferência, em que alerta: “a crise climática é, antes de tudo, uma crise de saúde”. Para garantir a proteção da saúde humana e ambiental, o documento lista diretrizes que podem fazer frente aos desafios atuais, como a importância de dar centralidade à saúde e suas determinações socioambientais nas políticas climáticas; fortalecer a resiliência dos sistemas de saúde; garantir financiamento climático para a pasta; entre outros.

É dentro deste panorama crítico, em que diversas medidas devem ser referendadas por diferentes nações para que mudanças possam efetivamente ocorrer, que Oliveira reflete sobre aquilo que é possível fazer dentro do panorama atual de aquecimento. “Não somos nós que decidimos economicamente vários dos fatores que influenciam a liberação desses gases. Então trabalhamos com o que chamamos de fator de risco, que é a ameaça climática, a exposição, a vulnerabilidade, e o efeito que eles têm na saúde humana. Reduzir a vulnerabilidade é reduzir a exposição dessas pessoas a um aquecimento que está acontecendo”, diz, e complementa: “Fazemos isso com melhora no acesso à saúde, emitindo alertas para as populações que são mais sensíveis, e em alguns casos disponibilizando medidas de acesso à saúde, por exemplo, para não deixar acontecer o que aconteceu com aquela jovem durante o show. Enfim, reduzir vulnerabilidade é dar condições de vida”, conclui.